De PATRÍCIA FERNANDES a respeito das exigências de rapidez que encurtam
pensamentos e distâncias e parecem transformar o ser humano numa espécie de máquina
impressora alinhando nos mesmos gostos e movimentos, impostos ou não por obrigação,
sem margem para pensar, como um questionário de alíneas orientadoras, de
pensamento aparentemente automatizado… Tudo isso que ela conta, com precisão,
não aponta, felizmente, para a igualdade da massificação, o que nos deixa
tranquilos. Cada ser humano tem uma personalidade distinta, e isso torna o
mundo vário, trazendo a esperança. No fundo, todas essas divergências que nos
assustam por vezes, em relação a um passado diferente, que foi o nosso, fazem parte da mudança, que é de todos os tempos. O Homem, esse, permanece, com mais
ou menos valores, sempre igual e sempre diferente, cada personalidade distinta
da alheia. E isso deixa-nos mais tranquilos.
Pensamento lento
Se o tempo é escasso, ideias como
esforço e sacrifício perdem valor. Queremos tudo rapidamente. É o tempo do fast
thinking ou do pensamento rápido, de sermos colonizados pela cultura americana
do tempo
PATRÍCIA FERNANDES Professora na
Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR; 01 abr. 2024, 00:208
Houve um tempo, que parece agora
muito distante, em que o nosso país era influenciado pela cultura, pela língua
e pelo pensamento franceses. E nesse tempo de francofilia, alguns autores e
filósofos conseguiam ter praticamente toda a sua obra traduzida em português,
mesmo que não fossem especialmente estudados entre nós. É o caso de Roland Barthes, que nos legou múltiplas ferramentas de análise e
interpretação tão interessantes quanto úteis, mas cujo trabalho valeria a pena
só pela seguinte frase: “tenho uma
doença: vejo a linguagem”.
Para quem, como Barthes, sofre desta
doença, não lhe escapará o uso contínuo de termos em língua inglesa, sem razão
aparente. Porquê meeting em vez
de reunião? Players
em vez de intervenientes? Spot em vez de lugar? É possível que, em tempos longínquos,
tivéssemos feito o mesmo com palavras francesas, entretanto incorporadas no
nosso vocabulário de tal forma que esquecemos a sua origem. É, por isso, possível que, daqui a
algumas décadas, escrevamos mitingues
e pleieres (como Mário Zambujal brinca nos seus livros), e as novas gerações ignorem
como surgiram.
Mas depois há os casos compreensíveis.
Podemos querer utilizar uma expressão ou uma palavra em língua inglesa precisamente
para expressar a sua origem externa e estranha: é o caso de “hate speech”, que embora
tenha uma tradução consagrada em português (“discurso de ódio”), ainda assim deve ser dita no original para que não
nos esqueçamos de que há uma teoria por detrás dela, um conjunto de ideias que
se quer afirmar – e ao denunciar essa
origem e esse reconhecimento, podemos recusar a moldura mental que ela pretende
convocar.
Mas também podemos utilizar expressões
ou palavras em outra língua por querermos prestar homenagem à bagagem cultural
e histórica que carregam e que não é passível de ser traduzida. É o que se
passa muitas vezes com a língua alemã, e por isso dizemos Heimat, Weltanschauung ou Zeitgeist. No inglês americano
isto também acontece, embora as palavras tendam a carregar sentidos menos…
metafísicos.
Pensemos em “fast food”. Provavelmente esperavam algo mais
filosófico – mas a questão é exactamente essa. A expressão fast food transporta
consigo toda a cultura norte-americana, onde a palavra floresceu no início da
década de 1950: é a comida pronta-a-comer, preparada rapidamente ou
pré-cozinhada de modo que possa ser consumida sem perda de tempo. E embora a comida pronta-a-comer possa
ser encontrada na antiguidade, a expressão só poderia ter sido cunhada numa
cultura em que tudo acontece rapidamente. Mais do que isso: tudo tem de acontecer rapidamente porque tempo é dinheiro e não há tempo a perder.
Há um preço a pagar pela rapidez e
esse preço é também retratado pela ideia de fast food: é uma comida que nos
tira a fome, mas é nutricionalmente pior, por isso é muitas vezes designada
como junk food. Há
correlação entre rapidez e qualidade?
Curiosamente, o termo equivalente em
português faz esquecer a dimensão temporal, mas guarda a questão qualitativa:
falamos em comida de plástico, remetendo
para a aparência. É uma comida atraente, e é verdade que comemos tantas vezes com os olhos, mas como acontece com os objectos de
plástico, não é verdadeiramente comida.
Há, no entanto, algo que se perde
com a tradução para comida de plástico e
que nos faz esquecer a cultura do tempo rápido e o facto de a fast food
simbolizar tão bem a transformação das nossas sociedades nas
últimas décadas. O tempo acelerou e
os dias são definitivamente mais curtos, mesmo que nos tentem convencer de que
têm o mesmo número de horas. Nesse ritmo rápido, desde que nos levantamos da
cama até nos voltarmos a deitar, parecemos não ter tempo para nada.
E
se o tempo é escasso, ideias como esforço e sacrifício perdem valor. Queremos tudo rapidamente
e com pouco esforço: encomendamos online para não perder tempo nas lojas e
pedimos refeições entregues por motorizadas barulhentas que nos poupam o tempo
de ir ao restaurante (coisa que antes fazíamos com tanto prazer); queremos
debates políticos na televisão que durem meia hora e explicações sobre os todos males do
mundo em podcasts de vinte minutos; também queremos livros pequenos,
que não provoquem um aperto no coração e uma tendinite no braço quando pegamos
neles; e, já agora, artigos de
opinião que sejam curtos e directos ao assunto. Nos Estados Unidos, são
hoje banais as apps que resumem livros, tanto em formato escrito como áudio, e a verdade é que se lermos
apenas os resumos temos tempo para conhecer Tolstoi, Mann, Shakespeare e toda a
restante tradição ocidental. No mundo académico, pedem-se agora artigos de
3000 palavras e comunicações de tipo speed dating (outra boa palavra anglófona)
com breves minutos de discussão final.
É o tempo do fast thinking ou do
pensamento rápido, enquanto somos colonizados pela cultura norte-americana do
tempo e acostumados à lógica da internet: tudo deve estar à distância, o mesmo é dizer, ao tempo de um clique. Estamos a tornar-nos superficiais?, pergunta Nicholas Carr,
a propósito da crescente incapacidade de concentração e profundidade de
pensamento. Ou estamos a embrutecer?, como
parece sugerir Michel Desmurget, a propósito do impacto dos
ecrãs nos mais novos. Ou, como Jonathan
Haidt sugere no livro, publicado há dias, The Anxious Generation (voltaremos a ele muito em breve): será
que vidas assentes no uso de telemóveis-espertos conduzem a uma degradação
espiritual? Afinal, todas as tradições antigas, quer filosóficas quer
religiosas, nos ensinam a ser lentos a julgar e rápidos a perdoar, e a abrandar
para recuperarmos o controlo mental – ou seja, exactamente o contrário do que
fazemos na internet e, em particular, nas redes sociais.
Mas
suspendamos o pessimismo: afinal, as coisas podiam ser muito piores. Ainda há
público para podcasts longos, ainda há livros grandes nas livrarias e até há
leitores com paciência para lerem textos longos e que apelam a um pensamento
lento: resistamos.
PS: Em março de 2019, publiquei o
meu primeiro texto no Observador e nos últimos cinco anos tenho
escrito textos tantas vezes longos demais, mas que tantas pessoas têm tido a
paciência de ler. Agradeço muito a esses leitores, e os comentários que me
fazem chegar.
COMENTÁRIOS (DE 8)
Ana Maria Caldeira: Mais um magnífico artigo. Uma das melhores articulistas
da actualidade, com a Filosofia como instrumento útil para a interpretação do
hoje. Um discurso claro e delicioso de tão bem escrito e certeiro. Recorda-me
Paulo Tunhas, também da Filosofia, que deve congratular-se, "se memória
desta vida se consente", que a Filosofia continue tão bem representada no Observador
António Coutinho: O Observador distingue-se dos restantes media pela
qualidade dos seus artigos de opinião. A Patrícia Fernandes é um daqueles
autores residentes que vale a pena assinalar para ser notificado. Sempre que a
leio, aprendo ser qualquer coisa ou ganho novas perspectivas. É claramente
daquelas pessoas que me veria passar uma tarde numa mesa de café a discutir
tudo e nada só pelo deleite do bem conversar. Por favor, continue a escrever
artigos longos ou curtos desde que desafiem o pensamento
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