É o que parece que nos sobra de tudo
isso que se conta dos 50 anos de cravos comemorativos, anualmente espetados nas
botoeiras dos casacos ou espalhados por outros locais corporais: as dívidas aos fundos europeus, as dívidas
aos povos africanos - estas últimas segundo o alarde do PR vistoso e
pleno de escrupulosos sentimentos recentemente apregoados - talvez para tramar
o país que o despreza nos seus alardes exibicionistas, ou para tramar ostentatoriamente
o governo actual, já em si debilitado, mas que parece amar o país, contrariamente
ao Presidente…
Abril à distância
Nada está mais longe da realidade do
que o reality show. Falar da História com alguma objectividade, serenidade e
realismo é talvez a única maneira de a evocar na sua pluralidade e verdade.
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 27
abr. 2024, 00:1841
Há já alguns anos, comecei na Antena 1
um programa com o Ruben de
Carvalho chamado Radicais
Livres, um calambur que achámos adequado.
Radicais livres
O Rúben e eu éramos radicais, pelo menos
no léxico da política portuguesa, então determinada pelo centrão – ele à
esquerda, eu à direita, ele comunista, eu nacionalista; e éramos livres – ele
livre, apesar da sua “Filarmónica” (como chamava ao Partido Comunista), eu
livre porque nunca tive nem as qualidades nem os defeitos necessários à vida
partidária. Éramos também os dois convictos, dispostos a afirmar as nossas
convicções e a pagar por isso, e os dois lúdicos e curiosos por muita coisa.
Foi uma experiência muito interessante, com discussões lexicais, em que íamos
humoristicamente procurando acordo para nos entendermos e conseguirmos
conversar sem exasperar os ouvintes. Quando
o Ruben falava do Estado Novo, chamava-lhe “regime fascista” e eu “regime autoritário”,
concordámos em chamar-lhe “salazarismo” ou “regime salazarista”, que não
repugnava a nenhum dos dois; e quando o Rúben dizia “guerra colonial”, para eu
não ter de contra-atacar com “guerra do Ultramar”, concordámos em chamar-lhe
“guerra de África”. No meio de tudo isto, ficámos amigos e tive um
profundo desgosto quando ele morreu por indesculpável descuido hospitalar.
O programa era moderado pelo Rui Pego e, depois da morte do Ruben, continuei
com o Pedro
Tadeu, de outra geração, mas também do PCP e parte de uma cultura política,
literária, intelectual bem diferente da incultura que agora por aí vemos
arremessada aos gritos sobre coisa nenhuma. Quem actualmente nos modera, ou
tenta moderar, é a Maria
Flor Pedroso.
Vem isto ainda a propósito do 50º aniversário
do 25 de Abril. O Ruben era, desde a adolescência, militante do PCP, esteve
preso várias vezes durante o salazarismo e falava desse tempo com
tranquilidade, com objectividade, sem espalhafato. Não entraria de certo em
fantasiosos delírios se aqui estivesse agora a comemorar a data.
No 25 de Abril de há cinquenta anos,
eu estava na tropa, a aguardar embarque para Angola. Tinha trocado com um
camarada meu mobilizado, porque sendo eu um defensor do então “Portugal
ultramarino” mal seria se não pusesse lá os pés. Quando do golpe, soube logo,
dado o meu passado político de nacionalista na Faculdade de Direito, que não
escaparia quando a Esquerda e o recém-criado COPCON iniciassem as suas
detenções de “suspeitos”. Não achei isso esquisito porque me opunha a eles e
eles sabiam-no. Podia não ser muito democrático e estar longe das “amplas
liberdades”, mas percebia-se. Vieram,
efectivamente, prender-me no 28 de Setembro, a famosa inventona em que os
quadros da “nova direita portuguesa” foram neutralizados – presos ou forçados
ao exílio. Fiquei quatro anos no exílio, mas tive muitos correligionários e
bastantes amigos presos durante o PREC.
Depois disso, talvez por sermos uma
nação muito antiga, ficámos, de um lado e de outro, vivos. Éramos
agora, mais ou menos moderados pelo tempo e pelas circunstâncias, radicais em
liberdade. Antigamente, os radicais eram sobretudo de esquerda; hoje, com o
passar do círculo político, é a esquerda que tende a ser mais situacionista,
moralista, convencional, acomodada, mesmo entre pueris e vistosos “activismos”.
Abril no Luxemburgo
No passado 23 de Abril estive no Luxemburgo, por iniciativa do nosso
embaixador no Grão-Ducado, Pedro Sousa e Abreu, para um debate sobre a
revolução com o Fernando Rosas, outro radical de esquerda, fora do PCP, preso
antes de Abril e preso depois de Abril, quando os militares do MFA resolveram
fazer uma razia à extrema-esquerda. Fomos contemporâneos.
No debate, estivemos de acordo num
ponto: até ao 25 de Novembro, ou mesmo até à constituição de 1976, não havia em
Portugal uma democracia estabilizada, um estado de direito: havia um
poder militar que oscilava à esquerda e à direita, que ia actuando entre golpes
e contra-golpes, que prendia e libertava “a olho”. No 25 de Novembro houve um Thermidor;
de qualquer forma, a política portuguesa deixara de ser autónoma, com os
Estados-Unidos, a União Soviética, a Europa, através da França e da Alemanha, a
mandarem para cá espiões, agentes e dinheiro para os partidos. Muito dinheiro,
que chegou ou não chegou ao destino.
Na discussão, com a sala do Cercle Cité
cheia, falámos do nosso dia 25 de Abril, das nossas percepções dos primeiros
sinais do movimento e das horas que se seguiram, entre vencedores e vencidos
não-convencidos. A grande maioria da sala, portugueses emigrantes no
Luxemburgo – uma comunidade de mais de 100 mil pessoas numa população de 650
mil –, seguia com atenção, expectativa e abertura o debate; alguns mais
exaltados com a efeméride e uma meia dúzia de cravo vermelho ao peito, como que
para marcar território. Quando vieram as perguntas, foi notória a agitação, mas
quer o Fernando Rosas quer eu fomos evitando que se desse espaço à
“intolerância dos intolerantes”.
O
moderador, um jovem professor local, perguntou-nos depois pela nostalgia, pelo
papel da nostalgia – a minha, que supunha ser a nostalgia do antigo regime, e a
do Fernando Rosas, que supunha ser a nostalgia do PREC, de um tempo em que a
revolução ainda parecia possível; e talvez houvesse também uma nostalgia comum,
a nostalgia de um tempo agitado e desacomodado em que vivemos com intensidade
projectos, bons ou maus, possíveis ou impossíveis, mas que, apesar de tudo,
transcendiam o nosso umbigo. Não nos alongámos muito.
Novembro
Tinha já contado esse meu tempo num
romance, Novembro, sobre a vida da sociedade portuguesa antes do 25 de Abril e
sobre o que aconteceu aqui, na emigração, em Espanha, e em Angola até ao 25 de
Novembro, através das histórias e dos destinos de portugueses de muitas
paragens.
O mês de Novembro de 1975 foi o fim,
real e simbólico, de duas utopias: o fim do Portugal pluricontinental e o fim
da revolução. A 11 de Novembro, com a independência de Angola, fechou-se o
ciclo do Império português, iniciado em Ceuta, em 1415: 560 anos de “dívidas” para
com povos que colonizámos, evangelizámos – e com quem comerciámos e nos
misturámos – e que agora devemos “indemnizar”; e o fim da possibilidade de uma
nação plurirracial e pluricontinental, que também deixou muitos órfãos –
candidatos a exigir “reparações” ao Portugal da “descolonização exemplar”, se
entrarmos por aí. E a 25 de Novembro, com a contenção pelas companhias de
Comandos de Jaime Neves dos revoltosos da Polícia Militar, com a discreta não-intervenção
dos fuzileiros (próximos do PCP), com Ramalho Eanes e Melo Antunes, fechou-se
também o ciclo revolucionário. Quinze dias depois de acabado o Império, acabava
a revolução. Os sonhos românticos e radicais das nossas gerações acabavam
também.
Não
sei se é para festejar, se é para lamentar, mas é, com certeza, para lembrar –
longe de vitimizações e maniqueísmos e para além do reality show da propaganda
a que nenhum regime foge, com o país mobilizado para as comemorações, e o povo,
como sempre, a juntar-se à festa e a encher as ruas. E
falar da História, da nossa e da dos outros, com alguma objectividade,
serenidade e realismo será talvez a única maneira de o fazer.
25 DE ABRIL PAÍS HISTÓRIA CULTURA
COMENTÁRIOS (de 41)
Pedra Nussapato: Não é maravilhoso hoje dois
antigos "radicais" serem "livres" para serena e
objectivamente falarem das suas utopias enquanto jovens e de todas as etapas do
caminho tumultuoso que nos trouxe até à nossa democracia e liberdade plenas?
Obrigado JNP por nesta data nos trazer esta mensagem de moderação e união. Tim do A > Pedra Nussapato: Depende do sítio. JNP já foi
muitas vezes impedido de falar em público. Pode escrever num jornal que não é
de esquerda. Só isso. A censura continua e cada vez maior agora também com o
acrescento do pensamento único obrigatório dos globalistas Woke, que dominam os
partidos portugueses desde o BE O PSD. João
Floriano: Jaime Nogueira Pinto levanta em mim um breve sentimento de culpa, um
aflorar de remorsos porque não consigo ser tão cordato e empático com figuras
como Fernando Rosas e Pedro Tadeu. Já Jaime Nogueira Pinto transmite uma serenidade,
segurança, distanciamento dos quais eu não sou capaz. Mas também não tenho a
inteligência e a cultura do cronista. Mas também não exageremos: estes pequenos
rebates de consciência passam muito rápido, logo que penso que a tolerância que
comunistas e bloquistas têm pela direita conservadora é ZERO. Tim do A: JNP é um Senhor. Ao contrário
dos abrileiros de hoje. Tal como havia muitos senhores nos abrileiros do
passado. Infelizmente os abrileiros de hoje não têm nível nenhum. São burgessos
arruaceiros sem educação. Paulo J Silva: JNP excelente como sempre. 50 anos depois ainda temos
dificuldade em falar, como sociedade, na mudança de regime e suas
consequências. Há ainda actualmente demasiado ruído, seja pela cristalização no
tempo de alguns, seja pelas novas derivas distópicas da moda de outros. É
preciso que esta serenidade madura e reflectida que JNP nos traz seja a regra
quer na sociedade, quer na bolha do mundo político. Américo Silva: Um grupo de oficiais queria
tacho em exclusividade, e empurrado de fora fez o 25 de Abril e pôs Portugal à
venda, após muitos lances entre os quais franceses e chineses, os principais
licitantes foram a URSS e os USA, estes acabaram por ficar com a soberania na
metrópole em 25 de Novembro, e enfeudaram o país na união europeia com tanto
sucesso, que Durão Barroso seria destacado dirigente. Carlos
Chaves: Obrigado Jaime Nogueira Pinto, por nos trazer aqui um pouco da nossa
história recente, vivida e contada na primeira pessoa. Obrigado também por
lembrar o Rúben de Carvalho, talvez o único comunista de quem eu lia as crónicas
e ouvia a opinião, de que muitas vezes discordava, mas compreendia a sua
inteligente argumentação. Também obrigado, por relembrar alguns dos verdadeiros
crimes cometidos pelos extremistas de esquerda, durante o período
“revolucionário” de Abril de 1974 a Novembro de 1975. Afinal de contas, para
onde irá Portugal homenagem àqueles tempos de sonho e de reboliço que se
seguiram ao 25 de Abril. Jaime, um grande bem-haja Pedro
de Freitas Leal: Um artigo muito bonito, muito equilibrado e muito
sentido. Uma verdadeira homenagem àqueles tempos de sonho e de reboliço que se
seguiram ao 25 de Abril. Jaime, um grande bem-haja! Tim do A
> bento guerra: E que grandioso e feliz Portugal. Parece o Titanic!
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