América de tantos
contrastes, e de tantos sonhos, desde os filmes da nossa adolescência! Mas da
nossa crença no apoio ao mundo, apesar dos Trumps da caricatura. Um texto de
nostalgia e crítica leve, de Alberto
Gonçalves, destemido e brincalhão, mas saudosista e consciente,
sempre.
Onde vais, América?
Sei que a América que encontro a cada
nova visita é um bocadinho menos da América que encontrei há vinte anos, como
esta já seria bastante menos da América que não pude encontrar há quarenta.
ALBERTO GONÇALVES Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 13
abr. 2024, 00:186
Há
as pessoas que insistem terem vivido vidas em tempos remotos, normalmente na
pele de Cleópatra ou de um general prussiano (e raramente na pele de uma
apanhadora de sanguessugas ou de um ferreiro com sífilis). E há as pessoas que
sabem não ter vivido uma determinada vida no tempo que lhes foi presente. É o
meu caso. Se guardo um arrependimento, é este: o de, aos 18 anos, não ter
abandonado os estudos, a fim de partir rumo à América e tornar-me camionista de
longo curso. Mas nem sei se me posso considerar arrependido por uma ideia que
só me ocorreu depois dos trinta e cinco ou dos quarenta anos. E a pretexto de
uma carreira que só contactei, indirectamente, há oito dias.
Aconteceu
num povoado a leste de Houston e a caminho, ainda longo, de San Antonio, no Texas.
Eu e os amigos que me acompanhavam parámos para jantar num restaurante
recomendado pelo funcionário do posto de combustível local, cujos conselhos cumpriram
os critérios que estabeleci: haver churrasco; não ser um “franchise”. Havia
churrasco, habitualmente excelente por aqueles lados. Não era um “franchise”, e
sim um estabelecimento familiar, ponto de reunião dos indígenas num serão de
sexta-feira. Enquanto, junto ao balcão, debatíamos a ementa, dois
indígenas debatiam a nossa proveniência. De súbito, um deles perguntou se
éramos portugueses e eu espantei-me com a pontaria. Explicou sorridente que,
sendo casado com uma colombiana, sabia espanhol o suficiente para perceber que
não falávamos espanhol. E assim começou o que na América, sobretudo na América
das pequenas cidades do interior, costuma começar com extraordinária
facilidade: uma conversa.
Eram dois cinquentões, um de cabeça
destapada, o outro com o Stetson (ou similar) no devido sítio. O segundo era
texano de várias gerações, o primeiro filho de italianos que fizeram questão de
não transmitir as origens ao filho: “Na América, somos americanos”. Eram residentes nas redondezas, a entrar no
fim-de-semana com uma Budweiser, umas costelas de porco e, logo a seguir, uma
partida de bilhar.
Para o que me importou e deslumbrou, eram
motoristas de camião, os camiões desmesurados e brilhantes que nos filmes e
na realidade buzinam a pedido. Alguns emocionam-se ao conhecer artistas de variedades, por regra aborrecidos como
escalfetas. Eu, que nunca
conhecera camionistas americanos, desprezei todas as distracções ao tema
principal e, tão fascinado quanto um fã de Taylor Swift na presença da própria
(que graças aos céus nunca ouvi), esmaguei-os com perguntas, confissões e
sonhos patetas. Nem liguei quando
acusaram os democratas de estragarem o país. Só me interessava o ofício deles,
circunstância que os divertiu. Apurei inúmeras informações que de resto já
possuía. Não se ganha mal (o assalariado ronda os oito a dez mil dólares
mensais; o outro afirmou-se patrão, proprietário e assalariado, e não falou em
rendimentos). É facílimo mudar de empresa, de emprego, de poiso. O glamour da
profissão é um pouco exagerado (“Vemos demasiadas auto-estradas e perdemos
demasiadas coisas que interessam”).
A mim interessou-me tudo, e indiferente
às ressalvas passou-me pelos olhos a existência que não tive, repleta de
motéis, asfalto, lojas de conveniência e, nos intervalos, a escrita de
prodigiosos romances decorridos em motéis, asfalto e lojas de conveniência.
Findo o jantar, os camionistas desejaram-nos continuação de boa viagem,
acrescentaram “God bless you!” e partiram numa “pick up” capaz de deprimir a
Pequena Greta durante décadas.
A comitiva lusitana demorou-se e partiu
tarde, e à saída hesitei entre o percurso aconselhado pelo GPS e uma rodovia
estreita, sombria e sem destino discernível chamada Slaughterhouse
(matadouro). Os meus parceiros de
viagem instruíram-me a não me meter em confusões, pelo que me resignei à
normalidade. Em cinco minutos, a normalidade interrompeu-se mediante a
intervenção de um carro da polícia, que com sinais de luzes nos mandou encostar
à berma. O minuto posterior, o período que levou a autoridade a acercar-se
da nossa janela, serviu para os menos traquejados do grupo especularem, apenas
meio a brincar, acerca do destino sombrio que nos aguardava. Os palpites iam da multa pesada à estadia
numa penitenciária para criminosos impenitentes. Entretanto, a autoridade
alcançou o vidro do passageiro. Tratava-se de uma agente com vinte e tal anos e
a maior das delicadezas. Informou-nos que viajávamos com as luzes traseiras
apagadas e que nos ajudaria a resolver o problema. Ajudou. Resolveu. Mandou-nos
embora com um sorriso. E nós fomos a sorrir também.
Eu sei. Sei que os democratas estragam o país, e que muitos
republicanos não o consertam. Sei que o país está dividido, não sei se mais do
que alguma vez esteve. Sei que tarados e oportunistas estimulam as divisões em
matéria de “raça”, credo, sexo e o que calhar de servir a estratégia de
destruição. Sei da epidemia de drogas “modernas”. Sei dos sem-abrigo que
vegetam pelos centros urbanos e “humanistas”. Sei do desavergonhado declínio do
jornalismo tradicional e da duvidosa erupção das fontes “alternativas”. Sei que
as livrarias escasseiam, e que as livrarias sem alusões “identitárias” são
quase um mito. Sei do horror “arquitectónico” que polui e padroniza as cidades
grandes. Sei, soube agora, uma dúzia de anos após as impressões iniciais, que
em Nashville, Memphis e New Orleans, é menos provável ouvir country, blues e
jazz do que o esterco que se amontoa nas tabelas de sucessos. Sei que o lixo,
musical, material e mental, tende a acumular-se da sarjeta até à academia. Sei
dos benefícios e dos horrores do progresso tecnológico. Sei da apatia,
eufemismo para ignorância. Sei que a América que encontro a cada nova visita é
um bocadinho menos da América que encontrei há vinte anos, como esta já seria
bastante menos da América que não pude encontrar há quarenta.
De qualquer maneira, continuo a gostar
da América e a experimentar lá as minúsculas epifanias que não experimento
noutro lugar. A conversa com os camionistas. O negociante de tijolos do
Mississípi, um negro enorme, que através de versículos bíblicos desmontou a
lenda de que Robert Johnson vendera a alma ao diabo. As gargalhadas alimentadas
a margaritas na noite de Galveston, ao pé da praia. Os amigos, os verdadeiros que vão daqui e os fugazes que se arranjam
lá. A banda do Fritzel’s em Bourbon Street. A energia. A vastidão. As
possibilidades, incluindo as irremediavelmente desperdiçadas. Pessimismo? Depende do
modo de olhar o céu nocturno, pontilhado por estrelas: a imensa escuridão não
impede a luz. E quem diz uma estrela diz o cromado de um camião, a iluminar a
estrada e a noite sem fim. Ao volante,
não fora a vida ser o que é, vou eu.
ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO
COMENTÁRIOS (de 7)
Meio Vazio: Muito bom! Welcome back.
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