terça-feira, 16 de abril de 2024

O Homem

 

Esse desconhecido. Ou, pelo contrário, o mesmo de sempre.

Um excelente texto, de Patrícia Fernandes. Um excelente comentário de Rui Lima.

A vitória dePutin

Os nórdicos foram os primeiros a abandonar o idealismo sobre a ameaça russa e a preocupação com excentricidades como políticas externas feministas; gradualmente, os restantes foram assumindo a mudança

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 15 abr. 2024, 06:4511

1O paradigma de paz

No seu curto ensaio sobre a União Europeia, sintomaticamente intitulado Uma grande ilusão?, Tony Judt defende que a segunda guerra mundial condenou os países europeus ao derrotismo:

A II Guerra Mundial foi peculiar por ter dividido os países uns contra os outros e porque quase todos os intervenientes europeus perderam. Teve, por isso, a consequência interessante e perene de dar ao subcontinente algo mais em comum: uma memória recente partilhada de guerra, guerra civil, ocupação e derrota. Apesar da mortandade imensa da I Guerra Mundial, após 1945 o sentimento de experiência comum do conflito e de destruição foi muito maior. Como resultado, os europeus tornaram-se, coletivamente, “derrotistas” – não só já não estavam dispostos a lutar uns contra os outros, como também viam com desconfiança qualquer vontade de lutar.”

De facto, o trauma da guerra conduziu os dirigentes europeus ao esforço de unir a Europa sob o signo kantiano de paz perpétua, e as décadas de crescimento económico que se seguiram tornaram as afluentes sociedades europeias mais ligadas a bens materiais e menos dispostas a aceitar a violência como forma de resolver disputas, como chama a atenção Vítor Bento. Teríamos passado para o que alguns designam como “sociedades pós-heroicas”, que concretizam, no fundo, as promessas do projecto liberal: partindo de uma antropologia universalista, baseada numa razão instrumental, o paradigma liberal acreditou que era possível construir um mundo mais pacífico, fim para o qual o comércio era um meio privilegiado.

Na linha da tradição tomista, presente na Segunda Escolástica e no pensamento dos liberais clássicos, o comércio era entendido como ferramenta para estimular a amizade entre os homens e fomentar relações de prosperidade e pacifismo. Afinal, se estivermos ligados por relações económicas fortes, temos menos interesse em entrar em conflito com outros homens e outros estados. A dimensão legalista do liberalismo deixou-nos a lição de que as disputas se devem resolver, sensatamente, por via judicial e não de modo violento ou heroico.

Foi este paradigma liberal – quer na dimensão interna de democracia representativa, limitação de poderes, mediação e pluralismo, quer na dimensão externa de crescente interligação económica que reinou triunfante na segunda metade do século XX, ao ponto de alguns considerarem que ele corresponderia a uma espécie de fim da história. E foi a partir deste paradigma que se instalou um entendimento de cidadania baseado em direitos e a convicção de que não regressaríamos a cenários de sacrifício e limitações, como a Europa sempre conheceu ao longo da sua história. (É claro que o paradigma liberal não foi sempre pacífico e os Estados Unidos foram hábeis em usar a componente militar como estratégia, mas estamos a falar em tendências de paz, como se verificou na Europa.)

E depois veio Putin.

2A vitória de Putin

Regressemos a 2022 e à operação militar especial que a Rússia iniciou na Ucrânia. Esta invasão originou, do lado ocidental, esforços complexos na tentativa de compreender as motivações de Vladimir Putin. O que teria levado o Presidente russo a iniciar uma incursão militar que punha em causa um clima de (relativa) paz e relações comerciais estáveis com o ocidente? O mais curioso é que a maioria dessas tentativas procurava aplicar o nosso entendimento de racionalidade às acções de Putin, considerando-as irracionais por não estarem de acordo com o modo liberal de interpretar a geopolítica e os interesses nacionais. Mas Putin já tinha avisado: na sua opinião, o liberalismo está obsoleto e “os [liberais] não podem simplesmente ditar o que quer que seja a quem quer que seja, como têm tentado fazer nas últimas décadas”.

De facto, na sua ânsia universalista, o projecto liberal pretendia aplicar-se em todo o lado, mas agora os outros lados não pareciam estar interessados. Os europeus demoraram algum tempo a admitir que os tempos eram novos, mas quando, entre outras decisões, a União Europeia decidiu, em junho de 2023, aumentar a produção de munições, concedeu a Putin uma vitória: o paradigma de paz tinha terminado e os países europeus assumiam a necessidade de repensar a sua defesa e a sua política externa.

Os países nórdicos foram os primeiros a abandonar uma visão idealista sobre a ameaça russa e a preocupação com excentricidades como políticas externas feministas; e, progressivamente, os restantes dirigentes europeus foram assumindo essa mudança, com o Conselho Europeu do final de março a iniciar o debate para mudar o paradigma na Europa. A pergunta que têm em mente é aquela que o podcast Diplomatas nos deixava há algumas semanas: como se prepara a opinião pública para o regresso da guerra à Europa? – nomeadamente, para todas as alterações que isso implica, como maior disponibilidade orçamental para defesa e segurança, investimento militar e discussão sobre tópicos complexos, como o serviço militar obrigatório.

Na nova ordem multipolar, em que, como vimos este fim de semana, se assiste por todo o lado a uma escalada de conflitos, os países europeus estão confrontados com a necessidade de discutir sobre os termos e entendimentos da cidadania e dos nossos deveres para com a nossa comunidade e os seus valores. Como sempre acontece, pode ser uma janela de oportunidade para reflectir sobre o caminho que foi feito e o que se pretende para o futuro, nomeadamente sobre como recuperar a noção de bem comum e uma cidadania comprometida com deveres, por forma a superar a crescente polarização social e o individualismo materialista que marca as nossas sociedades. O discurso que Alexandre Soljenitsin proferiu na Universidade de Harvard, em 1978, talvez ajude nessa reflexão. Desterrado para a Europa, e depois para os Estados Unidos, Soljenitsin nunca se deixou convencer pelo projecto ocidental:

“Ainda há duzentos, ou mesmo cinquenta anos, na América, teria parecido impossível conceder ao homem uma liberdade sem entraves, assim, sem mais nada, só para que pudesse saciar as suas paixões. De então para cá, no entanto, em todos os países ocidentais, esta liberdade foi-se corroendo, as pessoas libertaram-se definitivamente da herança dos séculos cristãos com as suas imensas reservas de piedade e de sacrifício, e os sistemas estaduais nunca mais deixaram de tomar o aspecto dum materialismo cada vez mais perfeito.”

Seremos capazes?

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COMENTÁRIOS (de 11)

Rui Lima: Antes de mais, os meus parabéns pelo seu artigo com dimensão e conteúdo. Mas o Ocidente é vítima dele próprio e dos inimigos internos. O pior de tudo é a quinta coluna no interior do Ocidente. Israel faz parte do eixo das democracias que são vítimas dos seus inimigos - um grupo onde estão o Irão, Rússia , China , Coreia do Norte e outros países como o Brasil, que não está na primeira linha mas mostra hostilidade ao Ocidente. Se os extremistas de esquerda e a comunidade muçulmana a viver no ocidente fazem a festa como no 11/9, temos agora socialistas com simpatias pelo o Irão e o Hamas. Não o dizem directamente, mas é notório. Ouvi ontem um comentário de um socialista português ou olhando para os socialistas de Espanha a começar no seu número 1: “toda esta gente trai a liberdade, trai o mundo ocidental.”

 

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