Esse desconhecido. Ou, pelo contrário, o mesmo de
sempre.
Um excelente texto, de Patrícia Fernandes. Um
excelente comentário de Rui Lima.
A vitória dePutin
Os nórdicos foram os primeiros a
abandonar o idealismo sobre a ameaça russa e a preocupação com excentricidades
como políticas externas feministas; gradualmente, os restantes foram assumindo
a mudança
PATRÍCIA FERNANDES
Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 15 abr. 2024, 06:4511
1O paradigma de paz
No seu curto ensaio sobre a União
Europeia, sintomaticamente intitulado Uma grande
ilusão?, Tony Judt defende que a segunda guerra mundial
condenou os países europeus ao derrotismo:
“A II Guerra Mundial foi peculiar por ter dividido os países uns contra
os outros e porque quase todos os intervenientes europeus perderam. Teve, por
isso, a consequência interessante e perene de dar ao subcontinente algo mais em
comum: uma memória recente partilhada de guerra, guerra civil, ocupação e
derrota. Apesar da mortandade imensa da I Guerra Mundial, após 1945 o
sentimento de experiência comum do conflito e de destruição foi muito maior.
Como resultado, os europeus tornaram-se, coletivamente, “derrotistas” – não só
já não estavam dispostos a lutar uns contra os outros, como também viam com
desconfiança qualquer vontade de lutar.”
De facto, o trauma da guerra conduziu
os dirigentes europeus ao esforço de unir a Europa sob o signo kantiano de paz
perpétua, e as décadas de crescimento económico que se seguiram tornaram as
afluentes sociedades europeias mais ligadas a bens materiais e menos dispostas
a aceitar a violência como forma de resolver disputas, como chama
a atenção Vítor
Bento. Teríamos
passado para o que alguns designam como “sociedades pós-heroicas”,
que concretizam, no fundo, as promessas do projecto liberal: partindo de uma
antropologia universalista, baseada numa razão instrumental, o paradigma
liberal acreditou que era possível construir um mundo mais pacífico, fim para o
qual o comércio era um meio privilegiado.
Na linha da tradição tomista, presente
na Segunda Escolástica e no pensamento dos liberais clássicos, o comércio era
entendido como ferramenta para estimular a amizade entre os homens e fomentar
relações de prosperidade e pacifismo. Afinal,
se estivermos ligados por relações económicas fortes, temos menos interesse em
entrar em conflito com outros homens e outros estados. A dimensão legalista do
liberalismo deixou-nos a lição de que as disputas se devem resolver,
sensatamente, por via judicial e não de modo violento ou heroico.
Foi este paradigma liberal – quer
na dimensão interna de democracia representativa, limitação de poderes,
mediação e pluralismo, quer na dimensão externa de crescente interligação
económica – que reinou
triunfante na segunda metade do século XX, ao ponto de alguns considerarem que
ele corresponderia a uma espécie de fim da história. E foi a partir deste
paradigma que se instalou um entendimento de cidadania baseado em direitos e a
convicção de que não regressaríamos a cenários de sacrifício e limitações, como
a Europa sempre conheceu ao longo da sua história. (É claro que o
paradigma liberal não foi sempre pacífico e os Estados Unidos foram hábeis em
usar a componente militar como estratégia, mas estamos a falar em tendências de
paz, como se verificou na Europa.)
E depois veio Putin.
2A vitória de Putin
Regressemos a 2022 e à operação
militar especial que a Rússia iniciou na Ucrânia. Esta invasão originou, do lado ocidental,
esforços complexos na tentativa de compreender as motivações de Vladimir Putin.
O que teria levado o Presidente russo a iniciar uma incursão militar que punha
em causa um clima de (relativa) paz e relações comerciais estáveis com o
ocidente? O mais curioso é que a maioria dessas tentativas procurava
aplicar o nosso entendimento de racionalidade às acções de Putin,
considerando-as irracionais por não estarem de acordo com o modo liberal de
interpretar a geopolítica e os interesses nacionais. Mas Putin já tinha avisado: na sua
opinião, o liberalismo está obsoleto e “os
[liberais] não podem simplesmente ditar o que quer que seja a quem quer que
seja, como têm tentado fazer nas últimas décadas”.
De facto, na sua ânsia universalista, o
projecto liberal pretendia aplicar-se em todo o lado, mas agora os outros lados
não pareciam estar interessados. Os europeus
demoraram algum tempo a admitir que os tempos eram novos, mas quando, entre
outras decisões, a União Europeia decidiu, em junho de 2023, aumentar a
produção de munições, concedeu a Putin uma vitória: o paradigma de paz tinha
terminado e os países europeus assumiam a necessidade de repensar a sua defesa
e a sua política externa.
Os países nórdicos foram os primeiros
a abandonar uma visão idealista sobre a ameaça russa e a preocupação com
excentricidades como políticas externas
feministas; e, progressivamente, os restantes
dirigentes europeus foram assumindo essa mudança, com o Conselho Europeu do
final de março a iniciar o debate para mudar o paradigma na Europa. A pergunta que têm em mente é aquela que o podcast Diplomatas nos
deixava há algumas semanas: como se prepara a opinião pública para o regresso
da guerra à Europa? – nomeadamente, para todas as alterações que isso implica,
como maior disponibilidade orçamental para defesa e segurança, investimento
militar e discussão sobre tópicos complexos, como o serviço militar obrigatório.
Na nova ordem multipolar, em que,
como vimos este fim de semana, se assiste por todo o lado a uma escalada de
conflitos, os países europeus estão confrontados com a necessidade de discutir
sobre os termos e entendimentos da cidadania e dos nossos deveres para com a
nossa comunidade e os seus valores. Como sempre acontece, pode ser uma
janela de oportunidade para reflectir sobre o caminho que foi feito e o que se
pretende para o futuro, nomeadamente sobre como recuperar a noção de bem comum
e uma cidadania comprometida com deveres, por forma a superar a crescente
polarização social e o individualismo materialista que marca as nossas
sociedades. O discurso que Alexandre Soljenitsin proferiu
na Universidade de Harvard, em 1978, talvez ajude nessa reflexão. Desterrado
para a Europa, e depois para os Estados Unidos, Soljenitsin nunca se deixou
convencer pelo projecto ocidental:
“Ainda há duzentos, ou mesmo
cinquenta anos, na América, teria parecido impossível conceder ao homem uma
liberdade sem entraves, assim, sem mais nada, só para que pudesse saciar as
suas paixões. De então para cá, no entanto, em todos os países ocidentais, esta
liberdade foi-se corroendo, as pessoas libertaram-se definitivamente da herança
dos séculos cristãos com as suas imensas reservas de piedade e de sacrifício, e
os sistemas estaduais nunca mais deixaram de tomar o aspecto dum materialismo
cada vez mais perfeito.”
Seremos capazes?
COMENTÁRIOS (de 11)
Rui Lima: Antes de mais, os meus parabéns pelo seu artigo
com dimensão e conteúdo. Mas o Ocidente é vítima dele próprio e dos inimigos
internos. O pior de tudo é a quinta coluna no interior do Ocidente. Israel faz
parte do eixo das democracias que são vítimas dos seus inimigos - um grupo onde
estão o Irão, Rússia , China , Coreia do Norte e outros países como o Brasil,
que não está na primeira linha mas mostra hostilidade ao Ocidente. Se os
extremistas de esquerda e a comunidade muçulmana a viver no ocidente fazem a
festa como no 11/9, temos agora socialistas com simpatias pelo o Irão e o Hamas.
Não o dizem directamente, mas é notório. Ouvi ontem um comentário de um socialista
português ou olhando para os socialistas de Espanha a começar no seu número 1: “toda
esta gente trai a liberdade, trai o mundo ocidental.”
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