Mesmo entre os e as activistas de
ocasião, quando são ainda jovens, desejosos de saliência, encontrando-a na pura
rebeldia, por vezes dependente da ignorância, ou da insensatez provocadora. Um dia,
acalmarão, ainda que permaneça a ignorância do passado que foi retratado ao
longo dos tempos, deixando a sua marca didáctica imprescindível, na consciência
dos vindouros, ainda que vá periclitando...
A família
Os activistas revolucionários têm de
acreditar que estão moralmente certos pois é essa crença que permite justificar
a sua crueldade e a sua indiferença perante o sofrimento e a humilhação que
causam.
PATRÍCIA FERNANDES Professora na
Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 29 abr. 2024, 00:1811
1Redescrever a família
A escritora madrilena Rosa
Montero é, fora dos seus livros, uma feminista profissional. Na
aguerrida tradição espanhola, faz parte da associação
Clásicas y Modernas e repete
regularmente a ideia de que, na vida e na literatura, “la palabra del hombre sigue siendo la ley”. Na sua opinião,
encontrar-se-ia aqui a justificação para o facto de as escritoras mulheres
ocuparem um papel menos relevante no mundo literário, com menos reconhecimento
público, poucos prémios literários e pouca visibilidade no mundo da crítica
literária.
Em sentido contrário, parece-me que a
razão que leva a que muitas escritoras femininas recebam menos reconhecimento
do que aquele que desejariam não resulta do facto de serem mulheres, mas de
terem sido convencidas a escrever como feministas. Quando o fazem, sujeitam a arte a objectivos políticos, escrevendo
não para criar um livro de qualidade, mas para dar voz a uma visão política –
logo, torna-se mais difícil que esses textos sejam reconhecidos como bons
livros.
Rosa Montero é, aliás,
um bom exemplo do meu argumento, pois, apesar da sua condição de feminista, os
seus livros e ensaios debruçam-se sobre a natureza e a condição humanas,
estando para lá de meros objectivos políticos. O reconhecimento literário que a
sua obra recebe é precisamente por essa exploração, que está presente não
apenas nos livros ensaísticos ou quase-biográficos (como não sentir a dor da
perda em A ridícula ideia de não voltar a ver-te?), mas
também nos livros de ficção científica (como ficar indiferente à angústia de Bruna Husky perante as suas memórias artificialmente implantadas,
mas simultaneamente tão verdadeiras?). E como não nos revermos na tortuosa
reflexão em torno do envelhecimento, que é levada a cabo em A Carne? (Talvez os mais novos não o sintam como nós, mas o
tempo resolverá esse problema.)
Isto não significa que as mulheres não
desempenhem um papel específico na literatura. Como Montero diz, em A louca da casa, as escritoras
ampliam o universo literário (e humano) na medida em que transportam consigo
uma perspectiva do mundo que está, naturalmente, inacessível aos homens em
resultado dessa coisa tão fora de moda que é o corpo e a biologia. O
corpo da mulher condiciona a sua experiência de vida e, por isso, a sua escrita
oferece perspectivas diferentes sobre uma vivência que é comum:
“Se
os homens tivessem as regras, a literatura universal estaria repleta de
metáforas do sangue. Ora bem, são essas metáforas que as escritoras têm de
criar e pôr em circulação na torrente geral da literatura. Agora que, pela
primeira vez na história, pode haver tantas escritoras como escritores; agora
que já não somos excepções; agora que a nossa participação na vida literária se
normalizou, dispomos de uma total liberdade criativa para nomear o mundo. E há
algumas pequenas zonas da realidade que só nós podemos nomear.”
Ora, uma
zona da realidade que as escritoras parecem conseguir descrever melhor do que
os homens prende-se com a família e as difíceis relações que dão forma à trama
familiar. Tendo ocupado, até
muito recentemente, o papel central da dinâmica familiar, as mulheres
escritoras parecem mais hábeis a captar a sua essência e, na literatura mais
recente, as transformações a que a família tem sido sujeita.
Nesse domínio, Elizabeth Strout é exemplar. A sua exploração
familiar tem lugar, desde logo, em O meu nome é Lucy Barton, mas é na malha comum das histórias que
atravessam os dois volumes sobre Olive Kitteridge, na primeira e na segunda vida, que isso se torna mais evidente. Dificilmente
um homem conseguiria escrever tão claramente sobre o modo como as últimas
décadas modificaram as relações familiares no ocidente, transformando
expectativas e projectos familiares, sedimentados por séculos de tradições, em dolorosas
redescrições sobre o lugar da família no século XXI.
Essas
redescrições acentuam um fosso essencialmente geracional e passam pelo
desaparecimento do casamento tradicional e da família alargada; pelo número
reduzido de filhos, que vão viver para longe depois da universidade e tornam
insignificantes as relações entre netos e avós; pelas novas liberdades e
excentricidades sexuais; mas, sobretudo, pela destruição do próprio conceito de
família enquanto fonte de relações estáveis e permanentes, que gera obrigações
para lá dos nossos desejos mais imediatos.
2O problema das redescrições
Uso a palavra redescrição no sentido cunhado pelo filósofo
norte-americano Richard Rorty, que se debruçou sobre o poder revolucionário da
linguagem e a possibilidade de
transformarmos o modo como percepcionamos o mundo através de inovações
linguísticas. Novas metáforas, novas imagens e novas descrições
permitir-nos-iam ver o mundo de uma nova forma, substituindo visões obsoletas
por visões mais capazes de concretizar sociedades com menos sofrimento – ou
seja, permitiriam transformar a realidade
para criar um mundo melhor.
O argumento de Rorty é sedutor, mas
notemos o seu lado escuro e que é reconhecido pelo próprio filósofo em Contingência, Ironia e Solidariedade: um uso
revolucionário da linguagem – i.e., uma
redescrição – traduz-se sempre num acto de violência para com aqueles que usam
e acreditam nos termos que estão a ser redescritos. Como diz Rorty,
“a
melhor maneira de causar uma dor duradoura às pessoas é humilhá-las fazendo as
coisas que lhes pareciam mais importantes assumirem um aspecto fútil, obsoleto
e impotente.”
Considerando
esta capacidade de produzir humilhação e sofrimento, Rorty defende que as
redescrições devem ficar reservadas para a esfera privada, não devendo ser
impostas na esfera pública – pelo que foi criticado por autoras feministas,
nomeadamente Nancy Fraser, que consideraram que esta ressalva limita a
capacidade de as redescrições produzirem efeitos políticos concretos. As ideias rortyanas traduzir-se-iam, assim,
em mero conservadorismo político – e a verdade é que Rorty pode ser entendido
como filosoficamente revolucionário, mas politicamente conservador.
Embora esta discussão entre Fraser e
Rorty tenha acontecido no final da década de 1980, ela permite-nos compreender
a actual disputa no espaço público em torno do conceito de família. Por um
lado, encontramos um processo de redescrição da família, que tenta modificar
concepções entendidas como obsoletas e é defendido como mais humanista, mais
inclusivo e mais progressista. Mas os seus activistas parecem esquecer que ele
produz, inevitavelmente, os resultados de qualquer redescrição e constitui,
nessa medida, uma forma de violência e humilhação sobre os outros, ou seja,
traduz-se numa forma de crueldade. Não é, assim, surpreendente que
seja salvaguardado por um sentimento de superioridade moral: os activistas
revolucionários têm de acreditar que estão moralmente certos pois é essa crença
que permite justificar a sua crueldade e a sua indiferença perante o sofrimento
e a humilhação que causam.
Por outro lado, as tentativas de
redescrever conceitos partilhados geram, inevitavelmente, movimentos de reacção
que procuram responder e defender-se desses ataques – e que revelarão uma
violência proporcional ao ataque recebido. Não
surpreende, por isso, o grau de antagonismo que marca a sociedade
norte-americana em torno de valores morais: a tentativa de redescrever valores
morais e culturais por um dos lados gera uma reacção proporcional do lado
contrário, com uma violência justificada pela certeza absoluta de que estão
certos. Esta divisão, marcada por lutas culturais, parece estar a criar
condições para uma guerra civil, como defende Stephen Marche, mesmo que
a maioria das pessoas não queira acreditar nisso: “Como ninguém quer
o que aí vem, ninguém quer ver o que aí vem.”
Como escapar a este clima de conflito em Portugal, uma vez que
muitos parecem decididos a importar todos os males da sociedade
norte-americana?
Talvez
possamos começar por introduzir alguma humildade na discussão e pensar que, se
o mundo e as suas instituições nos parecem tão errados, é muito mais provável
que o problema esteja em nós do que no mundo: afinal, o mundo está cá há mais
tempo. Há redescrições da família que podem ser necessárias, mas nem todas as
redescrições são positivas.
De seguida, talvez devamos introduzir algum distanciamento e
reconhecer que nenhuma luta é justa quando um dos lados recusa ouvir os
argumentos contrários, considerando que o insulto e a humilhação do outro são o
caminho correcto. Como quase sempre acontece, a realidade é muito mais complexa
do que os twitters desta vida dão a entender, e dificilmente o lado
justicialista terá toda a razão.
Talvez
possamos depois introduzir alguma racionalidade na discussão e reconhecer que
há bons argumentos e dados empíricos válidos para a defesa da família enquanto
instituição de estabilidade. O Moynihan Report é um estudo clássico
e de mérito ainda reconhecido sobre as relações de forte causalidade
entre monoparentalidade e pobreza; a
estabilidade familiar oferece maiores condições de saúde mental; a exclusão
social e económica está quase sempre relacionada com a perda de referências
familiares; e a família orienta-nos para o reconhecimento dos sacríficos
pessoais que estamos dispostos a fazer. Demonizar a família porque ela
não se adapta aos nossos projectos de vida é quase sempre um mau caminho.
Em última instância, podemos recorrer
aos mais clássicos dos clássicos e comparar as visões da família de Platão e
Aristóteles. Embora um deles tenha dito coisas menos aceitáveis, aos nossos
olhos, sobre a mulher e a escravatura, apenas um deles, o que aboliu a família,
imaginou um estado totalitário.
SOCIEDADE FAMÍLIA LIFESTYLE COMPORTAMENTO
COMENTÁRIOS (de 11)
João Floriano: Como é
habitual uma excelente crónica que introduz largos motivos de reflexão e
discussão. Família e feminismo: por estes dias tem-se falado muito de família a
propósito das inconfidências de Marcelo Rebelo de Sousa sobre as suas
preferências familiares. Foi penoso ouvir sobre o afastamento do filho Nuno,
que parece ter começado a existir antes do caso das gémeas e ao pódio dos netos
preferidos, Passou talvez despercebida a notícia das desavenças cada vez
maiores na família real espanhola, profundamente matriarcal já que tanto o rei
emérito como Filipe VI assistem impotentes às brigas de quatro mulheres
poderosas ( Sofia, as infantas e Letizia). As feministas ocidentais queixam-se
de barriga cheia. É extremamente fácil ser feminista e lutar com sucesso, pelos
direitos das mulheres nesta parte do mundo. Não digo que vivamos num mundo
perfeito, muito longe disso, mas o mundo perfeito não existe, é a utopia. O que
se pretende no universo feminista dos países de primeiro mundo, com amplas
liberdades democráticas que ofuscam muitas vezes os deveres inerentes a uma sã
cidadania não é a igualdade entre homens e mulheres ( a dicotomia mais simples
onde se discute para além da biologia o que é uma Mulher e logo o que é um
Homem). Muitas das nossas activistas pelo feminismo procuram, isso sim,
superiorizar-se perante os homens e precisam de o demonstrar a todo o momento .
Aquilo que observo é que se redescreve a família, que se desenha uma nova
construção familiar mais alargada, com muitas variações, com muitas opções em
que o tradicional ditado que diz que a Família não se escolhe já não é o que
era dantes. Até se pode escolher não escolher qualquer família. Contudo todos sem excepção procuram os mesmos
valores que sempre se desejaram na família tradicional: o afecto, o apoio, a
compaixão, o abraço, a companhia, a âncora. Com tanta gente infeliz e deprimida
a contribuir para a indústria dos ansiolíticos e dos soporíferos, dá que pensar
se a nossa sociedade anda a fazer as coisas certas.
Luis Silva: Quando uma mulher tem talento não precisa
de se vitimizar por não ter sucesso devido a ser mulher. Não me lembro deJ. K.
Rowling, se vitimizar alguma vez.
bento guerra > João Floriano: Marcelo
afastou o filho e quer que o pai colonialista preste contas. Não tem primeira
dama, nem presença feminina pública que o acompanhe, excepto aquelas
pacientes guardas pessoais. É um tipo seco, excepto na beijoquice popular. Falta-lhe
o saber fazer e ser feminino, que não é feminista
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