terça-feira, 9 de abril de 2024

Um texto de excelência


De Patrícia Fernandes, com um estudo historiográfico sobre a transformação gradual do sentido de cidadania, apelativo da defesa do espaço físico, com a necessária formação militar, que o ideal democrático tornou irrelevante.

Armemo-nos e ide

Nestes 50 anos fomos consolidando um regime de liberdades individuais, estado social e vários tipos de privilégios, e parecemos olhar com surpresa para quem recorda que esses direitos implicam deveres

PATRÍCIA FERNANDES, Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 8 abr. 2024, 00:2022

Reza a História que, ao atingir os 18 anos, os rapazes eram sujeitos a um ritual de emancipação que os tornava cidadãos. Com esse estatuto vinha um conjunto de direitos políticos, nomeadamente de participar no governo da cidade, mas, acima de tudo, resultava dele o dever maior de garantir a defesa da cidade. Na medida em que constituíam pequenas unidades políticas, as cidades da antiguidade estavam sob ameaça constante pelo que a preparação militar e a permanente disponibilidade dos cidadãos para as defender ocupava um lugar central na sua organização. É por essa razão que, no momento de inscrição como cidadãos da cidade, os jovens eram sujeitos a uma espécie de treino militar durante dois anos, período conhecido como efebia. Como nos diz Claude Mossé, em O cidadão na Grécia Antiga:

“Este período de dois anos representava a adaptação às realidades da cidade de antigos rituais de iniciação que faziam passar os efebos da adolescência à condição de cidadãos de pleno direito.”

Falamos de Atenas e do período que designamos como clássico ou democrático. Até lá, as cidades gregas eram fundamentalmente aristocráticas e a defesa comum era garantida por uma aristocracia de guerreiros. O caminho para a igualdade política, o mesmo é dizer, para a democracia, passou pela transformação do exército e a sua abertura a outras classes, como a revolução hoplítica demonstra.

A consideração simplista de que a democracia antiga era lacunar porque excluía as mulheres, os escravos e os estrangeiros da cidadania esquece este aspecto fundamental e que Aristóteles deixa claro: a cidadania política resultava daquela disponibilidade, hoje tão fora de moda, de lutar (e morrer) pela cidade. Não era expectável que as mulheres o fizessem em virtude da sua biologia – mesmo em Esparta, onde eram sujeitas a treino militar semelhante ao dos homens, não participavam nos conflitos. Também os escravos estavam dispensados desta disponibilidade, embora o conceito de participação seja aqui mais fluído (podiam ser remadores ou transportar as armas dos seus senhores); mas, em muitas circunstâncias, era-lhes garantida liberdade, e até cidadania, se lutassem. É no que diz respeito aos metecos que aquela regra se torna uma anomalia, como diz George Mavrogordatos, pois tinham o dever de defender a cidade, mesmo sem direitos políticos ou expectativa de os adquirir (embora pudessem, muito excecionalmente, conseguir a cidadania por serviços prestados à cidade).

A relação entre o estatuto de cidadão e a obrigação militar era assim indissolúvele não apenas em Esparta, como por vezes se diz. Os gregos sabiam que a sua condição de superioridade –não eram bárbaros – não resultava apenas da sua língua, mas também da sua condição política de verticalidade: eles eram politicamente livres, o que significa que não se vergavam perante um líder, mas sabiam que essa liberdade política só era garantida com a autonomia da cidade e daí resultava a exigência de a defender. É por essa razão que o discurso de Péricles, maioritariamente dedicado ao elogio a Atenas, é, na verdade e essencialmente, um elogio àqueles que morreram por Atenas:

“Tiveram confiança neles mesmos no momento da batalha e ao encontrar-se ante o perigo, sustentados pela esperança ante a incerteza do êxito. Preferiram buscar a sua salvação na destruição do inimigo, e antes na morte que no covarde abandono; assim escaparam à desonra e perderam a vida. No azar de um instante nos deixaram, alcançando o mais alto cume da glória e não a baixa recordação do seu medo. Dessa forma é que se mostraram filhos dignos da cidade.”

Será este o aspeto que mais distancia as sociedades ocidentais do século XXI da tradição de que deveríamos ser herdeiros? É que a relação que se estabelecia então entre o cidadão e a cidade parece exactamente inversa àquela que consagramos nas últimas décadas entre nós. Para os gregos, os seus direitos políticos e a sua forma de vida (nomeadamente enquanto manifestação de religiosidade) só estavam garantidos se a cidade se mantivesse independente, pelo que exigiam a sua defesa. A cidadania era uma dívida que cada cidadão tinha para com a cidade.

Designemos este modelo, em que os deveres prevalecem sobre os direitos, por cidadania de deveres. A ele se oporá um modelo que encontra também as suas raízes na Antiguidade, mas agora no contexto de expansão imperial e, nessa medida, longe do espírito democrático: trata-se da cidadania romana, que consagra um estatuto de privilégios e corresponde, portanto, a uma cidadania de direitos. São duas formas distintas de entender a relação entre o indivíduo e a cidade e compreendem perigos diferentes: o primeiro tenderá a fortalecer a identidade comunitária, podendo exacerbar um espírito nacionalista; o segundo tende a deslassar o conceito de cidadania, que acaba por perder o seu sentido (pensemos no Édito do Imperador Caracala que, ao atribuir a cidadania a todos os homens livres do império, tornou-a irrelevante).

O mais significativo é que estes dois modelos parecem responder a exigências históricas diferentes: o primeiro tenderá a prevalecer em momentos de conflitualidade ou de ameaças militares ou políticas; o segundo acaba por se instalar quando o ar dos tempos se torna mais pacífico e as virtudes públicas perdem valor. É precisamente essa ductilidade que encontramos na evolução do constitucionalismo português, que estabelece o dever de “amar a pátria” e “defendê-la com as armas” na Constituição de 1822, até se transformar numa formulação desprovida de espiritualidade em 1976: “A defesa da Pátria é dever fundamental de todos os portugueses.”

De facto, ao longo dos últimos 50 anos fomos consolidando um regime de liberdades individuais, estado social e diversos tipos de privilégios, e parecemos olhar com surpresa para quem recorda que esses direitos implicam deveres. Assim, tem sido difícil, nos últimos dias, não nos lembrarmos da formulação de Jaime Nogueira Pinto quando nota esta contradição: “Armemo-nos e… ide!”

Como chegamos a esta cidadania de direitos que faz esquecer os deveres? E porque devemos abandoná-la? Essa é a grande vitória de Putin, e debruçar-nos-emos sobre ela na próxima semana.

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COMENTÁRIOS (de 25):

Rui Lima: Porquê defender um espaço de terra no mundo ocidental que passou a ser de todos os que o queiram? Quando fui militar sentia que Portugal era dos portugueses e França era dos franceses, hoje é de todos sem que tenham de prestar juramento aos valores da nação. Com um aspecto nunca dito: há países onde quase metade da juventude tem origem estrangeira, sente ódio ao país onde vive, tem outra cultura e valores, nunca dará a vida pelo país onde vive. A Europa está perdida, duvido que a sua cultura resista, hoje em França é só ver notícias recentes e diárias nem sempre com mortes, mas graves , embora a grande imprensa as ignore. Uma miúda muçulmana por trajar à ocidental fica em coma ou um rapaz que namora com uma miúda dessa cultura é morto pelos familiares, a vida nas escolas é um inferno.

Carlos Chaves: Não há direitos sem deveres, quem disser o contrário, mente!

Afonso Soares: O SMO nunca devia ter sido anulado. É uma falácia pensarmos que o ser humano passou, com um estalar de dedos, a ser bonzinho. Isso não existe. As nações foram fundadas na guerra. Olhem para a EUROPA. O continente mais retalhado do mundo. Sempre em guerra. Só houve paz com a fundação da CEE, hoje União Europeia. Hoje vivemos tempos conturbados, mas não queremos combater, estamos à espera que venham os americanos defender-nos. Vivemos num mundo da treta, do faz de conta. Mas é bom que nos preparemos para o pior e esperando que venha o melhor. Fiz cerca de quatro anos de SMO como toda a minha geração.

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