De Patrícia
Fernandes, com um estudo historiográfico sobre a transformação
gradual do sentido de cidadania, apelativo da defesa do espaço físico, com a necessária
formação militar, que o ideal democrático tornou irrelevante.
Armemo-nos e ide
Nestes 50 anos fomos consolidando um
regime de liberdades individuais, estado social e vários tipos de privilégios,
e parecemos olhar com surpresa para quem recorda que esses direitos implicam
deveres
PATRÍCIA FERNANDES,
Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 8 abr. 2024, 00:2022
Reza a História que, ao atingir os 18
anos, os rapazes eram sujeitos a um ritual de emancipação que os tornava
cidadãos. Com esse
estatuto vinha um conjunto de direitos políticos, nomeadamente de participar no
governo da cidade, mas, acima de tudo, resultava dele o dever maior de garantir
a defesa da cidade. Na medida em que constituíam pequenas unidades políticas,
as cidades da antiguidade estavam sob ameaça constante pelo que a preparação
militar e a permanente disponibilidade dos cidadãos para as defender ocupava um
lugar central na sua organização. É por essa razão que, no momento
de inscrição como cidadãos da cidade, os jovens eram sujeitos a uma espécie de
treino militar durante dois anos, período conhecido como efebia. Como nos diz Claude Mossé,
em O cidadão na Grécia Antiga:
“Este
período de dois anos representava a adaptação às realidades da cidade de
antigos rituais de iniciação que faziam passar os efebos da adolescência à
condição de cidadãos de pleno direito.”
Falamos de Atenas e do período que
designamos como clássico ou democrático. Até lá, as cidades gregas eram
fundamentalmente aristocráticas e a defesa comum era garantida por uma aristocracia
de guerreiros. O caminho para a igualdade política, o mesmo é
dizer, para a democracia, passou pela transformação do exército e a sua
abertura a outras classes, como a revolução hoplítica demonstra.
A
consideração simplista de que a democracia antiga era lacunar porque excluía as
mulheres, os escravos e os estrangeiros da cidadania esquece este aspecto
fundamental e que Aristóteles deixa claro: a
cidadania política resultava daquela disponibilidade, hoje tão fora de moda, de
lutar (e morrer) pela cidade. Não era expectável que as mulheres o fizessem em
virtude da sua biologia – mesmo em
Esparta, onde eram sujeitas a treino militar semelhante ao dos homens, não
participavam nos conflitos. Também
os escravos estavam dispensados desta disponibilidade, embora o conceito de
participação seja aqui mais fluído (podiam ser remadores ou transportar as
armas dos seus senhores); mas, em muitas circunstâncias, era-lhes garantida
liberdade, e até cidadania, se lutassem. É no que diz respeito aos metecos
que
aquela regra se torna uma anomalia, como diz George Mavrogordatos, pois
tinham o dever de defender a cidade, mesmo sem direitos políticos ou
expectativa de os adquirir (embora pudessem, muito excecionalmente, conseguir a
cidadania por serviços prestados à cidade).
A relação entre o estatuto de cidadão e a obrigação militar era
assim indissolúvel – e não
apenas em Esparta, como por vezes se diz. Os gregos sabiam que a sua condição de superioridade –não eram
bárbaros – não resultava apenas da
sua língua, mas também da sua condição política de verticalidade: eles
eram politicamente livres, o que significa que não se vergavam perante um
líder, mas sabiam que essa liberdade política só era garantida com a autonomia
da cidade e daí resultava a exigência de a defender. É por essa razão que o discurso de
Péricles, maioritariamente
dedicado ao elogio a Atenas, é, na verdade e essencialmente, um elogio àqueles que
morreram por Atenas:
“Tiveram confiança neles mesmos
no momento da batalha e ao encontrar-se ante o perigo, sustentados pela
esperança ante a incerteza do êxito. Preferiram buscar a sua salvação na
destruição do inimigo, e antes na morte que no covarde abandono; assim
escaparam à desonra e perderam a vida. No azar de um instante nos deixaram,
alcançando o mais alto cume da glória e não a baixa recordação do seu medo.
Dessa forma é que se mostraram filhos dignos da cidade.”
Será este o aspeto que mais distancia
as sociedades ocidentais do século XXI da tradição de que deveríamos ser
herdeiros? É que a
relação que se estabelecia então entre o cidadão e a cidade parece exactamente
inversa àquela que consagramos nas últimas décadas entre nós. Para
os gregos, os seus direitos políticos e a sua forma de vida (nomeadamente
enquanto manifestação de religiosidade) só estavam garantidos se a cidade se
mantivesse independente, pelo que exigiam a sua defesa. A cidadania era uma dívida
que cada cidadão tinha para com a cidade.
Designemos este modelo, em que os
deveres prevalecem sobre os direitos, por cidadania de deveres. A ele se oporá um modelo que encontra também
as suas raízes na Antiguidade, mas agora no contexto de expansão imperial e,
nessa medida, longe do espírito democrático: trata-se da cidadania
romana, que consagra um estatuto de
privilégios e corresponde, portanto, a uma cidadania de direitos. São
duas formas distintas de entender a relação entre o indivíduo e a cidade e
compreendem perigos diferentes: o primeiro tenderá a fortalecer a identidade
comunitária, podendo exacerbar um
espírito nacionalista; o segundo tende
a deslassar o conceito de cidadania, que acaba por perder o seu sentido
(pensemos no Édito do Imperador Caracala que, ao atribuir a cidadania a todos os homens livres do império, tornou-a
irrelevante).
O mais significativo é que estes dois
modelos parecem responder a exigências históricas diferentes: o primeiro tenderá a prevalecer em
momentos de conflitualidade ou de ameaças militares ou políticas; o segundo
acaba por se instalar quando o ar dos tempos se torna mais pacífico e as
virtudes públicas perdem valor. É precisamente essa
ductilidade que encontramos na evolução do constitucionalismo português, que
estabelece o dever de “amar a pátria” e “defendê-la com as armas” na
Constituição de 1822, até se transformar numa formulação desprovida de
espiritualidade em 1976: “A defesa da
Pátria é dever fundamental de todos os portugueses.”
De facto, ao longo dos últimos 50 anos
fomos consolidando um regime de liberdades individuais, estado social e
diversos tipos de privilégios, e parecemos olhar com surpresa para quem recorda
que esses direitos implicam deveres. Assim,
tem sido difícil, nos últimos dias, não nos lembrarmos da formulação de Jaime
Nogueira Pinto quando nota esta contradição: “Armemo-nos
e… ide!”
Como chegamos a esta cidadania de direitos que faz esquecer os
deveres? E porque devemos abandoná-la? Essa é a grande vitória de Putin, e
debruçar-nos-emos sobre ela na próxima semana.
COMENTÁRIOS
(de 25):
Rui Lima: Porquê defender um espaço de terra no mundo ocidental
que passou a ser de todos os que o queiram? Quando fui militar sentia que
Portugal era dos portugueses e França era dos franceses, hoje é de todos sem
que tenham de prestar juramento aos valores da nação. Com um aspecto nunca dito:
há países onde quase metade da juventude tem origem estrangeira, sente ódio ao
país onde vive, tem outra cultura e valores, nunca dará a vida pelo país onde
vive. A Europa está perdida, duvido que a sua cultura resista, hoje em França é
só ver notícias recentes e diárias nem sempre com mortes, mas graves , embora a
grande imprensa as ignore. Uma miúda muçulmana por trajar à ocidental fica em
coma ou um rapaz que namora com uma miúda dessa cultura é morto pelos
familiares, a vida nas escolas é um inferno.
Carlos Chaves: Não há direitos sem deveres,
quem disser o contrário, mente!
Afonso Soares: O SMO nunca devia ter sido anulado.
É uma falácia pensarmos que o ser humano passou, com um estalar de dedos, a ser
bonzinho. Isso não existe. As nações foram fundadas na guerra. Olhem para a EUROPA.
O continente mais retalhado do mundo. Sempre em guerra. Só houve paz com a
fundação da CEE, hoje União Europeia. Hoje vivemos tempos conturbados, mas não
queremos combater, estamos à espera que venham os americanos defender-nos.
Vivemos num mundo da treta, do faz de conta. Mas é bom que nos preparemos para
o pior e esperando que venha o melhor. Fiz cerca de quatro anos de SMO como
toda a minha geração.
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