terça-feira, 2 de abril de 2024

O que fomos

 

O que somos. Dependentes de um Estado-Garante… E se não garante, faremos greves. E não teremos disso, vergonha. Será assim na sociedade livre? Nem todos os povos, todavia, assim procedem, que os governos dominadores não o permitem, forçando à luta. Mas é uma boa análise, de R. Adão da Fonseca, sem dúvida, apoiada em saber e sensibilidade.

 

Riqueza e felicidade

O valor das conexões profundas com família, amigos e comunidade tem de ser recuperado, é fundamental que a empatia volte a ser um valor em si, e que voltemos a ter capacidade de reconciliar diferenças

RODRIGO ADÃO DA FONSECA Colunista

OBSERVADOR, 02 abr. 2024, 00:153

 “Numa sociedade livre, não é o bem-estar do indivíduo que deve ser maximizado, mas a sua liberdade para perseguir o seu próprio bem-estar” – Tyler Cowen

Um dos grandes falhanços das sociedades modernas está na dificuldade em conseguir, a despeito do crescimento económico espectacular a que assistimos nas últimas décadas, manter níveis de felicidade e coesão social compatíveis com o grau de desenvolvimento que fomos capazes de atingir.

No plano político e económico, o século XX foi marcado pelo conflito entre a criação da riqueza e a sua distribuição, numa tentativa de colocar o capitalismo e o resultado do crescimento potenciado pelas revoluções industriais ao serviço das aspirações de todos. Fruto de uma influência significativa do marxismo, no plano filosófico, grande parte das teorias políticas acabaram por enfatizar excessivamente a importância da satisfação das necessidades materiais como um pré-requisito para a realização humana e a felicidade. Recorde-se, para Marx as condições materiais de existência tinham um papel central na determinação da vida social e individual, incluindo a consciência e o bem-estar dos indivíduos. A teoria marxista colocava uma forte ênfase na maneira como as relações económicas e as condições materiais afectavam a estrutura da sociedade, incluindo as relações sociais, políticas e culturais. Ora, em boa verdade, o crescimento exponencial das capacidades produtivas e do conhecimento humano, em especial, do conhecimento científico, e as tensões e transformações que tal desenvolvimento causou nas relações sociais e económicas, fizeram do marxismo e das doutrinas daí derivadas o referencial intelectual durante várias décadas, seja para os seus seguidores, seja para os seus detractores: trotskistas, fabianos, socialistas, sociais-democratas, democratas-cristãos, todos eles pensaram politicamente em diálogo – ou dialéctica – com o marxismo, limitados assim pelo materialismo e pela busca de um homem novo.

Ocorre que, durante décadas, tal foi suficiente. A satisfação das necessidades materiais e a luta pela redistribuição dos frutos do constante progresso económico foram bastantes para dar sentido aos projectos políticos e sustentar as respectivas narrativas junto do povo. A construção das sociedades de bem-estar e as profundas transformações culturais e sociais associadas à libertação do trabalho agrícola, à qualificação das classes médias, à urbanização e desenvolvimento de grandes metrópoles, e à emancipação de uma larga maioria da população cujos pais viviam na pobreza, justificaram só por si a afirmação de democracias onde objectivos políticos com diversos matizes eram claros e possíveis de satisfazer.

Hoje, porém, as sociedades e a política enfrentam desafios de outra dimensão. A revolução digital trouxe mudanças significativas na forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos, originando novas questões económicas, sociais e éticas que exigem uma abordagem mais ampla e adaptada aos tempos actuais. As sociedades contemporâneas, profundamente transformadas pela revolução digital, enfrentam desafios complexos e multifacetados que não encontram resposta nas soluções pensadas para os desafios do século XX, fortemente limitadas pelo materialismo.

Ocorre que no plano político as democracias e os partidos políticos que as dinamizam continuam agarradas às cartilhas antigas, algo que está a provocar uma profunda aversão junto dos eleitores. Não é à toa que os vários governos, não obstante disporem, no plano quantitativo, de inúmeras fontes de receita, encontram dificuldades na hora de satisfazer populações que têm, hoje, uma visão mais ampla e qualitativa da riqueza, profundamente multifacetada, muito para além da acumulação financeira. Hoje, a riqueza não é vista como uma questão de prosperidade financeira, as pessoas aspiram a desenvolvimento pessoal, à realização e à busca pelas paixões e interesses de cada um. A riqueza da vida, na sociedade actual, advém cada vez mais de experiências que promovem crescimento, compreensão e satisfação. Sendo esta visão profundamente subjectiva, difusa, e altamente perene, ela é frequentemente fonte de frustração individual. Acresce que a profunda atomização a que assistimos é impossível de corporizar ou reconciliar em projectos políticos transversais, assentes no contrato social. Esta é a razão fundamental pela qual as democracias digitais são cada vez mais incapazes de estabilizar objectivos e projectos para toda uma sociedade, não havendo grande espaço para a apologia de ideais utópicos e agregadores construídos à volta de projectos políticos consensuais. Se continuarmos a insistir em modelos políticos onde o Estado insista em tudo prover ou condicionar, necessariamente continuará a vencer a náusea, a frustração e o ruído que resultam da incapacidade de o próprio Estado dar resposta às aspirações que cada cidadão constrói para si.

Estando a política a perder o seu sentido essencial, aquele que a tornou útil aos olhos dos cidadãos depois da 2.ª Guerra Mundial, as democracias entraram numa espiral de negatividade onde os problemas surgem amplificados e desconectados da própria realidade. Pouco importa se há ou não corrupção, se existe ou não mais violência, a percepção lidera e é ela que determina o sucesso ou fracasso das eleições.

A política terá, nos próximos anos, que se adaptar às exigências de um tempo em que os cidadãos aspiram a muito mais, e de forma muito distinta. As pessoas, hoje, dão hoje uma enorme importância à resiliência emocional, felicidade e saúde mental, temas que surgem hoje como prioridade. Querem poder aceder ao conhecimento, e dispor de condições pessoais para construírem vidas equilibradas e emocionalmente ricas, querem ser capazes de navegar na incerteza com um sentido de paz e estabilidade. Quem politicamente não compreender estas exigências, pensando que tudo se resolve numa dimensão meramente financeira, fechada em Estados-Garante, não será capaz de resolver os problemas profundos que estão a erodir a qualidade das democracias.

Antes, porém, de pensarmos como devem ser as democracias para responder aos desafios do futuro (seguramente democracias onde o Estado deverá ser muito menos provedor de serviços, e muito mais facilitador da afirmação e realização individuais), é essencial que a política consiga recuperar algo que o digital tem vindo a destruir: relacionamentos fortes e de apoio recíproco, e um sentido de pertença dentro de uma comunidade terão de voltar a ser vistos como componentes integrais da satisfação individual. O valor das conexões profundas com a família, amigos e comunidade tem de ser recuperado, é fundamental que a empatia volte a ser um valor em si, e que consigamos de novo voltar a ter capacidade de reconciliar diferenças, sem as eliminar. Se continuarmos a ter pessoas fechadas sobre si próprias, alienadas da realidade, incapazes de compreender que a vida em sociedade se faz de compromissos e objectivos partilhados, com a aceitação de regras mínimas assentes no pluralismo, dificilmente deixaremos de ter a política capturada pelos piores, pelos mais corruptos, por todos os que sabem cavalgar na demagogia e na desesperança.

 

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