O que somos. Dependentes de um
Estado-Garante… E se não garante, faremos greves. E não teremos disso,
vergonha. Será assim na sociedade livre? Nem todos os povos, todavia, assim
procedem, que os governos dominadores não o permitem, forçando à luta. Mas é
uma boa análise, de R. Adão da
Fonseca, sem dúvida, apoiada em saber e sensibilidade.
Riqueza e felicidade
O valor das conexões profundas com
família, amigos e comunidade tem de ser recuperado, é fundamental que a empatia
volte a ser um valor em si, e que voltemos a ter capacidade de reconciliar diferenças
RODRIGO ADÃO
DA FONSECA
Colunista
OBSERVADOR, 02
abr. 2024, 00:153
“Numa
sociedade livre, não é o bem-estar do indivíduo que deve ser maximizado, mas a
sua liberdade para perseguir o seu próprio bem-estar” – Tyler Cowen
Um dos grandes falhanços das
sociedades modernas está na dificuldade em conseguir, a despeito do
crescimento económico espectacular a que assistimos nas últimas décadas, manter níveis de felicidade e coesão
social compatíveis com o grau de desenvolvimento que fomos capazes de atingir.
No plano político e económico, o
século XX foi marcado pelo
conflito entre a criação da riqueza e a sua distribuição, numa tentativa de colocar o capitalismo e o resultado do crescimento
potenciado pelas revoluções industriais ao serviço das aspirações de todos.
Fruto de uma influência significativa do marxismo, no plano filosófico,
grande parte das teorias políticas acabaram por enfatizar excessivamente a
importância da satisfação das necessidades materiais como um pré-requisito para
a realização humana e a felicidade. Recorde-se, para
Marx as condições materiais de existência tinham um papel central na
determinação da vida social e individual, incluindo a consciência e o bem-estar
dos indivíduos. A teoria
marxista colocava uma forte ênfase na maneira como as relações económicas e as
condições materiais afectavam a estrutura da sociedade, incluindo as relações
sociais, políticas e culturais. Ora, em boa verdade, o crescimento exponencial das capacidades
produtivas e do conhecimento humano, em especial, do conhecimento científico, e
as tensões e transformações que tal desenvolvimento causou nas relações sociais
e económicas, fizeram
do marxismo e das doutrinas daí derivadas o referencial intelectual durante
várias décadas, seja
para os seus seguidores, seja para os seus detractores: trotskistas, fabianos,
socialistas, sociais-democratas, democratas-cristãos, todos eles pensaram
politicamente em diálogo – ou dialéctica – com o marxismo, limitados assim pelo
materialismo e pela busca de um homem novo.
Ocorre que, durante décadas,
tal foi suficiente. A
satisfação das necessidades materiais e a luta pela redistribuição dos frutos
do constante progresso económico foram bastantes para dar sentido aos projectos
políticos e sustentar as respectivas narrativas junto do povo. A construção das sociedades de bem-estar
e as profundas transformações culturais e sociais associadas à libertação
do trabalho agrícola, à qualificação das classes médias, à urbanização e
desenvolvimento de grandes metrópoles, e à emancipação de uma larga maioria da
população cujos pais viviam na pobreza, justificaram
só por si a afirmação de democracias onde objectivos políticos com diversos
matizes eram claros e possíveis de satisfazer.
Hoje, porém, as sociedades e a
política enfrentam desafios de outra dimensão. A revolução
digital trouxe
mudanças significativas na forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos,
originando novas questões económicas, sociais e éticas que exigem uma abordagem
mais ampla e adaptada aos tempos actuais. As sociedades contemporâneas,
profundamente transformadas pela revolução digital, enfrentam desafios
complexos e multifacetados que
não encontram resposta nas soluções pensadas para os desafios do século XX,
fortemente limitadas pelo materialismo.
Ocorre que no plano político as
democracias e os partidos políticos que as dinamizam continuam agarradas às cartilhas antigas, algo que está a provocar
uma profunda aversão junto dos eleitores. Não
é à toa que os vários governos, não obstante disporem, no plano quantitativo,
de inúmeras fontes de receita, encontram dificuldades na hora de satisfazer
populações que têm, hoje, uma visão mais ampla e qualitativa da riqueza,
profundamente multifacetada, muito para além da acumulação financeira. Hoje, a
riqueza não é vista como uma questão de prosperidade financeira, as pessoas aspiram a desenvolvimento pessoal,
à realização e à busca pelas paixões e interesses de cada um. A riqueza da vida, na sociedade actual,
advém cada vez mais de experiências que promovem crescimento, compreensão e
satisfação. Sendo esta visão profundamente subjectiva,
difusa, e altamente perene, ela é frequentemente fonte de frustração individual. Acresce que a profunda atomização a que assistimos é impossível de corporizar ou reconciliar em projectos
políticos transversais, assentes no contrato social. Esta é a razão fundamental
pela qual as democracias digitais são cada vez mais incapazes de
estabilizar objectivos e projectos para toda uma sociedade, não havendo grande
espaço para a apologia de ideais utópicos e agregadores construídos à volta de
projectos políticos consensuais. Se continuarmos a insistir em modelos
políticos onde o Estado insista em tudo
prover ou condicionar, necessariamente continuará a vencer a náusea, a
frustração e o ruído que resultam da incapacidade de o próprio Estado dar
resposta às aspirações que cada cidadão constrói para si.
Estando a política a perder o seu
sentido essencial, aquele que a tornou útil aos olhos dos cidadãos depois da
2.ª Guerra Mundial, as democracias entraram numa espiral de negatividade
onde os problemas surgem amplificados e desconectados da própria realidade.
Pouco importa se há ou não corrupção, se existe ou não mais violência, a percepção
lidera e é ela que determina o sucesso ou fracasso das eleições.
A política terá,
nos próximos anos, que se adaptar às exigências de um tempo em que os cidadãos
aspiram a muito mais, e de forma muito distinta. As
pessoas, hoje,
dão hoje uma enorme importância à resiliência emocional, felicidade e saúde mental, temas que surgem hoje como prioridade. Querem
poder aceder ao conhecimento, e dispor de condições pessoais para construírem
vidas equilibradas e emocionalmente ricas, querem ser capazes de navegar na
incerteza com um sentido de paz e estabilidade. Quem
politicamente não compreender estas exigências, pensando que tudo se resolve
numa dimensão meramente financeira, fechada em Estados-Garante, não será capaz de resolver os problemas profundos
que estão a erodir a qualidade das democracias.
Antes, porém, de pensarmos como devem
ser as democracias para responder aos desafios do futuro (seguramente
democracias onde o Estado deverá ser muito menos provedor de serviços, e muito
mais facilitador da afirmação e realização individuais), é essencial que a
política consiga recuperar algo que o digital tem vindo a destruir: relacionamentos
fortes e de apoio recíproco, e um sentido de pertença dentro de uma comunidade terão de
voltar a ser vistos como componentes integrais da satisfação individual. O valor das conexões profundas com a
família, amigos e comunidade tem de ser recuperado, é fundamental que a empatia
volte a ser um valor em si, e que consigamos de novo voltar a ter capacidade de
reconciliar diferenças, sem as eliminar. Se continuarmos a ter pessoas
fechadas sobre si próprias, alienadas da realidade, incapazes de compreender
que a vida em sociedade se faz de
compromissos e objectivos partilhados, com a aceitação de regras mínimas
assentes no pluralismo, dificilmente deixaremos de ter a política capturada
pelos piores, pelos mais corruptos, por todos os que sabem cavalgar na
demagogia e na desesperança.
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