quarta-feira, 24 de abril de 2024

Ser-se feliz, hoje

 

Houve um tempo em que grassou – pelo menos entre os literatos - a teoria da “aurea mediocritas”, uma mediania dourada pelas leituras dos clássicos primeiros, que ditaram as leis da satisfação humana surgida fundamentalmente com os valores do conhecimento. O desenvolvimento da burguesia cavou fundas diferenças económicas e respectivas impertinentes décalages entre ricos e pobres que posteriormente os apóstolos das igualdades fraternais vivamente condenaram, fazendo eclodir as consciências dos que os liam e divulgavam - no objectivo primeiro de difundir uma autopromoção de superioridade intelectual e de virtude, condenatórias das irregularidades humanas que a História dos povos desenvolveu através dos grandes empreendimentos descobridores e favorecedores de mais saliência crítica contemporânea, conquanto não isenta do aproveitamento pecuniário que também a esses elas concederam, e que, afinal, não dispensaram nas suas vidas. Mas os resquícios desses novos ideais igualitariamente fraternos – de modo abstracto, cuido eu, (tirante os esgares de simpatia e doces falas, demonstrados pelos seus actuais principais promotores) – são hoje contrabalançados pelo desrespeito pelos valores tradicionais, de cuja retoma trata em parte o texto de Rodrigo Adão da Fonseca, que requer a manutenção desses valores para a felicidade humana, integrados para todos (aparentemente), em autenticidade familiar e comunal, para tal exigindo, naturalmente, bem-estar económico generalizado, trazido pelo progresso. Entre nós, por cá, é certo, despido dos valores que dantes se atribuíam, também, ao trabalho, como factor para o bem-estar pecuniário - a “pecúnia”, contudo, devida actualmente mais ao empréstimo externo, manietável das sociedades futuras. Não, não sabemos se os valores e as competências de hoje, pouco valorizadoras do passado, serão criadoras da felicidade do Homem actual, apesar do progresso, ou por conta dele.

Leiamos, a animar – e contrabalançar com as filosofias sólidas de RAF - o poema de ideais simples – irónicos embora - de António Nobre - “Canção da Felicidade”, que a Internet nos traz, do “”:

«Felicidade! Felicidade!
Ai quem me dera na minha mão!
Não passar nunca da mesma idade,
Dos 25, do quarteirão…………… »

Riqueza e felicidade

O valor das conexões profundas com família, amigos e comunidade tem de ser recuperado, é fundamental que a empatia volte a ser um valor em si, e que voltemos a ter capacidade de reconciliar diferenças.

RODRIGO ADÃO DA FONSECA Colunista

OBSERVADOR, 2 abr. 2024,

“Numa uma sociedade livre, não é o bem-estar do indivíduo que deve ser maximizado, mas a sua liberdade para perseguir o seu próprio bem-estar”Tyler Cowen

Um dos grandes falhanços das sociedades modernas está na dificuldade em conseguir, a despeito do crescimento económico espectacular a que assistimos nas últimas décadas, manter níveis de felicidade e coesão social compatíveis com o grau de desenvolvimento que fomos capazes de atingir.

No plano político e económico, o século XX foi marcado pelo conflito entre a criação da riqueza e a sua distribuição, numa tentativa de colocar o capitalismo e o resultado do crescimento potenciado pelas revoluções industriais ao serviço das aspirações de todos. Fruto de uma influência significativa do marxismo, no plano filosófico, grande parte das teorias políticas acabaram por enfatizar excessivamente a importância da satisfação das necessidades materiais como um pré-requisito para a realização humana e a felicidade. Recorde-se, para Marx as condições materiais de existência tinham um papel central na determinação da vida social e individual, incluindo a consciência e o bem-estar dos indivíduos. A teoria marxista colocava uma forte ênfase na maneira como as relações económicas e as condições materiais afectavam a estrutura da sociedade, incluindo as relações sociais, políticas e culturais. Ora, em boa verdade, o crescimento exponencial das capacidades produtivas e do conhecimento humano, em especial, do conhecimento científico, e as tensões e transformações que tal desenvolvimento causou nas relações sociais e económicas, fizeram do marxismo e das doutrinas daí derivadas o referencial intelectual durante várias décadas, seja para os seus seguidores, seja para os seus detratores: trotskistas, fabianos, socialistas, sociais-democratas, democratas-cristãos, todos eles pensaram politicamente em diálogo – ou dialéctica – com o marxismo, limitados assim pelo materialismo e pela busca de um homem novo.

Ocorre que, durante décadas, tal foi suficiente. A satisfação das necessidades materiais e a luta pela redistribuição dos frutos do constante progresso económico foram bastantes para dar sentido aos projectos políticos e sustentar as respectivas narrativas junto do povo. A construção das sociedades de bem-estar e as profundas transformações culturas e sociais associadas à libertação do trabalho agrícola, à qualificação das classes médias, à urbanização e desenvolvimento de grandes metrópoles, e à emancipação de uma larga maioria da população cujos pais viviam na pobreza, justificaram só por si a afirmação de democracias onde objectivos políticos com diversos matizes eram claros e possíveis de satisfazer.

Hoje, porém, as sociedades e a política enfrentam desafios de outra dimensão. A revolução digital trouxe mudanças significativas na forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos, originando novas questões económicas, sociais e éticas que exigem uma abordagem mais ampla e adaptada aos tempos actuais. As sociedades contemporâneas, profundamente transformadas pela revolução digital, enfrentam desafios complexos e multifacetados que não encontram resposta nas soluções pensadas para os desafios do século XX, fortemente limitadas pelo materialismo.

Ocorre que no plano político as democracias e os partidos políticos que as dinamizam continuam agarradas às cartilhas antigas, algo que está a provocar uma profunda aversão junto dos eleitores. Não é à toa que os vários governos, não obstante disporem, no plano quantitativo, de inúmeras fontes de receita, encontram dificuldades na hora de satisfazer populações que têm, hoje, uma visão mais ampla e qualitativa da riqueza, profundamente multifacetada, muito para além da acumulação financeira. Hoje, a riqueza não é vista como uma questão de prosperidade financeira, as pessoas aspiram a desenvolvimento pessoal, à realização e à busca pelas paixões e interesses de cada um. A riqueza da vida, na sociedade actual, advém cada vez mais de experiências que promovem crescimento, compreensão e satisfação. Sendo esta visão profundamente subjectiva, difusa, e altamente perene, ela é frequentemente fonte de frustração individual. Acresce que a profunda atomização a que assistimos é impossível de corporizar ou reconciliar em projectos políticos transversais, assentes no contrato social. Esta é a razão fundamental pela qual as democracias digitais são cada vez mais incapazes de estabilizar objectivos e projectos para toda uma sociedade, não havendo grande espaço para a apologia de ideais utópicos e agregadores construídos à volta de projectos políticos consensuais. Se continuarmos a insistir em modelos políticos onde o Estado insista em tudo prover ou condicionar, necessariamente continuará a vencer a náusea, a frustração e o ruído que resultam da incapacidade de o próprio Estado dar resposta às aspirações que cada cidadão constrói para si.

Estando a política a perder o seu sentido essencial, aquele que a tornou útil aos olhos dos cidadãos depois da 2.ª Guerra Mundial, as democracias entraram numa espiral de negatividade onde os problemas surgem amplificados e desconectados da própria realidade. Pouco importa se há ou não corrupção, se existe ou não mais violência, a percepção lidera e é ela que determina o sucesso ou fracasso das eleições.

A política terá, nos próximos anos, que se adaptar às exigências de um tempo em que os cidadãos aspiram a muito mais, e de forma muito distinta. As pessoas dão hoje uma enorme importância à resiliência emocional, felicidade e saúde mental, temas que surgem hoje como prioridade. Querem poder aceder ao conhecimento, e dispor de condições pessoais para construírem vidas equilibradas e emocionalmente ricas, querem ser capazes de navegar na incerteza com um sentido de paz e estabilidade. Quem politicamente não compreender estas exigências, pensando que tudo se resolve numa dimensão meramente financeira, fechada em Estados-Garante, não será capaz de resolver os problemas profundos que estão a erodir a qualidade das democracias.

Antes, porém, de pensarmos como devem ser as democracias para responder aos desafios do futuro (seguramente democracias onde o Estado deverá ser muito menos provedor de serviços, e muito mais facilitador da afirmação e realização individuais), é essencial que a política consiga recuperar algo que o digital tem vindo a destruir: relacionamentos fortes e de apoio recíproco, e um sentido de pertença dentro de uma comunidade terão de voltar a ser vistos como componentes integrais da satisfação individual. O valor das conexões profundas com a família, amigos e comunidade tem de ser recuperado, é fundamental que a empatia volte a ser um valor em si, e que consigamos de novo voltar a ter capacidade de reconciliar diferenças, sem as eliminar. Se continuarmos a ter pessoas fechadas sobre si próprias, alienadas da realidade, incapazes de compreender que a vida em sociedade se faz de compromissos e objectivos partilhados, com a aceitação de regras mínimas assentes no pluralismo, dificilmente deixaremos de ter a política capturada pelos piores, pelos mais corruptos, por todos os que sabem cavalgar na demagogia e na desesperança.

COMENTÁRIOS (de 64)

 Adriana Cardoso: Como contumaz, óptimo artigo. Algo que é mencionado que para mim não calha: “navegar na incerteza com um sentido de paz e estabilidade”. Isso desenvolve-se quando após diversas frustrações e sucessos, mas enfim, riscos, corridos a resiliência, a sabedoria, são moldadas. Associa-se um sentido claro de objectivos inicialmente a médio prazo, construção de valores que advêm do conhecimento dos livros e das tradições que se solidificam no indivíduo por meio da prática desses valores. Em suma, as pessoas buscarem navegar na incerteza sem estas ferramentas mencionadas é quiçá uma nova utopia que pode tornar-se uma nova ideologia e aí ficar, no campo das ideias, das ruminações mentais e posteriormente de mais e mais “direitos” a serem requeridos.                  bento guerra: Tembém são precisos muitos "likes"                    Carlos Chaves: Ora aqui está uma esperança da morte do socialismo!                           João Floriano: Riqueza e felicidade tornaram-se imperativos a concretizar numa sociedade em que os indivíduos têm muitos direitos, poucos deveres, fraca capacidade para lidar com a rejeição e as dificuldades e se sentem pungentemente sós.                     Charlote Oliveira: Excelente colocação, que vai ao âmago dos muitos problemas que o mundo enfrenta no momento. Obrigada!                  Elizabeth Coelho: Excelente artigo. Obrigada.

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