Houve um tempo em que grassou – pelo menos
entre os literatos - a teoria da “aurea mediocritas”, uma mediania dourada pelas
leituras dos clássicos primeiros, que ditaram as leis da satisfação humana
surgida fundamentalmente com os valores do conhecimento. O desenvolvimento da
burguesia cavou fundas diferenças económicas e respectivas impertinentes décalages
entre ricos e pobres que posteriormente os apóstolos das igualdades fraternais
vivamente condenaram, fazendo eclodir as consciências dos que os liam e
divulgavam - no objectivo primeiro de difundir uma autopromoção de superioridade
intelectual e de virtude, condenatórias das irregularidades humanas que a
História dos povos desenvolveu através dos grandes empreendimentos
descobridores e favorecedores de mais saliência crítica contemporânea,
conquanto não isenta do aproveitamento pecuniário que também a esses elas concederam,
e que, afinal, não dispensaram nas suas vidas. Mas os resquícios desses novos
ideais igualitariamente fraternos – de modo abstracto, cuido eu, (tirante os
esgares de simpatia e doces falas, demonstrados pelos seus actuais principais promotores)
– são hoje contrabalançados pelo desrespeito pelos valores
tradicionais, de cuja retoma trata em parte o texto de Rodrigo Adão da Fonseca, que requer a
manutenção desses valores para a felicidade humana, integrados para todos
(aparentemente), em autenticidade familiar e comunal, para tal exigindo,
naturalmente, bem-estar económico generalizado, trazido pelo progresso. Entre nós,
por cá, é certo, despido dos valores que dantes se atribuíam, também, ao
trabalho, como factor para o bem-estar pecuniário - a “pecúnia”, contudo,
devida actualmente mais ao empréstimo externo, manietável das sociedades
futuras. Não, não sabemos se os valores e as competências de hoje, pouco
valorizadoras do passado, serão criadoras da felicidade do Homem actual, apesar
do progresso, ou por conta dele.
Leiamos, a animar – e contrabalançar com
as filosofias sólidas de RAF - o poema de ideais
simples – irónicos embora - de António
Nobre - “Canção da Felicidade”, que a
Internet nos traz, do “SÓ”:
«Felicidade!
Felicidade!
Ai quem me dera na minha mão!
Não passar nunca da mesma idade,
Dos 25, do quarteirão…………… »
Riqueza e felicidade
O valor das conexões profundas com
família, amigos e comunidade tem de ser recuperado, é fundamental que a empatia
volte a ser um valor em si, e que voltemos a ter capacidade de reconciliar
diferenças.
RODRIGO ADÃO DA FONSECA Colunista
OBSERVADOR, 2 abr. 2024,
“Numa uma sociedade livre, não
é o bem-estar do indivíduo que deve ser maximizado, mas a sua liberdade para
perseguir o seu próprio bem-estar” – Tyler Cowen
Um dos grandes falhanços das sociedades modernas está na dificuldade
em conseguir, a despeito do crescimento económico espectacular a que assistimos
nas últimas décadas, manter níveis de felicidade e coesão social compatíveis
com o grau de desenvolvimento que fomos capazes de atingir.
No plano político e económico, o
século XX foi marcado pelo conflito entre a criação da riqueza e a sua
distribuição, numa tentativa de colocar o capitalismo e o resultado do
crescimento potenciado pelas revoluções industriais ao serviço das aspirações
de todos. Fruto de uma influência significativa do marxismo, no plano filosófico, grande
parte das teorias políticas acabaram por enfatizar excessivamente a importância
da satisfação das necessidades materiais como um pré-requisito para a
realização humana e a felicidade. Recorde-se, para
Marx as condições materiais de existência tinham um papel central na
determinação da vida social e individual, incluindo a consciência e o bem-estar
dos indivíduos. A teoria marxista colocava uma forte ênfase na maneira
como as relações económicas e as condições materiais afectavam a estrutura da
sociedade, incluindo as relações sociais, políticas e culturais. Ora,
em boa verdade, o crescimento exponencial das capacidades produtivas e do
conhecimento humano, em especial, do conhecimento científico, e as tensões e
transformações que tal desenvolvimento causou nas relações sociais e
económicas, fizeram do marxismo e das doutrinas daí derivadas o referencial
intelectual durante várias décadas, seja para os seus seguidores, seja para os
seus detratores: trotskistas,
fabianos, socialistas, sociais-democratas, democratas-cristãos, todos eles
pensaram politicamente em diálogo – ou dialéctica – com o marxismo, limitados
assim pelo materialismo e pela busca de um homem novo.
Ocorre que, durante décadas, tal foi
suficiente. A satisfação das
necessidades materiais e a luta pela redistribuição dos frutos do constante
progresso económico foram bastantes para dar sentido aos projectos políticos e
sustentar as respectivas narrativas junto do povo. A construção das
sociedades de bem-estar e as profundas transformações culturas e sociais
associadas à libertação do trabalho agrícola, à qualificação das classes
médias, à urbanização e desenvolvimento de grandes metrópoles, e à emancipação
de uma larga maioria da população cujos pais viviam na pobreza, justificaram só
por si a afirmação de democracias onde objectivos políticos com diversos
matizes eram claros e possíveis de satisfazer.
Hoje, porém, as sociedades e a política
enfrentam desafios de outra dimensão. A revolução
digital trouxe mudanças
significativas na forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos,
originando novas questões económicas, sociais e éticas que exigem uma abordagem
mais ampla e adaptada aos tempos actuais. As sociedades
contemporâneas, profundamente transformadas pela revolução digital, enfrentam
desafios complexos e multifacetados que não encontram resposta nas soluções
pensadas para os desafios do século XX, fortemente limitadas pelo materialismo.
Ocorre
que no plano político as democracias e os partidos políticos que as dinamizam
continuam agarradas às cartilhas antigas, algo que está a provocar uma profunda
aversão junto dos eleitores. Não é à toa que os vários governos,
não obstante disporem, no plano quantitativo, de inúmeras fontes de receita, encontram dificuldades na hora de
satisfazer populações que têm, hoje, uma visão mais ampla e qualitativa da
riqueza, profundamente multifacetada, muito para além da acumulação financeira.
Hoje, a riqueza não é vista como uma questão de prosperidade financeira, as
pessoas aspiram a desenvolvimento pessoal, à realização e à busca pelas paixões
e interesses de cada um. A
riqueza da vida, na sociedade actual, advém cada vez mais de experiências que
promovem crescimento, compreensão e satisfação. Sendo esta visão profundamente
subjectiva, difusa, e altamente perene, ela é frequentemente fonte de
frustração individual. Acresce que
a profunda atomização a que assistimos é impossível de corporizar ou
reconciliar em projectos políticos transversais, assentes no contrato social.
Esta é a razão fundamental pela qual as democracias digitais são cada
vez mais incapazes de estabilizar objectivos e projectos para toda uma
sociedade, não havendo grande espaço para
a apologia de ideais utópicos e agregadores construídos à volta de projectos
políticos consensuais. Se continuarmos a insistir em modelos
políticos onde o Estado insista em tudo prover ou condicionar, necessariamente
continuará a vencer a náusea, a frustração e o ruído que resultam da
incapacidade de o próprio Estado dar resposta às aspirações que cada cidadão
constrói para si.
Estando
a política a perder o seu sentido essencial, aquele que a tornou útil aos olhos
dos cidadãos depois da 2.ª Guerra Mundial, as democracias entraram numa espiral
de negatividade onde os problemas surgem amplificados e desconectados da
própria realidade. Pouco importa se há ou não corrupção, se existe ou não mais
violência, a percepção lidera
e é ela que determina o sucesso ou fracasso das eleições.
A política terá, nos próximos anos, que
se adaptar às exigências de um tempo em que os cidadãos aspiram a muito mais, e
de forma muito distinta. As pessoas dão
hoje uma enorme importância à resiliência emocional, felicidade e saúde mental,
temas que surgem hoje como prioridade. Querem poder aceder ao
conhecimento, e dispor de condições pessoais para construírem vidas
equilibradas e emocionalmente ricas, querem ser capazes de navegar na incerteza
com um sentido de paz e estabilidade. Quem
politicamente não compreender estas exigências, pensando que tudo se resolve
numa dimensão meramente financeira, fechada em Estados-Garante, não será capaz
de resolver os problemas profundos que estão a erodir a qualidade das democracias.
Antes, porém, de pensarmos como devem
ser as democracias para responder aos desafios do futuro (seguramente
democracias onde o Estado deverá ser muito menos provedor de serviços, e muito
mais facilitador da afirmação e realização individuais), é
essencial que a política consiga recuperar algo que o digital tem vindo a
destruir: relacionamentos fortes e de apoio recíproco, e um sentido de pertença
dentro de uma comunidade terão de voltar a ser vistos como componentes
integrais da satisfação individual. O valor das
conexões profundas com a família, amigos e comunidade tem de ser recuperado, é
fundamental que a empatia volte a ser um valor em si, e que consigamos de novo
voltar a ter capacidade de reconciliar diferenças, sem as eliminar. Se
continuarmos a ter pessoas fechadas sobre si próprias, alienadas da realidade,
incapazes de compreender que a vida em sociedade se faz de compromissos e
objectivos partilhados, com a aceitação de regras mínimas assentes no
pluralismo, dificilmente deixaremos de
ter a política capturada pelos piores, pelos mais corruptos, por todos os que
sabem cavalgar na demagogia e na desesperança.
COMENTÁRIOS (de 64)
Adriana Cardoso: Como contumaz, óptimo artigo. Algo que é mencionado que
para mim não calha: “navegar na incerteza com um sentido de paz e
estabilidade”. Isso desenvolve-se quando após diversas frustrações e sucessos,
mas enfim, riscos, corridos a resiliência, a sabedoria, são moldadas.
Associa-se um sentido claro de objectivos inicialmente a médio prazo,
construção de valores que advêm do conhecimento dos livros e das tradições que se
solidificam no indivíduo por meio da prática desses valores. Em suma, as
pessoas buscarem navegar na incerteza sem estas ferramentas mencionadas é quiçá
uma nova utopia que pode tornar-se uma nova ideologia e aí ficar, no campo das
ideias, das ruminações mentais e posteriormente de mais e mais “direitos” a
serem requeridos. bento guerra: Tembém são precisos muitos "likes" Carlos Chaves: Ora aqui está uma esperança da morte do socialismo!
João
Floriano: Riqueza e
felicidade tornaram-se imperativos a concretizar numa sociedade em que os
indivíduos têm muitos direitos, poucos deveres, fraca capacidade para lidar com
a rejeição e as dificuldades e se sentem pungentemente sós. Charlote
Oliveira: Excelente colocação, que vai ao âmago dos
muitos problemas que o mundo enfrenta no momento. Obrigada! Elizabeth
Coelho: Excelente
artigo. Obrigada.
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