domingo, 21 de abril de 2024

Historiando


Com arte e manha… esclarecedoras, aparentemente não críticas, de isenta informação e rigor historiográfico. Como sempre.

De Lisboa a Bruxelas, 25 de Abril sempre

Hoje, os saudosistas não são já os nostálgicos do antigo regime, são os que, meio século depois, suspiram pelos “bons velhos tempos” do PREC.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 20 abr. 2024, 00:1829

Aqueles que vimos no 25 de Abril, não o fim de um regime com o qual não nos identificávamos, mas o fim de um Portugal que tinha as grandezas e as servidões de ser o primeiro e último império europeu, temos agora pouco que comemorar. Mas também não vamos estragar a festa: o passado está passado e a nostalgia é uma sereia enganadora e perigosa que pode cegar-nos e paralisar-nos para o presente e impedir-nos de enfrentar o futuro.

“25 de Abril sempre”

De resto, há agora uma novidade que tende a passar despercebida: é que hoje os saudosistas não são já os nostálgicos do antigo regime, nem até do antigo Portugal do Minho a Timor, são antes os que, de lágrima ao canto do olho, punho erguido e cravo ao peito, saem à rua numa viagem sentimental até ao golpe militar de há meio século e aos “bons velhos tempos” do festivo processo revolucionário que se lhe seguiu. Quem agora tende a perder-se num “oh tempo volta para trás” feito de velhas palavras de ordem, antigas canções de protesto e novos saneamentos e cancelamentos, são os que, denegrindo irrealisticamente o país que era e floreando delirantemente a revolução e a exemplar descolonização que lhe puseram fim, se abstraem do país que temos e do presente que aqui está.

Porque se o Portugal nação multinacional e pluricontinental se transformou numa utopia nostálgica, arquivada nos mapas que sobrepunham o então “império português” à carta da Europa, também o Portugal comunista que alguns quiseram impor pela força acabou dezoito meses depois de Abril, no dia 25 de Novembro de 1975. Essa é, goste-se ou não, a data fundacional da democracia pluralista em Portugal. Há até quem a transfira para a Constituição de 1976, ou ainda para Setembro de 1982, com o fim do Conselho da Revolução e do poder de controlo dos restos do MFA sobre os representantes do povo.

“Fascismo nunca mais”

Qualquer história independente do Estado Novo estabelecerá que, não sendo o regime um regime fascista, não havia partidos políticos, não havia liberdade de expressão, as eleições eram manipuladas pelo poder e os comunistas activos podiam ir para a cadeia. Dirá também que o facto de Estado Novo ser um autoritarismo e não um regime democrático facilitava a promoção de políticas de Estadoobras públicas, infraestruturas, industrialização. Isto porque, contrariando a narrativa generalizada, os historiadores económicos têm vindo a provar que as duas últimas décadas do Estado Novo foram as de maior convergência de Portugal com os países desenvolvidos da Europa; ou que, no Estado Novo, o analfabetismo foi drasticamente reduzido em relação à Primeira República, com as “escolas primárias” a fazerem a quadrícula do país (e a retirarem às campanhas de alfabetização de Abril a glória da inauguração da educação pública em Portugal).

De qualquer forma, se o apoio ao regime até aos anos cinquenta tinha vindo sobretudo da experiência democrática da Primeira República (quase 50 governos em 16 anos, com o Partido Democrático a ganhar sempre as eleições), a memória dessa “balbúrdia sanguinolenta” foi-se esvaindo e as novas gerações começaram a mostrar-se desejosas das liberdades políticas europeias. As eleições de 1958 foram prova disso.

O regime caiu também porque era exótico no meio das democracias da Europa e só sobrevivia – como sobreviveu depois de 61, com o princípio da Guerra de África – porque encontrava sentimentos patrióticos ainda muito fortes entre o povo e as classes médias em relação ao então Ultramar. É claro que o desaparecimento de Salazar seria também decisivo, já que o Estado Novo tinha sido por ele criado em 1933, a partir da Ditadura Militar de 1926. Os regimes políticos são moldados pelos dirigentes e, por vezes, há incompatibilidade entre a personalidade do dirigente e o modelo do regime. Foi o que se viu na União Soviética, com a chegada ao poder de Gorbachev. Para governar a URSS era preciso ser brutal e não ter limites éticos e Gorbachev mostrou-se incapaz dessa brutalidade. E quando retirou o medo, fez cair um regime que, desde Lenine, Estaline e os seus sucessores, vivia do medo.

Com o Estado Novo deu-se um fenómeno paralelo. Salazar era um homem de decisões, que podia demorar a decidir, mas que, uma vez tomada a decisão, a defendia com grande inflexibilidade; Marcelo Caetano, sendo um homem íntegro e um académico inteligente, era um Hamlet num regime que precisava de decisão. A guerra de África, uma guerra de tipo colonial feita com o contingente geral, acabou por criar problemas no Corpo de Oficiais. E quando se procuraram soluções – com a criação do Quadro Especial de Oficiais – houve um ressentimento corporativo entre aqueles que se sentiram atingidos nos seus direitos de antiguidade.

Mas uma revolta de capitães só é possível numas Forças Armadas de que os generais tenham perdido o controlo – ou por falta de prestígio, ou por divisão ideológica –, e quando o espírito do tempo está maduro para a revolta e há um grupo organizado politicamente e determinado a aproveitar a janela de oportunidade. Assim, veio o 25 de Abril, na sequência do 16 de Março. E com o golpe de Estado começou a revolução.

O regime de Marcelo Caetano, na altura, também falava muito do “perigo da extrema-direita”; um alerta que soa sempre que “a situação” sente o seu domínio ameaçado e que a Esquerda quer tomar o poder.

Por cá, nas eleições de 10 de Março, houve uma resposta popular interessante: 50 deputados da perigosa “extrema-direita” nos 50 anos da revolução.

Mas nada que ensombre a festa, porque a extrema-esquerda, por reduzida que seja e esteja, continua a “cumprir Abril” em versão pós-moderna, fazendo aprovar leis disruptivas e impondo linhas vermelhas ao Centrão. Centrão que continua a dominar, vai para 48 anos.

Amplas liberdades democráticas em Bruxelas

Onde também se teme o “perigo da extrema-direita” é em Bruxelas. E foi precisamente para evitar que a “extrema-direita” perturbasse a ordem pública que a Conferência Nacional do Conservadorismo (NatCon) foi sendo consecutivamente cancelada, por prevenção.

E como perturbaria a ordem pública uma conferência que reunia um primeiro-ministro de um país da União Europeia, um ex-primeiro ministro e uma ex-ministra do Reino Unido, um candidato à presidência de França, vários deputados e intelectuais europeus, 600 pessoas ordeiras? Perturbando os activistas “antifas” que, perturbados com a eventualidade do Congresso, ameaçavam perturbar a ordem pública, manifestando-se na rua, junto ao local do iliberal evento. A polícia teria, evidentemente, de os proteger dos iliberais congressistas, impedindo que o Congresso se realizasse.

Foi precisamente por isso que Emir Kir, o autarca do distrito de Saint-Josse da capital belga, proibiu a reunião, não sem acrescentar que, fosse como fosse, a “extrema-direita” não era bem-vinda na sua cidade.

Depois de pressionar os directores dos hotéis que, imprudentemente, tinham concordado em acolher o Congresso, forçando à sua mudança de local por duas vezes, na terceira escolha, o temerário Hotel Claridge, a polícia teve mesmo de intervir: havia que evitar a todo o custo a emissão de “discurso de ódio” dos congressistas dentro de portas e que proteger a hipersensibilidade à ideia alheia das duas dúzias de democratas que, cá fora, exerciam a sua liberdade de expressão.

As intervenções dos primeiros-ministros da Itália, do Reino Unido e da própria Bélgica, exigindo que se repusesse a legalidade, puseram fim ao censório episódio, a lembrar o nosso saudoso PREC e a esclarecer-nos quanto ao verdadeiro paradeiro da “democracia iliberal” – então e agora.

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COMENTÁRIOS (DE 29)

Fernando CE: Nem mais. Ainda me lembro de, em 1977, ser difícil defender a economia social de mercado, na cadeira de Direito Económico, na Faculdade de Direito de Lisboa. E ser-se de centro direita ser quase proibitivo em muitas ocasiões.                João Floriano: Excelente construção da crónica: desde os antecedentes do 25 de Abril até à realização da conferência da NatCon em Bruxelas. Excelente igualmente a chamada de atenção para os saudosistas do PREC e de tudo o que aconteceu nesses 19 meses entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro: os saneamentos, as perseguições, as ocupações de terras, de casas, os novos presos políticos, as ameaças de encher o Campo Pequeno, os mandatos de captura em branco mas com assinaturas. Os curiosos resultados de 10 de março e a probabilidade de se virem a repetir e até acentuar a 9 de junho, transformou a extrema esquerda numa perigosa fera ferida.                Rui Lima: Se o antigo regime impunha limitações a todos os que não concordassem e havia perseguições , hoje também o actual sistema persegue os não alinhados: o objectivo é o mesmo, con­de­nando-os nos tribunais ou na sua vida social. Para mim os limi­tes à liber­dade de expres­são deve­riam ser o apelo à vio­lên­cia e à difa­ma­ção os argu­men­tos são tro­ca­dos no debate público , o sis­tema de cen­sura que hoje ­estamos a enfren­tar é um retrocesso nas nossas liberdades. Hoje esse con­de­nado como um pária basta associar-nos à "extrema direita", "racismo", "trans­fo­bia" ou outros ter­mos seme­lhan­tes a nossa condenação à morte social acontece , somos banidos . Temos hoje um com­plexo jurí­dico-polí­tico que impede a liberdade, temos de anular as leis sobre comen­tá­rios " odi­o­sos”. O que é um comen­tá­rio odi­o­so ? Informar sobre criminalidade, dando informação detalhada, é crime de ódio hoje. A censura existiu no tempo de Salazar para proteger o povo de actividades contrárias ao seu interesse e do regime , então voltamos ao mesmo com o objectivo e proteger o povo dos maus o sistema decide o que se pode dizer .               Carlos Chaves: Pode demorar tempo (aliás como está a demorar), mas os equívocos desfazem-se! Obrigado Jaime Nogueira Pinto – “E com o golpe de Estado começou a revolução.”                  Maria Nunes: Brilhante artigo. Viva o 25 de Novembro!             Lily Lx: Muito bem posto. Gostei de ler.                Henrique Nobre: Caro Jaime Nogueira Pinto, Na mouche!  Cumprimentos.                 vitor Manuel: Mais uma extraordinária lição de J.N.P., que nos torna mais aptos para os tempos difíceis que por aí estão a chegar. O que este genial personagem poderia fazer no governo de Portugal ...                MCMCA A > Pedra Nussapato: Na sua óptica somente se justifica a queda do regime por ser fascista e não por ser opressivo! O 25 de Abril foi preparado essencialmente por redes de oficiais comunistas e Mário Soares teve bem consciência disso no seu cripto comunista discurso a 1 de Maio de 1974, elaborado numa tentativa de atrair o povo que estava a ser manipulado pelo PCP. Algo que sempre me intrigou foi a criação do PS na Alemanha em Dezembro de 1973 que para mim soa a preparação para o 25A. Nada é por acaso nos golpes militares e o que interessava era África, particularmente Angola, e não foi também por acaso que tudo serenou a 25 de Novembro após a independência de Angola. Não existem tantas coincidências sem um propósito!                  Vitor Prata: Felizmente, ainda há quem não receie a censura canhestra. Excelente artigo.               Américo Silva: O PREC continua e alargado, a legitimidade da senhora von Leyen lembra Stalin, Khrushchov e outros.               Pedra Nussapato: O 25 de Novembro foi muito importante para conter a deriva de extrema esquerda após o 25 de Abril mas, muito provavelmente, os que fizeram o 25 de Novembro não teriam derrubado o antigo regime. Daí eu gostar das duas datas; para mim representam o mesmo, fazem parte do caminho trilhado para se chegar a um regime democrático.

 

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