E as políticas de Xi-Jimping, segundo a ex-conselheira
de Biden, Elizabeth Economy.
Elizabeth Economy, ex-conselheira de
Biden. "Há descontentamento na China pelo apoio à Rússia. Xi Jinping não
fala por 1,4 mil milhões"
Ex-conselheira de Biden para a China
explica o plano mundial de Xi Jinping. Reconhece alguns méritos à administração
Trump no tema. E não poupa Macron: "Gostávamos
que a França nos tranquilizasse".
OBSERVADOR, 09 mai. 2024, 20:4712
Índice
A visão transformadora do actual líder chinês, que “difere dos
antecessores”
A “preguiça” dos governos norte-americanos acabou. A mudança desde
Obama
Repressão interna aumentou, porque Xi “não quer concorrência”
Emmanuel Macron “não parece ter plena noção do desafio que a China
representa”
A Nova Rota da Seda e a presença chinesa no resto do mundo, que já
tiveram melhores dias
Não há dúvidas de que Elizabeth
Economy deseja
que Joe Biden seja reeleito Presidente dos Estados Unidos no próximo mês de
novembro. Uma
das maiores especialistas norte-americanas na política chinesa, entrou pela primeira vez na máquina de um
governo em 2021, quando aceitou o cargo de conselheira sénior para a China do
Departamento do Comércio da administração Biden, onde esteve dois anos. Agora, está
de regresso à academia, como fellow do
Hoover Institute, na Universidade de Stanford. E foi nessa qualidade que esteve em Lisboa esta quinta-feira, para
participar numa sessão organizada pela Fundação Luso-Americana com o título do
seu mais recente livro: The World According to China (sem
edição em português).
Mas a passagem pela administração
Biden não impede a investigadora de reconhecer méritos ao governo
de Donald Trump
no que diz respeito à política
relacionada com a China. A sua equipa, diz (reforçando mais algumas figuras em
torno do Presidente do que o próprio), teve “uma noção muito clara de que a
China era um desafio emergente nas áreas económica e militar” e ajudou a fazer
a “chamada de atenção” necessária sobre o tema, apesar da “retórica
inflamatória” — que diz ter sido contraproducente. E, apesar de todos os
elogios à política de Biden face a Taiwan, bem
como a Câmara dos Representantes de
visitar Taiwan no
último ano do seu mandato.
“Não podia ir quando já se tivesse reformado?”, questionou,
durante a conversa com o Observador.
A relação do Ocidente com a China, explica, é uma dança delicada. Por um
lado, as relações não estão cortadas e há colaboração em algumas áreas; por
outro, Elizabeth Economy alerta repetidamente para a “visão transformadora” de Xi Jinping, que diz
querer reformular a ordem mundial,
colocando a China no centro dela. Palcos como as Nações Unidas,
iniciativas como a Nova Rota da Seda e decisões como o apoio à Rússia na
questão da Ucrânia são todos formas de exercer esse músculo. E se os
norte-americanos parecem estar relativamente alinhados na forma como encaram a
China, com um ou outro pormenor por afinar, os europeus nem tanto. A visita recente de Xi Jinping à Europa
ilustrou isso mesmo, com os encontros com a presidente da Comissão Europeia,
Ursula von der Leyen, e com o Presidente francês, Emmanuel Macron, a assumirem
tons diferentes. Perante isso, Elizabeth Economy
parece voltar a assumir o papel de conselheira do governo norte-americano: “É
intrigante para nós porque é que o Presidente Macron continua a sentir a
necessidade de dizer ‘temos autonomia estratégica'”, afirma, falando numa percepção de
“desalinhamento” com os Estados Unidos relativamente à China. “Acho que
gostaríamos apenas que a França nos tranquilizasse, dando-nos certezas sobre a
sua posição”.
Se o Ocidente tem divergências
quanto à política de Xi Jinping, os próprios chineses também as têm, assegura
a investigadora. “A China é uma sociedade tão polarizada como
qualquer democracia, até mesmo como os Estados Unidos. Polarizada em torno dos rendimentos,
polarizada em questões de género, absolutamente polarizada em questões de
nacionalidade étnica”, enumera. Razão
pela qual, diz, é importante recordar
que o líder não fala por todos e “manter a porta aberta para o povo chinês e
para as futuras gerações de líderes chineses”.
A visão transformadora do actual
líder chinês, que “difere dos antecessores”
A principal tese do seu livro parece-me ser a
de que a China tem um plano específico para alterar a ordem mundial e que
tenciona vir a liderá-la. Quando é que crê que começou esta estratégia e quando
é que se tornou visível para o Ocidente?
Há
um grande debate na comunidade de especialistas na China sobre se o país sempre
teve esta ideia de reclamar uma centralidade chinesa no palco mundial e de
transformar o sistema internacional. Faço parte do grupo que acha que os
líderes importam: líderes diferentes fazem escolhas diferentes. Da minha
perspectiva, sempre houve algumas prioridades comuns para vários líderes
chineses, nomeadamente a ideia de soberania chinesa sobre determinados
territórios como Hong Kong, Taiwan ou até marítimos no Mar do Sul da China.
Mas quando Xi Jinping chegou ao poder em 2012, foi o
primeiro líder chinês desde Deng Xiaoping com uma visão clara do que queria
para o país. E não era
apenas uma visão doméstica, como a de Deng Xiaoping, mas uma visão de
como a China poderia reclamar um papel central no mundo. O “grande rejuvenescimento da nação chinesa”, que
Xi Jinping mencionou no seu primeiro discurso em 2012, preparou o caminho para
um plano estratégico de transformação do sistema internacional, que não é uma
simples reforma, é uma visão transformadora.
"Já num discurso em 2014 [Xi
Jinping] afirmava que a China tem de liderar a reforma do sistema de governança
global. Que não pode apenas seguir as regras do jogo e tem de criar os
tabuleiros onde se joga. Acho que na cabeça dele já havia muitas ideias sobre
como reformular a ordem mundial."
Acho que essa visão foi progredindo com
o tempo, mas se lermos os discursos de Xi-Jinping e acompanharmos as suas acções
[ao longo do tempo], vemos como ele dá sinais do que quer alcançar desde muito
cedo. Um dos elementos centrais da sua
estratégia, por exemplo, é a transformação das normas e instituições
internacionais, para garantir que os valores e prioridades chineses estão reflectidos
em lugares como as Nações Unidas. Diria que isso só se tornou claro nos
últimos anos da sua liderança, mas já num
discurso em 2014 ele afirmava que a China tem de liderar a reforma do sistema
de governança global. Que não pode apenas seguir as regras do jogo e tem de criar os tabuleiros onde se joga.
Acho que na cabeça dele já havia muitas ideias sobre como reformular
a ordem mundial, mas às vezes é preciso tempo para colocar essas ideias em
prática.
E colocou-as em prática através daquilo a que
chama uma combinação de “diplomacia habilidosa” com “força bruta”. Influenciar
as instituições mundiais é uma forma de aplicar essa diplomacia?
É, mas [a China] também o faz
por vezes com recurso à força bruta. A “diplomacia habilidosa”, claro, é usada:
a China é muito subtil na forma como, por exemplo, interliga a sua iniciativa Belt and Road [também conhecida
como Nova Rota da Seda] com 26 ou mais agências e programas da ONU. Por vezes paga pelo privilégio de ter
relatórios feitos por agências das Nações Unidas a elogiar a mais-valia da Nova
Rota da Seda. Mas, outras
vezes, simplesmente ameaça
países com a perspectiva de suspender laços comerciais se estes não votarem a
favor do candidato chinês para uma posição da liderança na ONU. Essa é a parte da “força bruta”. Portanto é mesmo
uma combinação de ambas.
A aliança China-Rússia. “Há um
alinhamento no apoio ao autoritarismo. Mas também por estarem isolados entre as
maiores economias do mundo” Isso tornou-se mais visível para o mundo com
a pandemia de Covid-19?
Especulou-se
muito sobre se a Organização Mundial de Saúde (OMS) foi constrangida devido à
influência que a China tinha sobre esta agência.
Para muitas pessoas fora da China e da
OMS, a percepção foi de que a OMS não
pressionou suficientemente a China a propósito da origem do vírus e não fez
força suficiente para que houvesse uma investigação completa. Não
condenou a China pela sua demora em divulgar a sequência genética do vírus, que
só foi conhecida graças à acção dos cientistas e não através do governo [chinês]. A comunidade internacional preocupou-se e
bem com a possibilidade de a OMS — por causa do trabalho que a China faz em
áreas como a saúde global e a redução da pobreza — ter perdido parte da sua
independência neste contexto. Não reagiu, por exemplo, à proibição imposta pela
China de que Taiwan participasse nos briefings da OMS. E isso, tendo em conta
as circunstâncias daquela pandemia, parece-me criminoso.
Também gostaria de abordar a questão de Taiwan, mas já lá vamos.
Disse que considera que as personalidades dos líderes importam. No
caso de Xi Jinping, acha que estamos perante um ideólogo do Partido Comunista
Chinês (PCC) ou alguém que está a correr em pista própria?
Acho que Xi Jinping é um verdadeiro
crente, no sentido de que ele acredita de facto nos ideias leninistas de um
Estado de partido único, controlado a partir do topo. Assim que ele chegou
ao poder, tornou-se muito claro que ele sentia que o PCC se tinha corrompido,
tinha perdido a sua pureza e coesão ideológicas. Que se tinha tornado num
partido que servia apenas os interesses pessoais, políticos e económicos dos
seus membros. Daí que ele tenha mencionado a necessidade de combater a
corrupção desde o início, caso contrário, dizia, seria a morte do partido e a
morte do Estado chinês. Portanto, creio que ele é um verdadeiro crente no
marxismo-leninismo: fala no triunfo do socialismo sobre o capitalismo, na
ascensão do leste face ao ocidente, etc. Isso é parte da sua visão.
▲Xi Jinping defende há muito o "grande
rejuvenescimento" da China GETTY IMAGES
A aliança China-Rússia. “Há um alinhamento no apoio ao autoritarismo. Mas também por
estarem isolados entre as maiores economias do mundo”. Mas acho que
no seu íntimo também há uma ideia da centralidade chinesa e é aí que ele
difere de outros antecessores. Ele
não faz uma demarcação clara, como eles faziam, entre a História da China
tradicional e 1949 [ano da Revolução Comunista]. Tentou desde cedo criar uma
linha que ligasse toda a História chinesa, para relembrar os feitos da História
imperial do país e demonstrar assim a grandeza da China. E usou elementos das
tradições chinesas como ferramentas de soft power. Por
isso ele combina a ideologia com uma identidade chinesa. O seu desejo de
mostrar a China como grandiosa é separado da ideologia.
É mais
importante do que o comunismo?
Diria que sim [risos].
A “preguiça” dos governos norte-americanos acabou. A
mudança desde Obama
Também considera que os Estados Unidos devem reagir a esta postura
não travando a China, mas sim tentado criar a sua própria ideia de reforma da
ordem internacional. Isso não tem sido feito pelos últimos governos — em
concreto pela administração Trump, que publicamente se focou muito na China, e
pela administração Biden, da qual foi conselheira?
Olhando
para a administração Trump, o Presidente focou-se muito em retirar os Estados
Unidos de uma série de acordos e instituições internacionais, como a OMS, mas também
os Acordos de Paris, o acordo nuclear com o Irão, o Conselho de Direitos
Humanos da ONU, etc. Esta foi uma rejeição muito clara do papel até aqui
considerado tradicional para os Estados Unidos, de liderança dentro do sistema
internacional e de apoio à promoção desse sistema. Mas acho que o ex-Presidente
Trump estava sozinho em muitos aspectos desta rejeição.
▲A relação da administração Trump com a
China teve momentos de tensão
Quanto aos outros Presidentes… Creio que os Estados Unidos se tornaram
preguiçosos e não perceberam os problemas que se passavam em instituições como
as Nações Unidas, por exemplo. Pensaram “Está tudo a correr de forma
razoável, por que havemos de mudar?”. Mas
a ascensão da China veio mudar tudo, porque não tinha havido um desafio deste
calibre ao sistema de valores e normas internacionais desde a União Soviética. E os EUA demoraram a perceber isso e a
entender a natureza do desafio que a China representa. Nos EUA
achávamos que os conflitos que tínhamos com a China se resumiam a três temas: comércio,
Taiwan e direitos humanos. E, com excepção
desses temas, queríamos muito envolver-nos com a China, trazê-la para o sistema
internacional, ajudá-la a tornar-se num pilar da ordem liberal internacional.
Algo semelhante ao que os EUA tentaram fazer com a Rússia depois do
colapso da União Soviética. Mas nesse caso não resultou…
Não,
não, acabou por não acontecer nada disso. É verdade. A certa altura pareceu que
sim, mas tem razão, não foi esse o resultado, de todo. E também não foi esse o
resultado com a China. Fomos tendo chamadas de atenção graduais, e a [mudança]
começou com a administração Obama, com
a percepção de que a China tinha ambições na Ásia-Pacífico.
Daí o chamado pivô para o Indo-Pacífico, uma política
transformadora.
E embora nós disséssemos que a viragem
aconteceu em parte porque reconhecíamos a importância daquela zona do mundo e
de como estava a crescer de forma dramática…
Toda a gente sabia que a grande razão da mudança era a China.
Sim,
toda a gente sabia que pelo menos 50% dessa decisão se devia à China. Havia
esse elemento [risos]. E depois, com a administração Trump, eles tiveram uma
noção muito clara de que a China era um desafio emergente nas áreas
económica e militar.
E
estavam errados?
Não,
não estavam. Foi uma chamada de atenção importante. Agora, podemos é dizer que
a forma como a administração Trump falava sobre a China, a retórica que usou
sobre a Covid, por exemplo, era demasiado inflamatória. Foi tão exagerada que
criou problemas nos EUA com os americanos asiáticos, retratou todos os chineses
de forma muito negativa e houve consequência terríveis dessa forma como a
administração Trump decidiu falar.
"Não quero que encurralemos a
China num canto, porque isso também dá espaço a alguns comentários de Xi Jinping
como 'Os EUA e o Ocidente só querem deitar abaixo a China, querem impedir que a
China cresça'. E, de alguma forma, estamos a permitir-lhe usar isso para
fomentar o nacionalismo e fazer com que o povo chinês sinta que é esse o caso."
Em tempos escreveu que o governo Trump, no que diz respeito à China,
usava uma marreta em vez de um bisturi.
E é verdade.
Mas por que é que os Estados Unidos devem usar um bisturi para lidar
com a China?
Bem, porque é importante reconhecer que,
embora enfrentemos um país que nos desafia em múltiplas dimensões, dentro da
China existem ideias diferentes, tal como acontece nos Estados Unidos ou em
qualquer outra democracia. E
que muitas pessoas na China não gostam da direcção para que Xi Jinping está a
conduzir o país. Não quero
que encurralemos a China num canto, porque isso também dá espaço a alguns
comentários de Xi Jinping como “Os Estados Unidos e o Ocidente só querem
deitar abaixo a China, querem impedir que a China cresça”. E, de alguma forma, estamos a permitir-lhe usar isso
para fomentar o nacionalismo e fazer com que o povo chinês sinta que é esse o
caso. Por isso, quero ter muito cuidado com a forma como descrevemos os
problemas e como os atacamos. Acho que isso é importante. Manter a porta aberta
para o povo chinês e para as futuras gerações de líderes chineses, que podem
ter ideias muito diferentes sobre a forma de liderar o país.
Repressão
interna aumentou, porque Xi “não quer concorrência”
Estamos a assistir a sinais nesse sentido
dentro da sociedade chinesa? Vimos, por exemplo, os protestos relacionados com
a Covid-19. Acha que nós, no Ocidente, tendemos a ignorar que se trata de um
país enorme, com mais de um milhar de milhões de pessoas, e que as coisas podem
não ser sempre tão favoráveis ao regime como parecem?
Absolutamente.
Se olharmos para 2010, houve 180 mil protestos públicos na China. Alguns deles
contaram com 30, 40, 50 mil pessoas, por causa de temas como o ambiente, as
pensões ou o sector imobiliário — uma vasta gama de questões. Havia pessoas a
exigir abertamente uma reforma política. Havia sete mil organizações não
governamentais internacionais a trabalhar na China, em parceria com ONG
chinesas. Tudo isso mudou em 2017, quando Xi Jinping aprovou uma lei que tornou
muito mais difícil a actividade das ONG estrangeiras na China, agora existem
cerca de 400. E o que aconteceu é que temos muito mais dificuldade em
perceber o que está a acontecer dentro do país do que tínhamos há sete ou dez
anos e, por isso, é fácil dizer que “A China é assim” e pronto.
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
(CONTINUA)
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