Como nas histórias de fadas e de bruxas
da nossa infância, mas de gente real que o produziu. Infelizmente as bruxas dos
pesadelos não desapareceram ainda. Orquestradas, por vezes, pelo povoléu insensível,
das gritarias e dos valores dos bruxedos próprios. Reais. Mas por vezes
ineficazes, felizmente. Pobre do povo judeu, que tanto sofreu! Valentes todos
esses que o apoiaram contra a insânia, que se prolonga.
Raoul Wallenberg: o sueco que salvou milhares de
judeus em Budapeste
Observador11 mai. 2024, 17:481
Arquitecto e homem de negócios, foi diplomata na Hungria durante a
Segunda Guerra Mundial. Salvou milhares da deportação e morte. Fazemos a
pré-publicação da biografia de Raoul Wallenberg.
É
o protagonista de uma das mais fascinantes e, ao mesmo tempo, misteriosas
histórias da Segunda Guerra Mundial. Raoul
Wallenberg era arquitecto. Também
era homem de negócios. Mas quando trocou um trabalho estável em Estocolmo por
uma arriscada missão diplomática em Budapeste, tornou-se uma figura histórica.
É essa figura que está no centro de um novo livro, “O Caso Wallenberg”, de Ingrid Carlberg, que chega às
livrarias a 14 de maio.
Wallenberg faz parte do lote de nomes como Oskar Schindler
ou Aristides de Sousa Mendes, homens em
posições de poder que conseguiram, de forma mais política ou mais
administrativa, salvar judeus da deportação e do envio para campos de
concentração. No caso do biografado neste livro que foi
originalmente publicado em 2015, a estratégia passava por documentação laboral
e de asilo, que garantia a protecção do estado sueco sobre milhares de pessoas. No
excerto que aqui publicamos, revela-se parte do esquema montado por Wallenberg,
de que forma foi mantido e como conseguia resultados.
Após o fim da guerra, a
história de Raoul Wallenberg ganhou contornos ainda mais enigmáticos. Acabou
por ser detido pelas forças soviéticas, e terá morrido na prisão em 1957.
Porém, as circunstâncias e os reais factos dos últimos anos da vida do
diplomata só com este livro ganharam novos e mais coesos esclarecimentos. A autora é a jornalista sueca INGRID CARLBERG.
▲A capa de
"O Caso Wallenberg", de Ingrid Carlberg, na edição portuguesa da Casa
das Letras
Raoul estabeleceu regras
rígidas para os processos que regiam a atribuição dos passaportes de protecção. Para o efeito, foram desenvolvidos formulários de
candidatura específicos, que cada pessoa tinha de preencher e entregar. O objectivo
destes formulários era provar a ligação do requerente à Suécia, quer através de
uma associação familiar quer através de uma associação empresarial. Se se
tratava de negócios, havia várias condições que tinham de ser cumpridas: o
dinheiro que ganhavam com as operações suecas tinha de representar uma
proporção comprovadamente significativa das transacções comerciais da empresa
húngara; a relação tinha de ter durado vários anos; e o requerente devia ter
tido um papel importante na empresa. Raoul também introduziu uma terceira categoria de protecção, destinada a
artistas, «agentes de teatro» e outras pessoas que trabalhavam nas artes. Este dossiê foi marcado com as letras KL, que significa Kulturleute
(pessoas da cultura).
Cada caso era examinado por um painel composto por quatro dos colegas mais
próximos de Wallenberg, entre os quais estavam Hugó Wohl, Vilmos Forgács e Pál
Hegedűs. Pelo menos três deles
tinham de estar de acordo para que um pedido fosse aprovado. Com o
tempo, quando Raoul estendeu e reformulou a sua construção burocrática, a
decisão do painel também passaria a ser examinada por revisores e auditores
adicionais, mas ele ainda não chegara a esse ponto. Por último, o próprio Raoul
determinava o destino do requerente com a sua própria assinatura. Só então o
passaporte de protecção podia ser entregue a Danielsson, para um carimbo final
e assinatura.
Wallenberg não tinha intenção
de iniciar uma acção relâmpago irreflectida. A sua ideia de salvar vidas
baseava-se numa burocracia eficaz e rigorosa, pelo menos, nesta fase. As condições
rigorosas que ele foi forçado a adoptar eram necessárias para haver
credibilidade, mas também tiveram algumas consequências. Para quem lia as
condições, ficava claro que apenas os mais abastados de Budapeste podiam ser ter
possibilidade de obter um dos passaportes de protecção suecos. Por isso, Raoul e os seus
colegas tiveram de lidar com o rumor de que a missão de resgate sueca não
estava interessada em ajudar os judeus pobres.
Desde o início, o plano era
que Raoul voltasse à Suécia umas semanas depois de fazer um relatório inicial
aos americanos. Não foi isso que aconteceu. No início de agosto, no entanto,
Per Anger foi a Estocolmo, para pôr a família em segurança. Durante o verão,
Budapeste sofrera mais de um bombardeamento e Per Anger era o único membro da
equipa que tinha família. A mulher, Elena, passava muito tempo com a filha de 3
meses, Birgitta, na casa de evacuação da legação sueca, no lago Balaton. Mas
isso não era uma solução sustentável.
Nessa altura,
Raoul já contara tanta coisa sobre a sua missão a Per Anger que podia pedir-lhe
para se encontrar com Iver Olsen, em Estocolmo, e pô-lo a par da situação. E
também deu a Anger alguns pontos que gostava que ele discutisse na reunião que
ia ter no MNE. Entre outras coisas, Raoul queria acabar com quaisquer ilusões
que os diplomatas que estavam em Estocolmo pudessem ter: os
alemães eram, e continuariam a ser, contra a saída de judeus para a Suécia. Assim sendo, por esse meio, os
suecos só podiam ajudar um número muito reduzido de pessoas. Se queriam ajudar
um número muito maior, teriam de se concentrar na organização da protecção
local, dentro dos limites impostos pelos recursos disponíveis. E observou que
«também não é do interesse sueco acolher um número muito grande de judeus».
Pediu também a
Per Anger que arranjasse maneira de o MNE transmitir a Kálmán Lauer os
relatórios de Raoul, «uma vez que ele precisa desta informação para recolher
fundos adicionais e é o único que pode gerir o dinheiro». Na mensagem que enviou a Lauer, através de Anger, Raoul disse-lhe, sem
rodeios, que precisava urgentemente do dinheiro dos americanos.
O MNE de Estocolmo classificou a missão de Wallenberg
como «delicada». Umas semanas depois, à volta de Raoul ninguém tinha dúvidas de
que o seu trabalho em Budapeste não se limitaria a escrever avaliações secas
sobre a situação no país.
Raoul escreveu que usaria a quantia disponibilizada
para os custos do escritório. Além disso, queria comprar produtos enlatados,
para os poder distribuir de acordo com as necessidades. Também não era barato
garantir casas para as famílias judias que agora seriam postas sob protecção
sueca: Raoul calculou o custo de abrigar 2 mil pessoas e estimou que precisava
de cerca de 75 mil coroas suecas para toda a operação (aproximadamente 130 mil
euros hoje). «Os judeus “ricos” não têm dinheiro desde que este foi
confiscado», lembrou Raoul. Pediu a Lauer que lhe enviasse mil cigarros, dois
quilos de café, alguns sabonetes e mil folhas de papel de máquina de escrever
padrão.
Apesar das circunstâncias trágicas e dos muitos
obstáculos financeiros, foi, ao que tudo indica, um Raoul saudável e estimulado
que, no fim, ainda acrescentou uma carta para a sua mãe à colecção de
documentos que entregou a Per Anger, antes da partida para Estocolmo. «Vivi aqui talvez as três ou quatro
semanas mais interessantes da minha vida. Embora, à nossa volta, haja uma
tragédia de proporções inimagináveis, os meus dias e as minhas noites estão tão
cheios de trabalho que só penso nisso de vez em quando», começou ele por
escrever.
Quem leu a carta não pôde deixar de ver que Raoul
gostava da camaradagem no departamento humanitário. Os seus dias eram tão
intensos e tão cheios de significado que quase se esqueceu do seu próprio
aniversário, a 4 de agosto.
«O meu aniversário foi muito agradável porque, por coincidência, só me
apercebi da data nessa mesma tarde e mencionei-a à minha muito competente
secretária, a condessa Nákó. Duas horas depois, recebi um bonito presente
composto por pasta, agenda, tinteiro, etc.; bem como uma garrafa de champanhe e
flores.»
Raoul disse à
mãe que arrendara uma «casa do século xviii, muito bonita, em Várhegy (colina
do Castelo) com mobiliário muito requintado, um maravilhoso jardinzinho e uma
vista deslumbrante, e, às vezes, é aí que dou jantares oficiais».
A villa de pedra
sobre a qual Raoul escreveu à mãe era na Ostrom utca 9-11 e ficava na encosta
norte de Várhegy. Era, inegavelmente, uma casa impressionante, com lustres e
lareiras em quase todas as divisões e estátuas de mármore no jardim. Raoul arrendou a casa a Aurél Balázs Sr,
que era um homem rico, com um papel importante na vida empresarial de
Budapeste. Era director e representante húngaro de muitas empresas estrangeiras
na indústria tecnológica, nenhuma delas sueca, no entanto.
Raoul conheceu
esta família judia através do seu filho de 25 anos, Aurél Balázs Jr, que era
conhecido como Relli e pertencia ao círculo cosmopolita de jovens jetsetters
que o sueco conhecera durante as suas viagens de negócios a Budapeste, em 1942
e 1943. Balázs Jr era considerado um playboy. Era bonito, mas nada mais, diriam
amigos dele. Até o pai o achava demasiado dado a festas. Raoul ofereceu-lhe um emprego como motorista e, portanto, o rapaz
era elegível para um passaporte de protecção. A protecção sueca
significava que a família podia continuar a viver no outro edifício da
propriedade, quando Raoul se mudou.
O MNE de
Estocolmo classificou a missão de Wallenberg como «delicada». Umas semanas
depois, à volta de Raoul ninguém tinha dúvidas de que o seu trabalho em
Budapeste não se limitaria a escrever avaliações secas sobre a situação no
país.
▲Documentos
conseguidos graças às medidas aplicadas por Raoul Wallenberg, que salvaram
milhares de pessoas, colocando-as ao abrigo do estado sueco
Em Estocolmo, Iver Olsen ficou a saber que nem toda a gente, no MNE,
gostava do que via. Encaminhou essas impressões para a sede do War Refugee
Board, em carta datada de 10 de agosto de 1944:
«Indirectamente,
tenho a impressão de que o MNE sueco está um pouco inquieto com as atividades
de Wallenberg em Budapeste, e talvez sintam que ele pegou no assunto com
demasiada força. Eles preferiam, é claro, abordar o problema judaico segundo a
melhor tradição da diplomacia europeia, o que não ajudaria muito. Por outro
lado, há muito a dizer sobre a possibilidade de nos movimentarmos
tranquilamente neste tipo de trabalho. Seja como for, sinto que Wallenberg está
a trabalhar imenso e a fazer as coisas bem, como era o objectivo.»
«A sua relação com a Suécia é a Kanthal Company»
A
judia Alice Korányi, de 19 anos,
nunca ouvira falar de uma empresa chamada Kanthal, na aldeia industrial sueca
de Hallsta – hammar. Não conhecia suficientemente bem os negócios
internacionais do pai nem do novo sogro. Mal sabia onde era a Suécia e, naturalmente, não
conhecia Wallenberg, o novo diplomata da legação sueca de Budapeste. Como é que
havia de conhecer? No início de agosto de 1944, já estava, há várias semanas,
internada no campo de Kistarcsa, nos arredores de Budapeste. Tal como milhares
de outros infelizes judeus, fora mandada para ali, à espera de ser transportada
para Auschwitz – assim que os comboios recomeçassem a circular.
Alice
tinha cabelo preto, pelo ombro, e olhos cinzento-aço. Em março, quando os
alemães invadiram a Hungria, estava em Budapeste, hospedada num pensionato para
meninas. Viera da pequena cidade húngara de Körmend, que ficava perto da
fronteira austríaca. Mas Alice era de uma família burguesa e os pais tinham
mandado a filha para a escola, em Budapeste.
Durante
algum tempo, Alice viveu uma idílica existência estudantil na capital, com
aulas de Antropologia e Arqueologia e animadas conversas nocturnas sobre livros
e música clássica. No domingo, 19 de março de 1944, tudo isso tinha mudado. No
mesmo dia em que os alemães atravessaram a fronteira húngara, o filho do dono
do pensionato foi ao quarto de Alice. Ela e a sua colega de quarto, Adrienne
Mátyás, tinham deixado de ser bem-vindas ali, disse-lhes ele. Era natural,
sublinhou. Afinal de contas, eram ambas judias.
Em março, Alice ainda estava
solteira e o seu apelido era Breuer. Foi atirada para a rua e só pensava em
tentar regressar à pequena cidade de Körmend, para junto da mãe, do pai e da
irmã mais nova, Ibi. Não era uma tarefa fácil, na primavera de 1944, sobretudo
para uma jovem judia que agora tinha de usar uma grande estrela amarela no
bolso do casaco e que perdera o direito de usar os transportes públicos. Mas
acabou por conseguir, apenas para descobrir que a sua família estava agora
internada num dos muitos guetos das zonas rurais húngaras, numa preparação para
as deportações em massa. Alice mudou-se para lá, com a mãe, o pai e a irmã mais
nova. E aguardavam o seu destino comum.
O súbito regresso de Alice Breuer a casa
deixou desesperado o seu namorado, Erwin Korányi. Percebeu o perigo em que ela
estava e não ficou de braços cruzados. Pensou no assunto e resolveu roubar uns
papéis timbrados e uns selos. Com isso, criou uma falsa carta oficial da
universidade em Budapeste dirigida ao comandante do gueto de Körmend. A carta exortava a «estudante de
Medicina» Alice Breuer a apresentar-se ao reitor da universidade, o mais
rapidamente possível, «no interesse da nação».
Os selos e os papéis timbrados
impressionaram os gendarmes que, na sua maioria, eram pouco instruídos. Assim,
concederam dez dias livres a Alice e ela voltou à capital. «Se nos casarmos,
podes ficar em Budapeste», disse-lhe Erwin Korányi, e assim fizeram. Dez dias
depois, eram marido e mulher e, do gueto de Körmend, chegou uma carta e um bolo
que a mãe dela, Cecil, sabe-se lá como, conseguira fazer e enviar em segredo.
«Toma conta da minha Lici», escreveu Cecil a Erwin. «A partir de agora, és
responsável por ela.» Uns dias depois, outro comboio sobrelotado partiu de
Körmend para Auschwitz. A mãe, o pai e a irmã de Alice, Ibi, estavam numa das
carruagens. Nunca mais voltaram.
A
recém-casada Alice Korányi foi viver com Erwin e os sogros. Recentemente,
tinham deixado a sua bela casa de Budapeste para, nas palavras de Erwin,
viverem «num buraco cheio de gente e degradado, num edifício patético», em
Peste. O miserável edifício estava marcado com uma grande estrela amarela sobre
um fundo preto.
Num dia em julho, Alice esperava à entrada do prédio, às 11 da manhã,
pois tinha o cuidado de não desobedecer ao recolher obrigatório para os judeus. Logo
que o relógio marcou a hora certa, ela saiu – e foi presa, um minuto depois. «É
muito cedo», disseram os gendarmes, e foi desta forma que Alice acabou no campo
de Kistarcsa, à espera de transporte para Auschwitz. Mais uma vez, a situação
parecia sombria. Alice sofria maus-tratos todos os dias.
Três
semanas depois, apareceu um guarda e gritou o nome dela. Pensou que chegara a
sua vez de ser deportada, mas levaram-na a dois polícias que lhe disseram que,
como era cidadã sueca, ia ser levada para a legação da Suécia em Budapeste.
Alice, que fora severamente agredida, após a detenção, convenceu-se de que
ficara com graves danos cerebrais. «Disseram que eu era sueca. Eu não sabia
nada sobre a Suécia e não fazia ideia de onde o meu sogro, que era ferreiro,
comprava o aço. Fiquei completamente desnorteada», disse mais tarde sobre a
situação.
Claro que fora Erwin a tratar de tudo. O
pai dele comprava um aço especial à empresa Kanthal, na aldeia sueca de
Hallstahammar. Felizmente, já o fazia há muitos anos e tinha os documentos que
o comprovavam. Erwin Korányi foi ao gabinete de Wallenberg. Conseguiu provar a
sua ligação empresarial com a Suécia e, posteriormente, a legação prometeu-lhe
que ia ajudar a sua jovem mulher. Ele próprio falara com Wallenberg e
considerava o sueco como «um homem enérgico, claramente impulsionado por uma
profunda força interior».
Assim,
a polícia levou Alice Korányi, de 19 anos, para os novos escritórios do
departamento humanitário. Atrás da
secretária estava um homem de cabelo ralo, educado e que falava num tom calmo que
lhe ofereceu um pouco de chocolate, que tirou de uma caixa, e lhe disse que o
marido dela o tinha procurado três vezes. E explicou que, a partir dali,
ninguém podia fazer nada contra ela, porque estava sob proteção de um país
neutro. E, depois, entregou-lhe um certificado, num papel de tamanho A4. Alice
sentia-se enjoada e com tonturas. Suécia? Isso não era na Escandinávia? Quando
estava prestes a partir, Wallenberg disse-lhe: «Lembre-se, a sua relação com a
Suécia é a empresa Kanthal, em Hallstahammar.»
Raoul conhecia bem a Kanthal. Conhecia o
proprietário, Hans von Kantzow, e conhecera o seu filho e filhas. Von Kantzow
desempenhara um papel importante no outono de 1938, quando Raoul ajudou o
engenheiro judeu-alemão Erich Philippi a fugir de um campo de concentração da
Alemanha para a Suécia.
Com
o documento na mão, foi uma Alice atordoada que saiu, a cambalear, para a rua,
onde o seu jovem marido, Erwin, a esperava. Depois de um banho e de ter tirado
os piolhos, Alice regressou a Peste, ao buraco infecto onde viviam os sogros. A
partir desse dia, toda a família Korányi começou a praticar a frase: «A empresa
Kanthal, em Hallstahammar.» Tornou-se o seu mantra. Todos eles tinham ganho protecção da Suécia graças à
ligação com essa empresa.
Pouco depois, tanto Alice como o marido
tinham um novo passaporte de protecção sueco. E esta foi a primeira vez, mas
não a última, em que Raoul Wallenberg foi em seu auxílio.
Em agosto, o trabalho no departamento
humanitário, na Minerva utca, começou a estabelecer uma rotina. Wallenberg era
o centro das actividades. Falava continuamente ao telefone, fazia anotações ou
dava instruções num alemão fluente, mas que, aos ouvidos dos colegas de
trabalho, soava com sotaque americano, «uma espécie de jargão empresarial do
outro lado do mar», como o descreveu o irmão de Gábor Forgács, Pál. «… uma
linguagem que, no entanto, lhe assentava bem, de uma forma engraçada, tal como
o casaco corta-vento e o chapéu de feltro mole ou, mais tarde, o capacete de
aço cinzento e o saco-cama».
Quando não estava a escrever,
Raoul estava a desenhar. Assim como
na Mid-European Trading Company, também aqui a sua secretária estava sempre
cheia dos seus esboços rápidos e rabiscos. «Quando estava a falar ao telefone
ou quando ouvia alguém contar- -lhe alguma coisa, quando estava a falar, sim,
mesmo quando pensava, ele estava sempre a desenhar», disse, mais tarde, a sua
secretária, Frau Falk.
Muitos dos colegas de trabalho de Raoul também se interessavam por
arte.
Quando, por acaso, conseguia ter um momento de paz gostava de conversar com
eles sobre obras-primas da história da arquitectura. E, muitas vezes, desenhava
pequenos esboços para mostrar aquilo em que estava a pensar. Mas, na
maior parte do tempo, trabalhava a um ritmo infernal. Andava depressa, pensava
depressa e tomava decisões depressa, sem perder o controlo organizacional. Havia
quem o achasse tenso, outros interpretaram a sua atitude como uma expressão do
seu foco e determinação. Desde o início, os colegas ficaram impressionados com
a sua incansável energia e capacidade de trabalho.
Raoul Wallenberg tinha o seu
gabinete na parte de trás da villa, com uma grande secretária e o seu próprio
telefone. Na sala ao
lado, havia uma fila de dactilógrafas, em secretárias ao lado umas das outras.
Tinham a tarefa de aceitar os pedidos de passaportes de proteção e de
lhes juntar os telegramas que chegassem dos supostos familiares ou parceiros de
negócios, na Suécia. Um paquete
corria de um lado para o outro, entre o departamento humanitário e a legação,
no edifício ao lado, porque era aí que ficava a sala do telégrafo.
Algumas daquelas dactilógrafas tinham
sido recrutadas por Raoul entre as alunas de Sueco de Valdemar Langlet. Desempenharam um papel importante quando,
em meados de agosto, começou o processamento dos passaportes de protecção,
porque sabiam ler sueco e, assim, conseguiam classificar as respostas, que
chegavam por telegrama, em dois grupos: as que confirmavam a ligação do
requerente com a Suécia e as que não confirmavam. Os candidatos aceites tinham
de apresentar duas fotografias.
Gabriella Kassius, na altura
Gabriella Margalit, foi uma das estudantes de Sueco que, em agosto de 1944,
começou a trabalhar para Wallenberg. Recorda
que colavam as fotografias nos passaportes, dactilografavam o nome e, depois,
anexavam as respostas vindas da Suécia com um clipe. Raoul revia cada um dos
processos e assinava-os. Segundo Gabriella Kassius, ele era muito exigente e
sublinhava constantemente o quão importante era que não houvesse confusões, que
era uma questão de vida ou de morte. Raoul estava ansioso para que a equipa
começasse rapidamente as suas próprias actividades de resgate. Não queria que
os passaportes protectores sofressem a mesma perda de credibilidade que as
cartas da Cruz Vermelha. Isso arruinaria tudo, dizia ele.
Todas as noites, Raoul Wallenberg ia
ter com Ivan Danielsson, ao edifício da legação, levando-lhe as resmas de
passaportes protectores processados daquele dia. E eram todos carimbados e
assinados sem que o ministro lhe fizesse uma única pergunta complicada.
Por vezes, como no caso de
Alice Korányi, havia necessidade de contacto directo com os campos de
internamento para que os prisioneiros com ligações suecas pudessem ser
retirados. Raoul definiu, rapidamente, uma rotina para esses
casos. Escrevia uma carta de verificação, confirmando que o passaporte fora
emitido, certificava-se de que todos os carimbos eram postos no sítio certo,
enviava o original ao ministro e uma cópia, por correio, ao comandante do campo
de internamento em questão.
No início de agosto, Raoul
tinha 40 funcionários e o departamento não parava de crescer. Raoul, que era um
hábil administrador, dividiu-os em grupos, desde o início. Havia «a secção de
recepção, a secção de registo, contabilidade, arquivo, a secção de
correspondência, bem como a secção de transportes e habitação». Esta
abordagem disciplinada foi essencial. Raoul tinha 4 mil pedidos em cima da sua
secretária e, em média, havia 600 novos pedidos por dia. A pressão foi tão
grande que o gabinete ficou sem formulários de candidatura e os requerentes
tiveram de copiar os documentos uns dos outros, com um hectógrafo antiquado.
Todas as noites, Raoul
Wallenberg ia ter com Ivan Danielsson, ao edifício da legação, levando-lhe as
resmas de passaportes protectores processados daquele dia. E eram todos
carimbados e assinados sem que o ministro lhe fizesse uma única pergunta complicada.
A
secção de transportes e habitação também não estava parada. A legação sueca
acabara de receber uma promessa concreta sobre um edifício, em Peste, que seria
esvaziado para abrigar os judeus suecos protegidos. «Com o tempo, os edifícios
próximos, na mesma rua, serão transformados em campos de trânsito suecos»,
escreveu Raoul Wallenberg, num relatório de 6 de agosto de 1944.
Os americanos continuaram
consideravelmente mais interessados em influenciar a direcção do trabalho de
Wallenberg do que o MNE sueco. O War Refugee Board, em Washington, depressa
enviou instruções adicionais a Iver Olsen para que fossem encaminhadas para o
recém-recrutado emissário, em Budapeste. Um dos pontos levantados foi
o de que Wallenberg deveria procurar a cooperação da legação portuguesa, uma
vez que o Departamento de Estado norte-americano tinha constatado que os
portugueses agiam secretamente em nome dos judeus. Num
telegrama especial assinado pelo vice-secretário de Estado Edward Stettinius
Jr, era pedido a Olsen para «expressar o grande apreço do WRB pelos esforços de
Wallenberg».
A esperança do War Refugee Board sempre
foi a de que Raoul conseguisse facilitar a saída da Hungria de grandes grupos
de judeus. Mas, agora, Washington dava luz verde ao desejo de Raoul de
construir um campo, em Budapeste, para proteger os judeus. O WRB escreveu que
estavam satisfeitos por terem recebido uma «estimativa do custo da operação do
campo experimental sugerido, bem como as suas opiniões sobre até que ponto pode
ser financiado sem fornecer gratuitamente divisas estrangeiras ao inimigo. A necessidade de protecção parece ser a base adequada
para a selecção».
O
War Refugee Board insistiu, também, que a principal orientação do trabalho de
Raoul devia ser ajudar os judeus húngaros a fugirem do país. Era um dado
adquirido que isso podia exigir negociações puramente «comerciais». No
telegrama assinado por Stettinius, os americanos sugeriram, portanto, que
Wallenberg procurasse Vilmos Billitz, do grupo empresarial Manfréd Weiss. Billitz era o homem que facilitara os
contactos entre a família judia proprietária do grupo Manfréd Weiss e o
principal negociador de «acordos comerciais» de Himmler, o oficial Kurt Becher.
A negociação terminou em maio, com as SS a ficarem com o maior empreendimento
industrial da Hungria, as fábricas Manfréd Weiss, em troca de garantir a livre
passagem para cerca de 50 membros das famílias dos proprietários.
Billitz tinha, então, ajudado a organizar a fuga das famílias para a
Suíça e para Portugal. Ainda ocupava um cargo nas empresas Manfréd Weiss e era
o elo nomeado para Kurt Becher, que, após o seu sucesso em maio, continuou com
mais dessas «negociações comerciais». Em breve, Wallenberg seguiria esse
conselho.
HISTÓRIA CULTURA LIVROS LITERATURA HOLOCAUSTO
COMENTÁRIO:
pertinaz: Factos históricos muito interessantes… o facto mais escamoteado durante
décadas é o de que os russos (soviéticos) também odiavam os judeus e
assassinaram todos os que conseguiram… comunismo equivalente ao nazismo… Wallemberg
foi um dano colateral no processo… morreu na prisão à mercê dos comunistas…
ESCUMALHA…!!!
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