Estas que JNP nos traz,
com sugestões de equiparação com as nossas próprias visões impressionistas, não
de soleil levant, de um torpor
brumoso - que mereceu críticas mas deu o nome a uma escola de pintura imorredoira
– mas de um soleil couchant de pesadelo pelo que nos toca a nós, em visão clara,
embora de uma paisagem de beleza natural, suavizadora da preocupação.
150 anos de
impressionistas: a vida como ela era, ou talvez não
O impressionismo apareceu três anos
depois da derrota francesa na guerra contra a Prússia e da Comuna de Paris, mas
os pintores do novo movimento não se ocuparam da cidade destruída e das suas
feridas
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 18 mai. 2024, 00:1712
Passaram 150 anos sobre o primeiro salão dos impressionistas em
Paris, manifestação de um conjunto de pintores que revolucionou a arte europeia
e marcou o afastamento da pintura da arte mimética mais académica. Basta
lembrar os nomes de alguns deles para perceber do que estamos a falar: Claude
Monet, Auguste Renoir, Édouard Manet, Camille Pissarro, Edgar Degas, Alfred
Sisley, Paul Cézanne, Mary Cassatt, Berthe Morisot.
E para o entender melhor, podemos também
lembrar alguns dos quadros do novo grupo de pintores: Impression, soleil levant, Le bal au Moulin de la
Galette, La classe de danse, Femme à sa toilette, Le berceau, La Place du Havre,
Effet de pluie, Petite fille dans un fauteuil bleu, Le déjeuner sur l’herbe,
L’Olympia, La maison du pendu.
Talvez o nome do grupo viesse do quadro
de Monet, Impression, soleil levant, que criou
alguma curiosidade e crítica, como se fosse uma obra inacabada, naquela miscelânea de pinceladas, uma paisagem de
água e céu indecisos, com uma luz hesitante, vaga, que parece resignada a ficar
assim para o resto do dia.
Era uma novidade, este modo de pincelar as cores, numa amálgama que
parecia irresoluta e inacabada? Talvez não
fosse, se pensarmos nalguns quadros de Franz
Hals ou dos Breugel. Mas
o recurso à cor e às cores, a indefinição, o afastamento, quer da precisão
“maquinal” da fotografia e da ilustração jornalística, quer do mimetismo mais
académico, iam definir o movimento, logo catalogado como “impressionismo”; um
movimento que ia ser de tal forma marcante que daria direito a um antes e um
depois, e a pré-impressionistas e pós-impressionistas. Entre os
primeiros, podemos incluir Eugène Delacroix e Gustave Courbet; entre os
últimos, Cézanne, Gauguin e Vincent Van Gogh.
Ao lado da tragédia política
O impressionismo apareceu num
tempo politicamente significativo: em 1874, tinham passado três anos sobre a
derrota e a humilhação da França, vencida pela Prússia-Alemanha de Bismarck; e
também acontecera a Comuna de Paris, os excessos dos communards e a revanche e
repressão dos versaillais. Isto deixara marcas no coração de Paris e dos
parisienses, que podiam, em Junho de 1871, olhar as ruínas e os destroços
causados pelos fogos de artilharia.
Mas os pintores do impressionismo não
se ocuparam da cidade destruída ou das suas feridas, com excepção talvez de Corot, em Le Rêve: Paris incendié. E no entanto, entre a guerra exterior, contra os
prussianos, e a guerra civil da insurreição, da ocupação da capital pelos communards
e da resposta e repressão dos versaillais, Paris e os seus monumentos tinham sofrido bastante: o Hotel de Ville, o Louvre, as Tulherias, o
Palais Royal estavam parcialmente destruídos e a reconstrução
iria estender-se pela década de 1870 e entrar pelos anos 80.
Sobre estas ruínas e destruições
precipitaram-se os fotógrafos e os ilustradores, em clichés e desenhos que
apareceram nos jornais. Mas os impressionistas, excluindo a litografia de Manet Guerre Civile, pareciam
alheados da tragédia. O aparente desinteresse artístico pela actualidade
jornalística imediata, tomada por fotógrafos e desenhadores, o mercado de arte
e o facto de quase todos eles estarem fora da capital poderão talvez explicá-lo:
Monet vai para Argenteuil, Berthe
Morisot está em Charbourg, Degas na Normandia, Renoir em Bourron-Marlotte; Mary
Cassatt ainda está na América, na Pensilvânia. Mas os que estão em
Paris, como Gauguin, Guillaumin e Jongkind, pintam paisagens idílicas, como La Seine à Paris (Guillaumin) ou Le Canal de l’Ourcq prés de Pantin (Jongkind). Seurat deixará
uma memória desse tempo trágico em Ruines
des Tuilleries.
Os quadros de Paris dos anos
70 dos impressionistas voltavam-se preferencialmente para os jardins, para o
Sena, para as praças, para as cenas burguesas da joie de vivre em troços da
cidade e arredores que não tinham sofrido a destruição da guerra e da guerra
civil. Por muitas e complexas razões – da cabeça e do coração, mas também da
bolsa.
Os artistas estavam em princípio de
carreira e os clientes eram fundamentais. Paul
Durand-Ruel, um
“marchand d’art” que foi também protector e mecenas da “nova escola”, tinha de
bater-se com o antagonismo
dos académicos e as consequências do endividamento constante perante a parca
procura das obras em França. Iria
valer-lhe a América: em Nova Iorque, em 1886, o salão de 300 telas
impressionistas ia ser um grande sucesso.
De qualquer forma, os compradores
franceses e americanos preferiam paisagens idílicas, almoços na relva,
concertos populares, recantos românticos, mesmo se pintados ao novo estilo, a
paisagens de ruínas e de guerra.
Também os vencedores, na pós-revolução conservadora, velavam pela
ordem e lei, mesmo nas artes: em 1872 saíra uma lei que sancionava obras
que fizessem a apologia da Comuna; e os
impressionistas, embora houvesse, entre eles, alguns simpatizantes
progressistas, não queriam mais confusões. O facto de serem “revolucionários” na estética já lhes
trazia problemas de sobra.
Assim, Monet e Renoir vão pintar a Paris
do Segundo Império, com as novas avenidas de Haussman. Monet pinta Boulevard
des Capucines em 1873, uma paisagem
urbana, com a silhueta dos belos edifícios, das árvores, das carruagens, entre
neve, nuvens altas e gente que se mexe na neve, como numa tela de Bruegel, o
Velho. Em 1872, Renoir pintara Pont-Neuf, uma festa de cor, gente e carros, sob um
céu de meio-dia e nuvens brilhando ao alto. Já Le Pont Neuf de Monet, de 1873, ia ser um quadro sombrio e chuvoso, com gente
curvada, protegendo-se da bátega debaixo dos chapéus de chuva.
Nestas
e outras obras, sob a pressão do mercado ou por vontade própria, os
impressionistas procuraram marcas de uma cidade bela, burguesa, moderna, com
comboios e estações; uma cidade com referências à monumentalidade
aristocrática, mas também com espaço para os bairros e as gentes populares.
O “ano terrível” de 1871 ficaria, assim, esquecido. Como
observaria Robert Herbert em 1991, o modo de os impressionistas verem Paris e a
vida de Paris era “sintomático do
espírito de reconstrução do pós-guerra e da vontade de restabelecer o orgulho
ferido da França”, retratando “uma atmosfera de optimismo”.
Impressões de Proust e Baudelaire
Marcel
Proust, o
narrador por excelência desse tempo de Paris e da França, era um admirador dos
impressionistas, sobretudo de Claude Monet. Em A la recherche aparece um pintor,
Elstir, que, segundo o narrador, tem uma profunda influência na sua maneira ver
as coisas (“Mme de Sévigné est une
grande artiste de la même famille qu’un peintre que j’allais rencontrer à
Balbec et qui eut une influence si profonde sur ma vision des choses, Elstir.”)
Elstir desorienta os frequentadores do
salão de Madame Verdurin, fiéis ao realismo da Academia, porque, como o narrador
de A la recherche escreve em A
l’ombre des jeunes filles en fleur, se Deus Pai criou as coisas nomeando-as, Elstir
recreava-as renomeando-as (“Si Dieu le
Père avait créé des choses en les nommant, c’est en leur ôtant leur nom ou en
leur en donnant un autre qu’Elstir les recréait”).
É pela recriação de Elstir da realidade, ou pela sua percepção e
reinvenção da realidade na luz e na cor, que Marcel Proust reafirma o lado
criador e recriador de toda a arte.
Ao
pintar a realidade, a nova realidade, os impressionistas também respondiam a
uma queixa de Baudelaire que, em 1862, lamentava que os artistas plásticos
repetissem as vestes e os décors do passado, de Roma, da Idade Média, da
Renascença, do Oriente…
Os impressionistas – e também por isso
eram mal recebidos pelos seus pares da Academia – pegavam na realidade, no
porto do Havre, nos boulevards de Paris, e pintavam as pessoas comuns, como que
surpreendidas no quotidiano, fora das tradicionais poses de retrato. Ao sol, à
chuva, de manhã, ao fim do dia, pintavam a vida como ela era. Ou talvez não,
talvez fossem só recriações, percepções, impressões, sonhos de normalidade.
COMENTÁRIOS:
Maria Cordes: Ler o seu artigo, é como uma lufada de ar fresco sobre a realidade do mundo
de hoje. Sinto-me "impressionista" vitor Manuel: Brilhante este subtil texto de
J.N.P.. a comprovar que 150 anos poderá não ser assim tão distante ... João Floriano: Excelente como sempre. Num
aparte: qual a razão de o artigo estar catalogado como desporto? A arte tem
poder curativo sobre os males da sociedade, como se vê no caso dos
impressionistas e como reagem à destruição que testemunharam Madalena
Magalhães Colaço: Na minha primeira visita a Paris fui ao Jeu de Paume, a casa onde à época
os impressionistas aguardavam há anos por uma casa maior. Lembro-me das salas
cheias de gente, mas o que a minha memória registou foi algo singular: o ruído
do parquet a ranger debaixo dos meus pés. Há uns anos, de visita ao Petit
Palais, pisei o parquet de uma sala de acesso a uma galeria e o mesmo ruído do
ranger da madeira debaixo dos meus pés transportou-me, de forma involuntária,
ao Jeu de Paume da minha infância. No pátio do novo palacete dos Guermantes, o
narrador de Proust, ao tropeçar nas pedras irregulares da calçada e ao colocar,
ao endireitar-se, um pé numa pedra menos alta que a anterior é invadido pela
mesma felicidade que em tempos sentiu ao pisar duas lajes diferentes do
baptistério de São Marcos. Talvez a memória involuntária mais conhecida da Recherche, o sabor da madeleine, o pequeno bolo,
que mergulhado no chá de tília fizera entrar num dia de Inverno no seu quarto
em Paris, o quarto da sua tia Léonie e atrás dele Combray inteira,
interpela-nos ainda hoje, porque, e como diz Roland Barthes, cada um de nós
tem a sua Combray e é essa a grande genialidade de Proust que não se limita a
retratar a sua época. Mas ao rememorar essa visita ao Jeu de Paume, já não
consigo distinguir se recordo o menino do pífaro de Manet porque o vi numa das
salas ou se o recordo porque ilustrava a capa do meu livro de francês do liceu. Francisco Figueiredo: Muitíssimo interessante, gostei imenso do artigo. Américo Silva: Uma bonita crónica. Tim do A: Muito interessante Maria
Nunes: Excelente artigo JNP. Obrigada por mais uma brilhante lição. Os
impressionistas transmitiam magia na sua pintura. Há um pequeno engano sobre o
pintor que pintou Impression, soleil levant. Foi Monet e não Manet. António Antunes: Um artigo, ele próprio,
traçando um quadro impressionista sobre os impressionistas. Parabéns! Meio Vazio: Tão excelente a prosa como a
lição. José Carvalho: Excelente artigo.!!!
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