O certo é que os vários canais do olho
atento aos vários debates parlamentares nem nos deixam respirar, pois chamam
imediatamente à liça os habituais intérpretes dos debates e dos contendores e
de tudo o que ocorreu no Parlamento, que, ao invés de serem dados sobre a
governação a fazer-se, constantemente desandam em conversas de chicana saloia, de
acusações mútuas, com arreganho e despudor. Por isso se incrimina também a CS
por colaborar na chicana.
Da liberdade de expressão e da democracia
A esquerda, a continuar assim,
torna-se num perigo para a democracia. Não quer decidir apenas das suas
opiniões, mas impor opiniões aos outros. Afirma e expande uma cultura de
censura.
JOSÉ RIBEIRO E
CASTRO Advogado e cidadão
OBSERVADOR, 21 mai. 2024, 00:1324
Uma intervenção de André Ventura, na Assembleia
da República, a propósito do novo aeroporto, gerou, de salto em salto,
uma tempestade política que ainda rola por aí. O tema é realmente liberdade
de expressão ou censura. E puxou-se como seu alegado objecto “racismo e
xenofobia”. Porquê? Porque o líder do Chega, ao questionar que o novo aeroporto
demorasse dez anos a ser construído, disse isto: “O aeroporto
de Istambul foi construído e operacionalizado em cinco anos, os turcos não são
propriamente conhecidos por ser o povo mais trabalhador do mundo”. Acrescentando:
“Podemos ser muito melhores que os
turcos, que os chineses, que os albaneses, vamos ter um aeroporto em cinco
anos”.
Tanto bastou para que se armasse, a
partir da esquerda parlamentar, um enorme charivari, exigindo à Mesa admoestar
Ventura e fazê-lo calar, em nome dos direitos humanos. O presidente explicou, com calma,
pormenor e clareza, a posição de não intervir, afirmando a liberdade e
rejeitando a censura. Mas a esquerda insistiu, pondo no vértice do debate não o líder do Chega e suas opiniões, mas
o presidente da Assembleia, a sua acção e a sua própria liberdade. À
noite, a SOS Racismo, disparatando, sentenciou
que “o presidente da Assembleia da República não tem condições para continuar
no cargo”.
Para começo de conversa, convém termos
presente, antes de tudo o mais, que a
liberdade de expressão é um direito humano, dos principais. E que a
liberdade de expressão dos deputados é não só a liberdade do cidadão (que
também é), mas o instrumento imprescindível da própria democracia pelo qual, como deputado, diz o que pensa e quer e
nós o podemos conhecer,
apreciar e julgar.
Na mesma linha dos textos fundamentais
da revolução americana de 1776, a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão proclamada no quadro da revolução francesa de 1789, enuncia nos artigos
10.º e 11.º: “Ninguém pode ser molestado por suas opiniões”; “A
livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do
homem”; “todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente”. Quem agir
contra isto age contra os direitos humanos. Mas
não se pense que estes direitos são ilimitados. Têm, como quaisquer
outros direitos, limites, que constam também dos mesmos artigos 10.º e 11.º:
“desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida
pela lei”; “respondendo, todavia,
pelos abusos dessa liberdade nos termos previstos na lei”. Para o
calibrar, podemos, ainda hoje, recorrer à filosofia clássica do artigo 4.º,
quanto às liberdades e seus limites: “A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique o
próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por
limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos
mesmos direitos. Estes limites só podem ser determinados pela lei”.
Este enunciado matricial consta em
todas as Constituições que são tributárias das traves axiais do
constitucionalismo moderno e das democracias liberais, fixadas no final do
século XVIII. Vem até à recente Carta Europeia dos Direitos Fundamentais,
curiosamente também nos artigos 10.º e 11.º: “Todas
as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião”; “Qualquer
pessoa tem direito à liberdade de expressão”. E vem também até à nossa
Constituição, sobretudo nos artigos 37.º e 41.º: “Todos têm o direito de
exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou
por qualquer outro meio”; “A liberdade de consciência, de religião e de culto é
inviolável”.
Por isso, o presidente da Assembleia esteve muito bem ao apoiar-se
directamente na Constituição para decidir e agir como fez – segunda figura do Estado, também ele tem o
dever de respeitar e fazer respeitar a Constituição. Esta é
muito clara, no artigo 37.º, ao remeter para os tribunais quaisquer ofensas
cometidas no exercício desta liberdade: “as infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas
aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação
social”. E, em simultâneo, ao proibir categoricamente a censura: “O exercício destes direitos não pode ser
impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”. Claro como
água límpida.
O
drama encenado por estes dias deve-se ao tique em que a esquerda se tem
especializado a vociferar e esbracejar: o tique da escandalização. A uma
opinião de que discorda não manifesta oposição ou contraponto; é logo posta pressão para que essa
opinião seja encurralada e impedida de ser expressa.
Os pretextos podem ser vários: desde sexismo, racismo, xenofobia e similares a
temas do tempo como animais, clima e género. O tique é sempre o mesmo: “Oooh!
Ouviste?”; “Aaah! Escutaste?”; “Viram? Viram bem?”; “Leste o que escreveu?”; “Como
pode ser?”; “Tem de ser proibido”. A agitação é escandalizar quanto a tudo o
que fuja ao diapasão da esquerda. As redes sociais enchem-se deste rodopio, com
destaque para o X (antigo Twitter), cujo formato é especialmente propenso ao
metralhar contínuo de tiro curto e rápido. O objectivo é condicionar em
absoluto o espaço público: cercar e amordaçar adversários, gerar intimidação
geral, impor pensamento único, afirmar uma reitoria vigilante e uniforme.
Em S. Bento, foi o Bloco a abrir o
cortejo, logo seguido pelo PS e pelo Livre. Todas as tintas foram carregadas e
o tom exagerado a preceito. A líder da bancada do PS,
por exemplo, foi ao ponto de apontar a Aguiar Branco a criminalização do
“discurso de ódio”. Ora,
apagadas as luzes das câmaras e desligados os microfones, a deputada Alexandra
Leitão, jurista qualificada, reconhecerá facilmente que ninguém consegue
enquadrar na moldura do artigo 240. do Código Penal aquilo que Ventura
dissera – nem de perto, nem de longe.
O enredo da escandalização, alvejando
o presidente da Assembleia da República, não o Chega, rolou para o
fim-de-semana. Chegou Paulo Raimundo, líder do PCP:
“Esteve mal o presidente da Assembleia,
em permitir vulgarizar estas afirmações e estas declarações”. Mas,
provando estar a leste dos factos, saiu-se com esta: “Não aceitamos
declarações racistas e xenófobas que promovem o ódio, que querem branquear esse
passado triste colonial, que querem branquear o fascismo”. Como? Onde ouviu isto? Insistiu o Bloco, pela líder Mariana
Mortágua: “A Assembleia da República é fundada em regras de
democracia e em regras de respeito, desde logo de respeito pelos Direitos
Humanos. Da mesma forma que não insultamos o presidente da Assembleia da
República, nem outro deputado, também não insultamos outra nacionalidade,
porque isso é racismo, é injurioso e o Regimento não o permite”. Do PS,
cada vez mais parecido com o Bloco, juntaram-se mais vozes ao coro, com a notável excepção de Sérgio Sousa
Pinto. O líder, Pedro Nuno Santos,
pôs-se na trincheira: “Ao
discurso racista, ao discurso xenófobo, temos de dar combate diário.
Esperávamos muito mais do senhor presidente da Assembleia da República”.
E, em campanha europeia, Marta
Temido afirmou-se em “perplexidade e choque” e fixou doutrina: “Todos nós partilhamos da ideia de que a
liberdade de expressão é um valor em si próprio, mas também entendemos que a
liberdade de expressão tem um limite, que é o limite do insulto. Além de que
determinados tipos de verbalização podem constituir crime”.
Algumas destas afirmações estão certas. Só
que não se aplicam aos factos ocorridos. Às tantas, na escalada de
escandalização consecutiva, políticos e comentadores houve que entraram a comentar o comentário do comentário do
comentário… O delírio.
Todo este tiroteio não conseguiu
responder à posição espontaneamente enunciada pelo presidente da Assembleia da
República, no próprio momento do debate. Apesar do coro a várias vozes, dos
adjectivos e das proclamações sonoras para servir a técnica do escândalo, não
conseguiram vencer, nem convencer.
Para o entender, é
preciso conhecer a norma regimental a que a líder do BE se referiu. Diz isto: “O
orador é advertido pelo Presidente da Assembleia da República quando se desvie
do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo,
podendo retirar-lhe a palavra”(artigo 89.º, 3). Como é bom de ver, quem
interpreta é o próprio presidente: é
ele que julga
se o orador se desvia da agenda, ou não; é ele que avalia se há injúria ou ofensa,
ao ponto de advertir e cortar a palavra. No
mais, é como sabemos: há casos em que todos achamos que há ofensa ou
insulto, e outros casos em que todos cremos que não há; no meio, há a imensidão
de casos em que é duvidoso. O presidente é soberano quanto ao seu desempenho e
aos seus critérios.
É também essencial focar-nos no discurso do deputado André Ventura: “O
aeroporto de Istambul foi construído e operacionalizado em cinco anos, os
turcos não são propriamente conhecidos por ser o povo mais trabalhador do
mundo.” Esta afirmação pode ser discutida. Mas é
racista e xenófoba? Mesmo com várias camadas de exagero e distorção, não é. Não é uma frase sobre que
todos digamos espontaneamente ser ofensa ou insulto.
E o que disse
o presidente Aguiar Branco, quando interpelado para admoestar? Disse
respeitar a liberdade de expressão e não fazer censura, como manda a
Constituição. Fez bem. Insistiu que,
havendo posições diferentes, deveriam
confrontar o orador e não instar o presidente a ser censor ou polícia.
Realçou que a democracia é todos vermos como fala cada qual e julgarmos por nós
mesmos. Outra vez bem. Acrescentou aceitar plenamente a discordância, devendo,
aí, recorrer-se para o plenário; e, se o plenário decidisse diferente,
aplicar-se-ia esta decisão, mas ele não faria censura contra a sua consciência.
Muito bem de novo. E, interpelado sobre poder haver crime, disse que quem o
pensasse deveria denunciá-lo para o julgamento ser feito em sede judicial. Não
podia dizer melhor.
Há umas últimas notas que têm de ser
feitas. No
confronto entre direitos fundamentais e seus limites, importa fazer sempre
interpretação restritiva dos limites. A
norma é a liberdade de expressão, não são os limites que são a regra. Estes só devem aplicar-se, quando perante situações de ofensa grave e
patente, que não possam ser protegidas doutra forma. E, mesmo nestes casos, a
via para o apreciar e decidir é a via judicial, com o rigor, a ponderação e a
objectividade que lhe são inerentes – não o berreiro politiqueiro de ocasião,
para servir paixões ou repentismos.
A conclusão que
deste debate devemos tirar é, portanto, outra. A esquerda, a continuar assim,
como vem galopando há pelo menos uma década, torna-se num perigo para a
democracia. Não quer decidir apenas das suas opiniões, mas impor opiniões aos
outros. Dita as opiniões que acha certas ou, quando menos, aceitáveis e arvora
a reitoria geral do mando sobre a palavra permitida. Afirma e expande uma
cultura de censura.
O discurso que a esquerda mais maneja é já esse: proíba-se, cale-se, censure-se. Está sempre pronta a inventar um motivo, mais um pretexto para acenar com
a mordaça. Nem se diga que é “combate ao extremismo”, pois a esquerda
vulgarizou o critério: quase tudo é já “extremismo” ou assim pode ser vestido.
A esquerda mostra querer construir uma democracia
de perímetro limitado, cada vez mais circunscrito. Ora, uma democracia de
perímetro limitado é, no mínimo, iliberal e, provavelmente, nem sequer
democracia.
Precisamos em S.
Bento de um presidente da Assembleia da República democrata, de sólidas convicções
democráticas. José Pedro Aguiar Branco mostrou estar no lugar certo, na altura certa,
com a posição certa. O que mais me impressionou foi exprimir uma posição
definida espontaneamente, num incidente inesperado e debaixo de interpelações
consecutivas. Isto é, não foi uma engenharia planeada, mas convicções sólidas,
enraizadas e amadurecidas. Isso transmite muita confiança. A liberdade de
direcção parlamentar está em boas mãos. E é um belo exemplo para a sociedade.
ASSEMBLEIA DA
REPÚBLICA POLÍTICA PARTIDO CHEGA
COMENTÁRIOS (de 24):
Joao Cadete: Gostam de liberdade mas desde
que seja da maneira deles e quem não concorda é fascista. A maioria da
comunicação social vai atrás e trata as pessoas como burras. João Floriano: «À noite, a SOS Racismo,
disparatando, sentenciou que “o presidente da Assembleia da República não tem
condições para continuar no cargo”. E eu digo que o SOS Racismo não tem condições para continuar
a extorquir dinheiro ao contribuinte português e para o enxovalhar
constantemente com conversas da treta. O governo AD devia começar a olhar para
estas associações que a extrema esquerda andou a fazer crescer como cogumelos (todos
sabemos como os cogumelos se dão bem no esterco e no estrume) e averiguar a sua
utilidade. Andarmos a pagar a pessoas como Mamadou Ba e outros que tais e se
não é distracção é palermice.
Ricardo Ribeiro: Boa noite Sr. José Ribeiro e Castro, desculpe as horas mas é só para acrescentar que
infelizmente a esquerda já se tornou um perigo para a Democracia, basta ver o
que sucedeu a este órgão de comunicação social e o que pretendem fazer com a
liberdade de expressão sob a capa de uma das suas causas LGBTI. Bem haja! Coxinho : "A esquerda, a continuar
assim, torna-se num perigo para a democracia." Desculpará, JRC, mas - com
todo o respeito e admiração que me merece! - entendo que a chamada
"esquerda" já há muito tempo se TORNOU um sério perigo para a
democracia, e não só no nosso país. E mais: a tal "esquerda" já
conseguiu destruir a democracia em alguns países. E não vale a pena justificar
a minha afirmação porque os factos falam por si e não há como negá-los. John Doe: Mais preocupante que o Wokismo
reinante tentar desesperadamente levantar ondas e impor-nos a sua Verdade
única, é ainda se andar a perder tempo a retorquir a ONG's parasitárias como o
SOS Racismo, ao histerismo do Calhau de Esquerda a que se juntou agora o
Tavares-dos-4-deputados, ao PS a tentar uma vaga de fundo que lhe permita
aparecer numa qualquer "crista de onda" e nem falo na Miss alfaces do
PAN porque se os outros têm pouca importância, ela não tem nenhuma. Não têm
problemas para resolver lá na AR? Então fechem as portas, sempre se poupa 230
ordenados. Nuno
Andrade > Jorge Pereira: Aqui temos um candidato a
Censor. Se queres conhecer o vilão, põe-lhe uma vara na mão ou dá-lhe acesso a
uma caixa de comentários. João
Amorim: Excelente e
certeiro artigo, aliás como quase todos os textos de JRC, de quem sou um fiel
leitor e admirador. Tim
do A: Certo. A esquerda gosta mais da
censura do que Salazar. A esquerda adora a censura.
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