sábado, 18 de maio de 2024

Não, não temos hipótese


O que se pretende, afinal? Se não se faz, é-se desmazelado, se se pretende fazer, é-se contrariado, tudo fala fala fala, gente, que somos, de falatório, de escrita, de palavrório, cada qual superior em dirigismo, em intervencionismo, em saber dizer, pelo menos para ostracizar, porque se está na época do poder dizer, da calaceirice, do comer de fora, da ajuda exterior, do obstaculizar, do descanso â sombra da faia… O que se pretende, afinal? Provar a nossa inteligência crítica? Colaborar no bota-abaixo do nosso pretensiosismo intelectual de vituperação ou troça? Somos, de facto, pobres. Uns tristes, para não dizer soturnos.

Em terra de cegos quem tem olho é aeroporto

Manhoso, o governo aproveitou a distracção provisória da Pequena Greta e dos seus amigos, entretidos a libertar a “Palestina”, para avançar com o projecto.

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR,18 mai. 2024, 00:206

É português, ou pelo menos terráqueo? Está naturalmente excitadíssimo com o novo aeroporto de Lisboa? Quer saber tudo, tudo, tudo sobre o próximo grande desígnio nacional? Então veio ao lugar certo. Nos próximos parágrafos esclarecerei aos interessados e, espero, a mim mesmo, as dúvidas que tão gloriosa obra, à semelhança dos aviões, levanta.

Alguém disse que se discutiu muito a localização do aeroporto sem se discutir a necessidade. Ora essa: a necessidade, como os gostos, não se discute. O importante é lembrar que Lisboa precisa de substituir a Portela desde 1969, quando esta tinha 2 milhões de passageiros por ano e Marcelo Caetano criou o Gabinete do Novo Aeroporto de Lisboa, que se calhar continua em funções (é melhor alguém ir ver). Cinquenta e cinco anos depois, a Portela recebe 33 milhões de passageiros e, bem ou mal, lá vai bastando. Pelos vistos, no complexo universo da aeroportuária cabe sempre mais um, ou mais um milhão, ou mais 31 milhões. Quando a liderança é cautelosa, não há imprevistos.

Quanto à localização, o poder político também se mostrou irredutível ao longo deste meio século: o novo aeroporto de Lisboa seria sem dúvida em Alcochete. Ou na Ota. Ou em Rio Frio. Ou em Pegões. Ou no Poceirão. Ou em Apostiça. Ou em Alverca. Ou em Beja. Ou em Évora. Ou na Fonte da Telha. Ou em Porto Alto. Ou em algum sítio com nome esquisito e suficientemente distante de Lisboa. Quando a liderança é firme, não há hesitações.

Logo que o actual governo anunciou Alcochete, decisão por enquanto irreversível, festejei abundantemente. A seguir perguntei a uma pessoa do Sul onde é Alcochete. Na verdade, o topónimo não me era demasiado estranho. Enfim lembrei-me do ataque à academia do Sporting, vulgo o maior atentado terrorista em solo nacional. Parecendo que não, é capaz de ser uma ideia feliz. No estrangeiro, é comum cometer-se actos de terrorismo em aeroportos: nós cometemos aeroportos em lugares de terrorismo. Para cúmulo em cima de um campo de tiro e juntinho a duas localidades chamadas Sarilhos, Grandes e Pequenos. Quando a liderança é inovadora, não há acasos.

O prazo para a inauguração do novo aeroporto é igualmente claro: dez anos. Ou sete. Ou seis. Ou oito. Ou quinze. Por mim, concordo com qualquer data. Embora vá raramente a Lisboa (o que por coincidência farei este Sábado, a pretexto de um almoço), costumo ir de avião (idem), transporte que não usaria se me descarregassem perto do Montijo, onde não conheço ninguém. Porém, posso vir a conhecer nos próximos anos, período após o qual terei um aeroporto à disposição para fartas almoçaradas naquela região. Quando a liderança é precavida, não há fome.

Sobre os custos da empreitada para o contribuinte, eis uma agradável notícia: zero euros. Tirando os acessos (as “acessibilidades”), que devem ficar baratos, o novo aeroporto será, jura o governo, pago por inteiro pelas taxas aeroportuárias. Se consigo compreender, a ANA cobra as ditas taxas e obtém lucros anuais que rondam os 300 ou 400 milhões. O novo aeroporto custará seis mil milhões, ou uns doze mil milhões, se arredondarmos. Isso significa que a ANA abdicará dos seus ganhos durante vinte, trinta ou quarenta anos apenas para oferecer o “Luís de Camões” à nação. Quando a liderança é poupada, não há abusos.

A propósito de Camões, o novo aeroporto já nasceu baptizado. Pode-se, e deve-se, criticar a opção por um homem, caucasiano e, ao que consta, “cisgénero” e heterossexual. Mas a deficiência física compensa um bocadinho. De resto, antes o poeta que o general que combateu Salazar após servir o Estado Novo e que se mudou para os Aliados (da IIª Guerra, não do Porto) após cantar louvores igualmente poéticos e épicos ao Führer. E que, sendo homem, caucasiano, “cisgénero” e tal, nem sequer era zarolho. Quando o poder é visionário, não há discórdias.

E o ambiente? Além dos “estudos de impacto”, uma estimativa conservadora prevê que o novo aeroporto receberá 100 (cem) milhões de passageiros em 2050, o triplo dos actuais e uma quantidade de gente que, no mundo, só o aeroporto de Atlanta, por causa das escalas da Delta Airlines, alcançou. É uma surpresa. Eu estava convencido de que no futuro não haveria voos destinados a pelintras, ficando os céus reservados às sumidades que acorrem a cimeiras “climáticas” para explicar aos pelintras que as viagens aéreas são prejudiciais ao planeta. Manhoso, o governo aproveitou a distracção provisória da Pequena Greta e dos seus amigos, entretidos a libertar a “Palestina”, para avançar com o projecto. Quando o poder é astuto, não há obstáculos.

Como se não chegasse tamanha maravilha, a maravilha vem acompanhada de um TGV Lisboa-Madrid, que sai do Barreiro e talvez acabe em Évora ou Elvas, e de uma terceira ponte sobre o Tejo, com fortes hipóteses de ser construída sobre o Tejo e não sobre outro rio. Preço final do pacote? É fazer as contas, na certeza de que estas não afectarão a intensa alegria sentida neste momento por cada patriota autêntico, resida ele em Chelas ou em Chaves, em Alcochete ou em Aljustrel, no Barreiro ou em Barcelos. E ainda não saímos da fase dos anúncios: imaginem se um dia for a sério. Esclarecidos? Eu estou.

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COMENTÁRIOS:

Ana Luís da Silva: O anúncio do novo aeroporto é uma fantochada? É!!! Imagine-se uma família numerosa, de 10 membros, que assenta a sua subsistência no trabalho fora de casa da mãe. Com cerca de 1000 euros (sejamos generosos) trata de pagar a comida, a electricidade a água o IMI, a prestação ao banco, as deslocações, as fraldas do mais novo e o vestuário e calçado da família toda. Como o faz? Não faço ideia. O pai tem por função gerir a casa com os (restantes) 50% do ordenado da mãe e não tem tempo para mais nada: trata de fazer as obras de manutenção da casa, de dar a comida ao cão e (claro e muito importante), para além de estacionar o carro na garagem, de ter as ideias e a clarividência onde gastar uns 500 euros que a família vai recebendo de quando em vez, de uma tia por afinidade idosa que vive na Alemanha. Como precisa de ajuda para as obras, acolheu uma família de 20 homens imigrantes no barracão do jardim, onde já dormiam os filhos adultos, que entretanto tiveram que se fazer à vida e ir trabalhar para o estrangeiro. Infelizmente, a mãe teve um esgotamento nervoso, porque as duas filhas menores eram assediadas sempre que saíam ou entravam em casa, o jardim fora transformado numa mesquita ao ar livre e o ordenado deixara de conseguir pagar as despesas com a saúde e a educação de toda a gente. Com o caos a instalar-se o pai percebeu que tinha que fazer alguma coisa com a máxima urgência. Reuniu a família que ainda lhe restava e que incluía os avós e a tia idosa (a qual para não pagar mais impostos no seu país de origem se mudara de malas e bagagens para a única suite existente na casa da família numerosa, que também já não era tão numerosa assim…), e anunciou solenemente: - Tenho um plano para resolver todos os nossos problemas! Vamos ampliar a garagem para receber os primos que vivem no estrangeiro (descendentes da tal tia dos 500 euros), e sobretudo vamos construir uma garagem ainda maior de 5 lugares, para que venham mais e mais primos e primas cá para casa passar férias… pois sempre que vêm trazem doces e prendas para manter os mais novos entretidos.                  F. Mendes: Excelente artigo, mas faço o seguinte comentário: Teria gostado de ler isto, se o assunto não fosse extremamente sério: caso esta loucura vá para a frente, ficaremos com o futuro hipotecado. A entrevista ao actual ministro do sector, é simplesmente arrepiante: o Pinto Luz ignorou o facto de a avaliação ambiental poder dar um parecer negativo (ou extremamente oneroso em termos de medidas de mitigação); nada disse de concreto sobre a terceira travessia; as projecções sobre o tráfego aéreo são delirantes, como o próprio sabe, e reconheceu; o financiamento terá que ser negociado, não se sabendo o que vai dar; justificou Alcochete por permitir aumentar as receitas dos espaços comerciais no aeroporto; e terminou em beleza, dizendo que as razões da não consideração de Santarém teriam que ser perguntadas à CTI. E isto foi o que consegui ouvir antes de desligar, por agoniado. Isto é tão mau, que CH e PS ainda fazem considerações mais irrealistas. Uma desgraça de gente aos comandos do que sobra da Nação. Talvez esta decisão se explique pelo facto de termos eleições à porta. O pior vai ser a pressão que futuros governos sofrerão para avançar mesmo com estes disparates.                 Maria Paula Silva: e a gente tem espaço para isso tudo? cá pra mim... isso são teorias da conspiração. Lol este país cansa-me e os governos enjoam-me. vou pra Marte, ouvi dizer que já lá andam a plantar árvores.                 Eduardo Cunha: Excelente artigo. Parabéns.                   Antonio Serrano: Li com um sorriso divertido! Bem apanhado este aeroporto Luís de Camões. Nos meus 81 anos estou ansioso por agarrar o TGV - vai passar-me à porta - e apanhar o avião para Faro. Para Madrid irei de TGV. Repito, aqui mesmo à porta, no Pinhal Novo, que há de ser a capital de distrito, que já não existe.                    Clavedesol: Grande Alberto Gonçalves! Sempre certeiro! Uma tradição mais antiga que o “Eurofestival”

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