sexta-feira, 3 de maio de 2024

Ainda se fosse nosso

 

Digo, o tribunal… Não haveria o perigo da retaliação imediata exigida pelo senhor presidente, adiada por motivos de atraso sine die, outros casos fazendo bicha prioritária, nas histórias da nossa história judicial. Confiemos no nosso atraso judicial, entre os mais.

A história não é um tribunal

Não sou especialista em história colonial mas estudei história o suficiente para saber duas coisas: os conflitos sobre a história obedecem a motivações políticas do presente e normalmente acabam mal.

JOÃO MARQUES DE ALMEIDA Colunista do Observador

OBSERVADOR, 02 mai. 2024, 07:5139

Os países ocidentais estão em guerra sobre a sua história. Portugal não é excepção. Ora, o Presidente da República, em vez de apaziguar, inflamou as discussões sobre a nossa história, defendendo “reparações” às antigas colónias pelos crimes cometidos durante a colonização. Com a sua habitual irresponsabilidade, Marcelo Rebelo de Sousa não disse quais seriam as reparações e como seriam feitas.

Não sou especialista sobre a história colonial, mas estudei história o suficiente para saber duas coisas: os conflitos sobre a história obedecem a motivações políticas do presente; e normalmente acabam mal. Antes de exibirmos uma enorme ligeireza sobre a compreensão da história, e de fazermos afirmações categóricas, que nada têm de análise histórica, mas sim de luta política, devíamos ter consciência sobre as fracturas que estamos a cavar e as suas consequências. Não duvido das boas intenções de alguns (onde não incluo o Presidente da República), mas são de uma ligeireza e mesmo de uma inocência graves. Como se diz habitualmente, e com razão, o inferno está cheio de boas intenções.

Não vou entrar nos pormenores da história do colonialismo, a qual é muito complicada, e seguramente não se divide entre diabos e anjos. Mas há um ponto fundamental. De onde vem a legitimidade daqueles que se querem tornar os juízes do passado? Que mandato receberam, e de quem, para julgar o que foi feito há 500, há 400, há 300, há 200 e há 100 anos? Por que razão, acham que é válido recorrer a valores contemporâneos para julgar comportamentos de sociedades que viviam com categorias normativas e morais absolutamente diferentes? É extraordinário que a visão punitiva do passado vem de pessoas progressistas. O julgamento do passado com categorias do presente constitui precisamente a negação do progresso.

A arrogância de quem considera que tem o poder e a legitimidade para julgar o passado significa um dos exemplos mais poderosos, e negativos, do comportamento “superhumano” de Nietzsche, que renuncia totalmente à humildade e dá a si próprio os poderes supremos de tudo julgar e de tudo condenar de acordo com a sua experiência particular. Veja-se um exemplo. Muitos que condenam o “imperialismo ocidental”, que quer impor os valores liberais a outros povos e outras culturas, praticam uma espécie de “imperialismo do presente”, impondo os seus valores a todo o passado.

Mas as guerras culturais sobre a história não acontecem por acaso agora. Vivemos um período da política global onde há uma aliança entre a Rússia, a China e o Irão que procura enfraquecer os países ocidentais. Semanalmente, Putin, Xi e os líderes espirituais de Teerão acusam os países ocidentais de colonialismo (como sabemos muito bem a Rússia, a China e o Irão nunca conquistaram impérios) e de crimes históricos. A rejeição da história é fundamental para enfraquecer identidades nacionais e os países ocidentais. Os nossos juízes da história são aliados objectivos das estratégias da China, da Rússia e do Irão de enfraquecer os países ocidentais, a maioria sem ter qualquer consciência disso, mas alguns sabem muito bem o que estão a fazer. Cada vez que se ataca a nossa história com a violência com que o Presidente o fez, reforça-se o poder daqueles que nos países de língua portuguesa se querem aliar à China e à Rússia e não aos países ocidentais. Terão Putin e Xi acrescentado Marcelo à lista dos seus aliados no Ocidente?

Obviamente, a história deve continuar a ser discutida e interpretações diferentes do passado são bem-vindas. Mas interpretar, criticar não significa julgar tempos diferentes com os nossos quadros mentais e normativos, como se estivéssemos a colonizar o passado com as ideologias contemporâneas.

Mas há outra questão relevante. O conceito de responsabilidade colectiva é muito polémico. Há muitos portugueses que se recusam a aceitar responsabilidade pelo que aconteceu no Império português. Nas democracias liberais e pluralistas, por regra, a responsabilidade individual deve prevalecer sobre a responsabilidade colectiva. Desconfio que a maioria dos portugueses não sente responsabilidade individual pelas políticas coloniais do passado. Só em circunstâncias absolutamente excepcionais é que a responsabilidade individual deve estar subordinada à responsabilidade colectiva. E, para que isso aconteça, é necessário um consenso nacional muito forte. No caso das “reparações” às antigas colónias parece-me que estamos muito longe de um consenso nacional. Pelo contrário, parece ser uma questão fracturante que só irá dividir ainda mais o país.

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COMENTÁRIOS (de 39)

 Carlos Quartel: Marcelo levanta estas lebres só para procurar protagonismo e, neste caso, desviar atenções da história das gémeas. A história da espécie é a história da conquista, da guerra, do roubo, da violação do genocídio. E Marcelo sabe-o bem Era bonito pedirmos desculpa aos marroquinos por os ter expulsado, ou pedirmos compensações aos franceses pelos roubos e desmandos das invasões napoleónicas. Até os nórdicos tinham que pagar pelos roubos e comércio de escravos dos vikings. É preciso que alguém diga isto, em voz alta, de modo a convencê-lo que não vamos na conversa dele. Já chega de patetices .                   Afonso Soares: Não sinto responsabilidade nenhuma. Sinto-me VITIMA por cerca de trinta meses em que estive na guerra colonial. O PR deve sentir culpa pelos anos em que o PAI dele esteve em Moçambique como Governador-Geral de 1968/70 e Ministro do Ultramar de 1973/74. Portanto o PR deve pagar porque foi um dos beneficiados. Vivemos tempos estranhos governados por gente estranha.               Francisco Almeida: Muito bom artigo. Vai sendo tempo de denunciar e lutar efectivamente contra os que objectivamente, atentam contra a nossa civilização ocidental, sejam eles intelectuais, arruaceiros ou presidentes da República.               Isabel Amorim: A história desta história só tem a ver com uma coisa: desviar a atenção do caso das gémeas, mais nada! Não tem a ver com caso nunhum profundo, simplesmente desviar as atenções.             Carlos Marques: A criatura com os disparates que disse só está a tentar desviar as atenções dos casos que envolvem a família. Investiguem a fundo o caso da santa casa.                João Floriano: Excelente crónica, cheia de sensatez. Este assunto é sobretudo uma questão de bom senso. Ainda não conseguimos perceber (eu pelo menos não consegui e agradeço que alguém que já tenha chegado a um entendimento, me informe) sobre as verdadeiras motivações de Marcelo Rebelo de Sousa que com as suas insistentes declarações veio provocar acentuado mal-estar e alarme social. A crónica motivou-me outra reflexão: se a sociedade portuguesa já tem uma larga componente de cidadãos com proveniência africana e brasileira, já aqui nascidos ou vivendo aqui há muitos anos, se tem igualmente um largo número de imigrantes vindos dos países a compensar, então essa multidão estará também a contribuir através dos seus rendimentos para o bolo da compensação. Penalizados no passado (de acordo com a teoria woke), sê-lo-ão agora no presente porque economicamente não se compreende como as compensações serão feitas se não forem em dinheiro. As autoridades dos países a compensar estão-se borrifando para estátuas de madeira de pénis alterados. querem mesmo dinheiro. Tenho sempre resistido a teorias da conspiração que existem paralelamente à evolução da NOM, que a mim me parece óbvia : impérios caem, outros lhe tomam o lugar. O que eu não compreendo é haver no mundo ocidental quem alimente a destruição do nosso modo de vida e faça o jogo dos nossos inimigos.                  antonyo antonyo: O que é curioso é que o Brasil, tão rápido agora a fazer prova de vida , só 50 anos após a independência é que aboliu a escravatura !       bento guerra: Um masoquismo de idiotas, mal resolvidos com a sua própria história                    Alexandra Azevedo: Excelente-comentário. Em-relação-ao-MRS-acho-que-lançou-este-assunto-para-tentar-esquecer-o-assunto-das-gémeas.               Joana Fernandes: Excelente, como sempre! JMA tal como Miguel Morgado são dos poucos pensadores políticos actuais que não seguem a torrente e se destacam pela clareza de conceitos e princípios tão importantes para colocar as discussões nos devidos limites. Onde é que isto nos leva? Não podemos ser juízes da história! Boa ou má, a história é o que foi e só nos resta estudá-la para não cometermos os mesmos erros e antecipar outros. Num mundo cada vez mais imprevisível, o “story telling” é essencial para se poder ter o máximo de imagens e ideias do que pode acontecer… se vamos agora censurar a história o que nos resta para olharmos o futuro??                    José Carvalho: "há 500, há 400, há 300, há 200 e há 100 anos?"

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