Que aprendeu com os clássicos e que foi vítima espantada
dos muitos desinteressados do saber:
«Verdade,
Amor, Razão, Merecimento,
Qualquer alma farão segura e forte;
Porém Fortuna, Caso, Tempo, e Sorte,
Têm do confuso mundo o regimento.
Efeitos mil revolve o pensamento,
E não sabe a que causa se reporte:
Mas sabe que o que é mais que vida e morte
Não se alcança de humano entendimento.
Doctos varões darão razões subidas;
Mas são as experiências mais provadas:
E por tanto é melhor ter muito visto.
Cousas há hi que passam sem ser cridas:
E cousas cridas há sem ser passadas.
Mas o melhor de tudo é crer em Cristo.
Pode a filosofia salvar o mundo?
É a lição que devemos a Heidegger: as
suas ideias filosóficas cativaram e continuam a cativar filósofos sem fim, mas
é a desumanidade que demonstrou para com
Husserl, seu mestre, que mais diz sobre si
PATRÍCIA FERNANDES
Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 20 mai. 2024, 00:18
Um modo habitual de contar a história da filosofia consiste em
descrever a sociedade ateniense do final do século V a.C. como corrompida pela
presença de sofistas, que desprezavam a ideia de Verdade e vendiam o seu
conhecimento para preparar os jovens para a política. Foi contra estes que Sócrates e Platão se
posicionaram, o primeiro demonstrando que os sofistas não sabiam aquilo que
diziam saber e o segundo opondo ao relativismo epistemológico as ideias puras
de verdadeiro, bom e belo.
Trata-se de uma estratégia narrativa
eficaz: usando
a lógica de oposição entre bons e maus, reserva-se um lugar especial para a
filosofia e para os filósofos, que seriam aqueles que repõem o amor pela
sabedoria, pela verdade, pelo conhecimento. O problema é que esta história tem
dois problemas.
O primeiro deles resulta de, ao remeter
o nascimento da filosofia para Sócrates e, sobretudo, para Platão – a propósito
de quem A. N. Whitehead disse que “a
caracterização geral mais segura da tradição filosófica europeia é a de que
consiste numa série de notas de rodapé a Platão” –, fazer esquecer o contributo dos
filósofos pré-socráticos, como Tales
e Anaximandro, mas em particular Heraclito e Parménides. Na verdade, a filosofia terá começado com eles e a
interrogação “porquê algo em vez de nada?”, que hoje remetemos para aquilo que
seria o domínio da física (só mais tarde a filosofia se tornariameta-física).
O segundo e maior problema é que aquela
narrativa tende a esconder um aspecto político fundamental: tanto
Sócrates como Platão eram profundamente críticos da democracia, e era esta que
justificava a existência de sofistas. Como a democracia ateniense consistia numa democracia directa, em
que os cidadãos participavam de diversas formas, em particular na assembleia, o
domínio da palavra e as capacidades de oratória tornavam-se fundamentais. E os
sofistas ensinavam a arte da política, nomeadamente o uso da palavra e a
capacidade de persuasão. Afinal, como Hannah Arendt chama a
atenção, “os atenienses
orgulhavam-se de, ao contrário dos bárbaros, conduzirem os seus assuntos
políticos sob a forma do discurso e não da compulsão”.
Assim, quando viramos aquela história da
filosofia ao contrário, encontramos os “maus” como os agentes
principais do regime democrático, enquanto os pais da filosofia surgem como
opositores à democracia. Platão era especialmente claro neste
posicionamento, construindo o seu argumento político a partir de um argumento
epistemológico: como só os filósofos saíam da caverna e acediam ao
mundo das ideias e conheciam a verdadeira realidade, apenas estes deveriam
governar a cidade. Pelo
contrário, a democracia é como um navio lançado ao mar que, em vez de conduzido
pelo capitão, avança sem rumo certo segundo as opiniões dos tripulantes
ignorantes. É daí que resulta o argumento do Rei-Filósofo – ou como Platão diz
na Carta VII:
“os males não cessarão para os
humanos antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao
poder ou antes que os chefes das cidades, por uma divina graça, se não ponham a
filosofar verdadeiramente.”
A filosofia de tradição platónica assenta, então, nesta presunção de
superioridade intelectual que lida mal com o regime democrático. Mas a
ideia repete-se no século dos filósofos e das Luzes, que gerou apoio a déspotas
iluminados e não a regimes democráticos. Os pais da democracia contemporânea
recusavam qualquer apreço pela ideia de participação política universal; e
mesmo John Stuart Mill, o mais simpático de todos os
filósofos, defendeu o voto plural e o sufrágio capacitário.
Não podemos fugir ao fundo da questão: encontramos muitas vezes na
filosofia uma predisposição para reivindicar um conhecimento superior ou, pelo
menos, um conhecimento mais bem formado, e que tende a fazer com que os
filósofos desconfiem do cidadão comum e do funcionamento da democracia. O
perigo é evidente: acreditar que seguramos as tochas da razão pode levar-nos à
sedução por receções animadas com tochas, como aconteceu com Heidegger.
Talvez a lição de Hegel nos possa
precaver contra estas tentações: quando, no prefácio
às Lições Fundamentais da Filosofia do Direito, cunhou a célebre imagem de
que a coruja de Minerva só levanta voo
ao entardecer, queria dizer que a filosofia chega sempre tarde para ensinar
como o mundo deve ser. A função do filósofo não será, assim, mais do que a de
pensar e compreender o mundo. Mas esta é uma atitude difícil para quem acredita
ter um acesso privilegiado à verdade e, nessa medida, às soluções que corrigem
os problemas do mundo. É esse impulso revolucionário que encontramos
em Jean-Jacques Rousseau e Karl Marx,
e que levou este último a cunhar a 11.ª tese de Feuerbach:
“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a
questão, porém, é transformá-lo.”
Ora, este espírito parece animar cada
vez mais a academia: uma crença quase pueril de que o intelectual tem uma
missão especial na comunidade – mesmo que isso signifique ir contra a opinião
maioritária (o que, curiosamente, acontece quase sempre). Afinal, como Platão
ensinou, as pessoas têm apenas doxa – já
os filósofos têm a Verdade. Mas não devemos esquecer as palavras de Arendt no texto que
escreveu a propósito dos 80 anos de Heidegger:
“Nós, que desejamos honrar os
pensadores, não podemos deixar de considerar surpreendente e talvez exasperante
o facto de Platão e Heidegger, quando entraram nos assuntos humanos, se terem
voltado para tiranos e Führers. Isto não deve ser imputado apenas às
circunstâncias dos tempos e ainda menos ao caráter anterior, mas antes àquilo
que os franceses chamam déformation
professionnelle. Pois a
atracção pelo tirânico pode ser demonstrada teoricamente em muitos dos grandes
pensadores (Kant é a grande excepção).”
Pode ser tocante ver como alguns intelectuais se sentem
impulsionados a sinalizar a virtude e avançar uma agenda que consideram ser
pelo bem comum, mas talvez devamos ser mais humildes e menos predispostos a
querer mudar o mundo de acordo com a nossa visão. Para
que a magia da filosofia não nos faça esquecer o que realmente importa. É a
lição que devemos a Heidegger: as suas ideias filosóficas, inegavelmente
estimulantes, cativaram e continuam a cativar filósofos sem fim – mas é a
desumanidade que demonstrou para com Husserl, seu mestre, que mais diz sobre
si.
Considerando os perigos, o melhor seria esquecer a ideia de que a
filosofia pode mudar o mundo. Provavelmente pode, provavelmente não da melhor
maneira. Mas isso não significa que não tenha algo a contribuir: pode
ajudar-nos a compreender o mundo que nos rodeia e, com esse voo tardio,
ajudar-nos a conversar melhor sobre o que queremos para o mundo ao amanhecer.
PS: Porque a democracia é um
tema inesgotável, a edição Braga Romana deste ano dedica-lhe
uma conferência Tempus Fugit
para explorar as suas raízes históricas e influências actuais no dia 22 de
maio, e na qual participarei.
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