Os sentimentos de frustração e de preocupação
pelo futuro pátrio que nos acodem quando atentamos no panorama noticiarístico de
alarvidades e vandalismos quase diários são, em parte, esbatidos, tal o prazer
que provocam, quando lemos textos como este de Patrícia
Fernandes que, sendo jovem ainda, merece ser distinguida como
voz salientando-se activamente por uma sensatez de opinião a merecer imediata
adesão. E gratidão. Oxalá contribua para o desvio tão necessário de tanta
lorpice que por aqui vai e que o seu texto bem revela, no confronto com o
passado, de hippies rebelando-se activamente contra estruturas sociais e não
pelo puro desrespeito mimalho dos jovens de hoje que os papás entendem proteger,
alcandorados no seu papel de críticos sapientes dos responsáveis docentes. Que
se façam ouvir, as vozes galardoadas como a desta docente Patrícia Fernandes.
A ocupação das universidades
Como pode a Universidade preservar a
sua história e missão quando a superproteção educativa gera mais e mais jovens
sem autonomia e incapazes de lidar com conflitos e tomar decisões sem os
“adultos”?
PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da
Universidade do Minho
OBSERVADOR,27 mai.
2024, 00:202
Tom
Hayden ocupa um lugar particular na história política
norte-americana. Foi eleito presidente da
Students for a Democratic Society (SDS), a maior organização activista de
estudantes universitários dos Estados Unidos, e redigiu o seu manifesto, o Port Huron Statement, em 1962. Coube a Hayden mobilizar os estudantes
para os protestos que tiveram lugar em Chicago no contexto da convenção do
Partido Democrata em 1968, acabando por ser envolvido no processo que deu
origem ao célebre julgamento Chicago Seven.
O
filme de 2020 sobre esse julgamento permite compreender como Hayden se tornou um político
de relevo, tendo sido membro do Senado e da Assembleia do Estado da Califórnia
pelo Partido Democrata: apesar de
convicções políticas radicais, procurava cumprir a lei sem pôr em causa as
instituições, numa atitude de moderação que contrastava com a excentricidade de Abbie Hoffman, um dos fundadores do Youth International Party, mais
conhecido como “Yippies”. Ainda
assim, manteve vivo o fogo do radicalismo que animou a sua juventude, como é
possível observar pelo brinde que fez no casamento do filho (da sua relação com
Jane Fonda), em que celebrou o facto de aquela relação inter-racial ser “mais
um passo no meu objectivo de longo prazo: o desaparecimento pacífico e não
violento da raça branca” (infelizmente para Hayden, que morreu em 2016, o casal
ainda não teve filhos).
No Manifesto de Port Huron, Hayden responde ao desafio de C.
Wright Mills e a sua “Letter to the New Left”, publicada em 1960, de que deveriam
ser as gerações mais novas a promover a revolução nos países ocidentais –
revolução que, por influência de Gramsci, seria agora cultural. E as
universidades surgiriam como locais privilegiados para essa revolução pelo que
estudantes e professores deveriam trabalhar em conjunto para levar a cabo o
assalto aos centros de poder.
Este espírito de protesto, marcadamente geracional, assumia-se
fundamentalmente como de contracultura: contra a guerra no Vietname, contra as desigualdades raciais, mas também contra o país que
herdavam dos seus pais e que consideravam imperialista, materialista e
autoritário. E encontramos a mesma inspiração na
Europa, com a ocupação das ruas e das universidades em Paris, os slogans irresistíveis
e o espírito de libertinagem que seria rapidamente integrado pelo modelo
capitalista quando aconteceu aos jovens manifestantes aquilo que acontece a
todos os jovens: envelheceram
e passaram a ver o mundo de outra forma.
Felizmente,
a vitória da New Left não se traduziu na consagração de roupas hippies,
relações poliamorosas ou consumo habitual de marijuana. Infelizmente,
aconteceu no interior das universidades, com a transformação dos currículos, a
introdução das teorias críticas e gerações de professores, com pouca
diversidade política, que estimulam nos alunos uma mentalidade de vitimização
identitária e de revolta contra “o sistema”. É isso que encontramos nos protestos que, nas últimas semanas,
marcaram as universidades norte-americanas e que acabaram por ser copiados na
Europa. Tendo chegado até nós, fizeram com que algumas universidades
portuguesas se vissem confrontadas com a dificuldade de saber como lidar com a
ocupação dos seus espaços ou, em casos mais extremos, com danos nos edifícios e
destruição de bens.
Os protestos nas universidades convocam
particularidades: há uma longa tradição de considerar que as
universidades são espaços com autonomia especial e que essa autonomia garante
uma aplicação distinta das regras que valem para o resto da sociedade,
nomeadamente quanto a protestos políticos. A crise académica de 1962 e a entrada das forças de segurança são
sempre recordadas como imagem dessa particularidade e símbolo de acontecimentos
que não queremos repetir. Mas, na
verdade, os tempos são hoje muito diferentes e as universidades já deixaram de
ser espaços de autonomia: não só muitas impedem os alunos de promover acções de
praxe dentro dos campi, como
também se aceitou com leveza que a polícia entrasse numa faculdade porque um
professor estaria a dar aulas sem máscara.
Ainda assim, a liberdade de os
estudantes se manifestarem não pode ser posta em causa, mesmo – ou
principalmente – quando não concordamos com os protestos (ou percebemos imediatamente a
sua fragilidade), pois só assim garantimos que o direito prevalece quando
concordamos. E, nessa medida, ocupar o
espaço exterior, ou mesmo espaços interiores comuns, parece legítimo. Mas nem
tudo pode ser validado: os estudantes devem ser responsabilizados em caso de
danos nos edifícios, invasão de espaços fechados e comportamento destrutivo, o
que justifica chamar as autoridades. O mesmo vale para actos de violência,
nomeadamente impedir a realização de aulas ou que professores e colegas se
movimentem no mesmo espaço.
Todos
estes aspetos têm, naturalmente, a sua relevância e têm sido, por isso,
debatidos no espaço público, mas representam discussões normais sobre como, num
contexto democrático, se deve lidar com manifestações, protestos e exigências
políticas – em particular, quando estão em confronto interesses legítimos
diferentes, como o de manifestação, por um lado, e a segurança, por outro. Mas
tudo isto parece constituir uma distracção daqueles que são os verdadeiros
problemas do ensino universitário entre nós.
É que, na verdade, a mais preocupante
das ocupações das universidades hoje não é a dos protestos políticos. O que nos
deve preocupar é a ocupação feita pelos pais dos alunos, que,
convencidos de que a universidade é a continuação do ensino secundário, os Directores
de Curso são Directores de Turma e os Presidentes das Faculdades são Directores
da Escola, procuram intervir
recorrentemente como “encarregados de educação”. Uma
instituição que se fundava na relação entre adultos é hoje regularmente ocupada
por pais que se esquecem de que os seus filhos são maiores de idade,
questionando notas e decisões e procurando solucionar os problemas dos
estudantes.
Como pode a Universidade
preservar a sua história e a sua missão quando a superproteção educativa gera
cada vez mais jovens sem autonomia e incapazes de lidar com conflitos e tomar
decisões sem ajuda de “adultos”? Mais uma vez, a culpa não é deles – mas
em vez de nos preocuparmos com o facto de a polícia não dever entrar nas
universidades, devíamos ser mais claros em afirmar que os pais não devem entrar nas universidades. E devem deixar os jovens tomar decisões e
cometer erros, estudar pouco e reprovar, ver-se envolvidos em conflitos e
resolvê-los, organizar protestos por vezes absurdos e ser responsabilizados por
isso. O mesmo é dizer, tornarem-se adultos.
COMENTÁRIOS:
José B Dias: Concordo com a análise e as conclusões ... efectivamente a geração
mais educada de sempre é também a mais infantil e ignorante de todos os tempos!
Nuno Alves: Gostei
Nenhum comentário:
Postar um comentário