Têm o seu efeito de pertinência e impertinência, como foi o “Maio de 68” também. Recordo o meu tempo
de estudante em Coimbra, em que na Associação Académica já se faziam debates políticos,
não sei se a ocultas, e eu ficava, julgo que ingenuamente, admirada, pensando
que essas reuniões de que ouvia falar, dariam pouco azo a um trabalho sério de
estudo para cada curso, como eu supunha que seria a função de cada estudante –
preparar-se, convenientemente, para o seu futuro profissional, cumprindo as
regras que os sacrifícios dos familiares – distantes, como os meus - afinal,
impunham como prioritárias aos estudantes com a consciência disso. Suponho que
ainda hoje é assim para muitos estudantes, apesar das greves das democracias libertárias…
Mas o caso em foco – Israel-Hamas
– tem outras implicações, naturalmente, que Mafalda
Pratas, cientista política, bem descreve.
As guerras dos campus
Estes protestos não são sobre o
conflito israelo-palestiniano, mas sobre política norte-americana e ocidental.
São a exportação para a política externa de tendências a que infelizmente temos
assistido
MAFALDA PRATAS Cientista política
OBSERVADOR, 03 mai 24
Nos últimos anos, os campus norte-americanos
têm sido palco de um debate aceso sobre os limites da liberdade de expressão. Há vários
meses, uma das crónicas que aqui escrevi
descrevia um caso, em tudo típico, passado
na escola de Direito da Universidade de Stanford, na Califórnia. Nesse
caso, como em inúmeros outros casos ocorridos nos últimos anos, tínhamos um
orador controverso, geralmente a proferir um discurso conotado com a ala
direita ou contra as causas identitárias ou progressistas, que era acusado de estar a espalhar e a utilizar um
“discurso de ódio”, discriminatório e, por isso, violento contra alguma minoria
ou grupo social. Em resposta, grupos de direita, com os seus próprios
objectivos políticos, reclamavam pelo direito à liberdade de expressão, que, em
sua opinião, deve ser inviolável. Grupos
de esquerda, muitas vezes apelidados de woke, retorquiam
que a liberdade de expressão deve ser
limitada em nome de outros valores, como a igualdade e justiça social ou a
segurança dos indivíduos (o “discurso de ódio” é, neste contexto, muitas vezes
retratado como pondo em causa a segurança de determinadas pessoas).
Desde 7 de Outubro de 2023, mas
principalmente nas últimas semanas, os papéis inverteram-se de forma curiosa.
Na sequência de protestos cada vez mais intensos e difusos em defesa da causa
palestiniana nos campus das universidades norte-americanas, e da posição da
administração de algumas universidades de reagir tentando dissipar os
protestantes ou mesmo chamando a polícia, vemos os mesmos grupos defendendo,
cada um, a posição contrária àquela que haviam defendido anteriormente. De um lado, os grupos mais ao centro e à
direita, que até há uns tempos defendiam que a liberdade de expressão estava
sob ataque nas universidades, defendem agora ser necessário acabar com os
protestos de esquerdistas radicais, em nome da segurança dos campus universitários
e das pessoas de identidade judaica. Do outro lado, aqueles que até há poucos meses queriam cancelar
discurso por ser radical (de direita) e constituir discurso de ódio (contra
algumas minorias), querem agora liberdade de expressão absoluta e não se
importam de cantar pelo fim do Estado de Israel ou de ignorar que do outro lado
da guerra está o Hamas, uma organização terrorista sem qualquer apreço pelos
direitos humanos. Os que queriam cancelar desejam agora não ser
cancelados. Os que se queixavam da cultura de cancelamento desejam agora
cancelar protestos desagradáveis e que consideram moralmente aberrantes. Onde
estão os defensores da liberdade de expressão? É difícil encontrá-los.
Os protestos na Universidade de
Columbia, em Nova Iorque, ao longo da última semana, têm sido particularmente
controversos e têm espoletado uma série de protestos semelhantes em outras
universidades. Como em várias universidades, grupos
de alunos (que são uma minoria dos estudantes, é sempre importante relembrar)
montaram acampamentos com tendas,
muitas vezes que permanecem nos relvados dos campus durante meses, onde se
grita pela justiça para os Palestinianos, pelo divestment de investimentos em
Israel, e se entoam cânticos pela existência de um Estado do rio Jordão até ao
mar. A grande maioria dos protestantes são pacíficos e não violentos e, por
muito que não gostemos das suas ideias, creio que têm o direito de protestar.
É evidentemente contra as regras de funcionamento de uma escola
montar acampamentos permanentes (com tendas, durante meses a fio) no meio dos
jardins das universidades, de forma não autorizada. No
entanto, desde que feitos de forma pacífica e não-violenta, creio ser muito
difícil do ponto de vista ético que quem quer defender a liberdade de expressão
queira também cancelá-los a ponto de chamar a polícia. Se os protestos
forem pacíficos e não-violentos e não constituírem ameaças à vida das outras
pessoas ou ao funcionamento geral das universidades, creio não ser razoável chamar a polícia, como fez a presidente da
Universidade de Columbia a semana passada. A partir do momento em que se parte para altercações físicas,
ocupação de edifícios da universidade, ou ameaças graves e concretas à
segurança de indivíduos ou grupos, passa a ser legítimo querer cancelar os
protestos. Foi isso que se passou esta semana em Columbia, com a ocupação de um edifício
da universidade, onde os grupos em protesto se barricaram e tiveram de ser
removidos pela polícia. A universidade cancelou aulas presenciais durante um
período, até as coisas se acalmarem. Os
protestos podem tornar-se um fardo politicamente
nocivo para Joe Biden, que é percepcionado pela extrema-esquerda como estando a
adoptar uma posição pró-ordem e contra os protestos, enquanto a
direita o tentar colar a esses mesmos protestos. Lembremo-nos que os protestos
universitários do ano 1968 e as divisões internas no Partido Democrata acabaram
por custar a Casa Branca ao partido (para Richard Nixon).
Há vários aspectos interessantes, em
tudo isto. Primeiro, a ocupação simbólica do Hamilton Hall, um edifício da
Universidade de Columbia, que foi ocupado durante os protestos de 1968 contra a
guerra do Vietname. Estes
são os maiores protestos nos campus universitários norte-americanos desde essa
época tumultuosa. Naturalmente, há uma tentativa de colagem
simbólica da causa palestiniana aos movimentos de contra-cultura e de direitos
civis dos anos 60 que, hoje, são percepcionadas por muitos como tendo vencido e
moldado a cultura norte-americana do último meio século. Este tipo de
protestos vai muito para além da causa palestiniana. Quem
predomina nos campos universitários ganha e perde o discurso cultural
doméstico. Cada lado tenta mostrar
o outro como extremista e, acima de tudo, persuadir a opinião pública de que a
ética está do seu lado. E, através de uma causa, tenta-se mover o eleitorado
para mais próximo da sua visão do mundo.
A batalha cultural separa-se da batalha no terreno. Mas, nessa separação, criam-se muitas
vezes caricaturas simplistas das posições e os batalhadores culturais acabam
por abraçar uma facção que, se postos no terreno, não gostariam nada de abraçar.
Como nos lembra o cronista Edward Luce, quantos
protestantes contra a guerra do Vietname abraçaram inadvertidamente o regime do
norte do Vietname e, principalmente, o maoismo e a sua revolução cultural,
também ele aberrante? É preciso abraçar uma aberração para lutar contra
outra? Estamos nós
reduzidos a escolher o lado menos mau? Em política internacional, e na guerra,
dá-se frequentemente o caso de ambos os lados estarem profundamente errados. E o exercício de identificar quem é
“menos mau” é muito mais complexo do que possam pensar.
Um segundo ponto
interessante, que aliás confirma que estes protestos estão, acima de tudo,
centrados em guerras culturais mais latas, prende-se com o facto de, segundo
vários jornalistas e responsáveis políticos e universitários, incluindo o mayor de Nova Iorque, grande
parte dos elementos mais radicais e violentos dos protestantes nestes
acampamentos não serem estudantes daquelas universidades. Os protestos, que se realizam num espaço
da Universidade mas aberto ao público em cidades enormes como Nova Iorque,
Atlanta, ou Los Angeles, são frequentemente infiltrados por indivíduos de fora,
muito mais radicais que os estudantes, que querem causar agitação e que usam os
protestos dos estudantes para gerar atenção mediática para as suas causas.
Terceiro, há a questão do discurso propriamente
dito. Em particular neste tema, há frequentemente debates sobre a utilização
da palavra genocídio e sobre o que constitui antissemitismo. Há quem
argumente que cânticos a reclamar por “um Estado [Palestiniano] do rio até
ao mar” é, de facto, uma proclamação pela aniquilação do Estado de Israel e de
todas as pessoas que lá vivem. Naturalmente, quem argumenta que só deve
existir um estado Palestiniano naquela zona tem de responder sobre como irá
garantir a sobrevivência de milhões de indivíduos judeus nesse futuro Estado,
já que muitas das elites palestinianas são extremistas religiosos que não
querem uma democracia com respeito pelos direitos humanos. É também questionável a agressividade e gravidade de algumas
acusações contra Israel quando comparadas com a indiferença perante atrocidades
muito maiores por outros regimes pelo mundo fora. Percebo, por isso, que alguns Israelitas e Judeus sintam algum
antissemitismo. Mas numa guerra de décadas entre Estados, quando um dos Estados
é um Estado judaico, qualquer crítica a esse Estado poderá sempre ser
denominada de antissemita. Creio que precisamos de ser rigorosos
e separar ataques ao povo judeu como um todo e às acções de um governo de um
país em guerra. Há também quem argumente que aquilo que Israel está a
fazer na Palestina, depois de uma guerra que já matou dezenas de milhares de
palestinianos, constitui um genocídio. O Tribunal Penal Internacional
considerou que, embora haja crimes de guerra, não há indícios de genocídio.
As acusações de genocídio, ou de
intenções de genocídio, de ambas as partes, são naturalmente mais um jogo
político para tentar ganhar a guerra da opinião pública. Como todos
sabem que a opinião pública considera o genocídio o pior de todos os crimes,
muitos tentam mobilizar o conceito para ganhar os corações e opiniões das
populações. Os cânticos e slogans – uma vez que felizmente não têm hipótese
concreta de vir a ser concretizados – podem ser cantados, por mais aberrantes
que sejam ou que discordemos deles. É esse o significado da liberdade de
expressão. Liberdade para discurso que alguém considerará ofensivo e violento,
mas que não se materializa em ameaça concreta a ninguém. Todos têm de
conseguir viver com isso e ganhar “thick skin”, sabendo que a luta
discursiva é diferente da guerra no terreno.
Todos estes protestos à volta
da causa palestiniana não são sobre a Palestina em concreto. A causa
palestiniana tornou-se, antes de mais, um símbolo cultural, instrumentalizado
para inúmeros fins e guerras políticas locais
e utilizado como “marcador” de pertença a determinados grupos. O mesmo se
passa com a causa israelita, em muitas situações, bem como de muitos dos grupos
e actores que se posicionam contra a causa palestiniana. No meio de
tudo isto, sem que realmente ninguém queira saber deles, está a heterogeneidade
e diversidade interna da sociedade israelita, as várias visões que também se
digladiam entre si para tomar o poder da sociedade palestiniana, e uma guerra
entre Estados demasiado complexa para ser resolvida por quem quer ler tudo de
forma binária e identitária. O discurso sobre o assunto foi tomado por
posições extremistas.
No
fundo, creio ser este o cerne da questão: estes protestos não são sobre o
conflito israelo-palestiniano, mas sim sobre política local norte-americana e
ocidental. São a exportação para a política externa – são uma projecção
geopolítica – das tendências a que infelizmente assistimos nos últimos anos: a
crescente radicalização do discurso e das acções em torno de uma concepção
identitária e grupal do ser humano e da política. A simplificação excessiva e
agressiva do discurso em amigos e inimigos, de forma absolutamente binária e
adolescente, não ajuda ao progresso de ninguém.
ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO
COMENTÁRIOS (DE 13)
Paulo Silva: Cara
Mafalda Pratas, há um desequilÍbrIo na comparação entre os dois campos de
batalha. De um lado, do lado mais conservador, estão por norma indivíduos ou
palestrantes isolados que não alinham no political correctness fomentado
pela esquerda radical, e que têm a coragem de remar contra a maré,
(recordo aqui o famoso Jordan B. Peterson), do outro, estão frequentemente grupos
com dezenas, centenas ou mesmo milhares de arregimentados… Ajuntamentos
grupais que, como é sabido nos states, (e não só),
facilmente descambam para a violência. By the way... É
preciso abraçar uma aberração para lutar contra outra?… Esta
pergunta bem podia ser colocada a muitos dos ditos resistentes anti-fascistas
que aqui abraçaram todas as aberrações marxistas-leninistas… (do estalinismo ao
maoismo) enquanto diziam lutar pela liberdade contra o Estado Novo. Seriam
ingénuos ignorantes?...
Tomaz Man: Talvez se os "estudantes" estudassem um pouco
mais deixariam de dizer tantas idiotices ignorantes. Mas, reconheço, isso dá
menos posts virais. E, sobretudo, torna mais difícil conseguir aquela sensação
(bem deturpada) de virtude que parece que alimenta tantos deles.
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