Se trate de um assunto importante para
elevar o potencial da virtude de muitos carentes.
Repitam comigo: o tráfico foi uma parceria
É moral e intelectualmente escabroso
querer atirar a responsabilidade do horrível tráfico transatlântico de escravos
apenas para as costas dos portugueses e de outros europeus ou americanos.
JOÃO PEDRO MARQUES
Historiador e romancista
OBSERVADOR, 22
mai. 2024, 00:162
Ao longo destes sete anos de debate
público exigido pela esquerda woke para promover a ideia de reparações
— o seu confessado objectivo político — os
portugueses ficaram a conhecer muita coisa sobre o tráfico transatlântico de
escravos. Tomaram consciência de alguns dos seus horrores; ficaram
sabedores da sua dimensão total (12,5 milhões de pessoas) e da parte
portuguesa nesse total (4,5 milhões de pessoas, e não 6 milhões como os
activistas e os distraídos querem fazer crer); souberam de onde partiam os
navios negreiros (apenas 4% de Lisboa, mas 37% de portos brasileiros, 31% de
cidades inglesas, etc.). Deram-se,
também, conta de que o tráfico transatlântico não foi o único nem sequer o
primeiro a transportar milhões de pessoas negras escravizadas a largas distâncias,
muitas vezes para fora do próprio continente. De facto, quando os navegadores portugueses passaram o Bojador e
chegaram às costas da Senegâmbia, já os traficantes de escravos muçulmanos
haviam comprado e transportado para o mundo árabe 5,7 milhões de pessoas negras.
Ficaram a saber, ainda, que foram os ocidentais que usando as suas
marinhas de guerra, as suas leis, a sua diplomacia e a sua pressão política
puseram fim a um odioso negócio que vinha, em várias modalidades, de tempos
imemoriais.
Sabemos tudo isso e muitas coisas mais,
mas há algo que apesar de dito e redito os activistas woke sistematicamente
esquecem. Ou melhor, nem é tanto o esquecer, é mais o recusar-se a tomar conhecimento do assunto, a aceitá-lo e a
integrá-lo na compreensão deste processo histórico especifico. A que me
refiro? Ao facto de o tráfico transatlântico de escravos ter sido,
quase desde o seu início, uma parceria luso-africana (e, depois,
euro-africana). Um horrível negócio que resultou do entrecruzar dos interesses
dos comerciantes e povoadores portugueses (e, depois, ingleses, holandeses,
brasileiros, etc.) com os interesses das chefias africanas.
Foi
já há mais de 30 anos que John Thornton
mostrou, num livro justamente célebre (Africa and Africans in the Making
of the Atlantic World, 1400-1680),
que mesmo que o quisessem, os portugueses e outros europeus não dispunham
geralmente de meios para forçar os africanos a participar num comércio à
revelia dos seus interesses. Mostrou, ainda, que os líderes negros não eram
irracionais nem comparsas menores num negócio dirigido pela Europa, e que a sua
participação no tráfico foi consciente e voluntária. Até porque aquilo que os
portugueses ofereciam — e os africanos adquiriam — eram, acima de tudo, bens de
prestígio e não produtos essenciais. Tudo o que foi feito, foi-o com o aval e a
colaboração de muitos africanos que lucravam — já veremos como — com o negócio.
Isto significa que para acabar
com o tráfico, no século XIX, foi necessário agir não só contra os traficantes
ocidentais, mas também contra os negreiros africanos e os potentados negros que
não queriam terminar aquele negócio. E foi necessário agir, por vezes, com
dureza e recurso às armas. Lagos, por exemplo, foi bombardeada, em 1851, e o
rei local, Kosoko, que queria prosseguir o tráfico transatlântico, foi deposto
e substituído por alguém que aceitava a política abolicionista britânica e
concordava em segui-la. Os
portugueses ocuparam o Ambriz, em 1855, para estancar o comércio negreiro que
os reis locais aí faziam (ou permitiam que se fizesse). A foz do Zaire, por onde fluíam muitos
navios negreiros, foi bloqueada. E há muitos outros exemplos análogos de
pressão sobre os africanos para que parassem o tráfico negreiro na fonte.
Ainda assim, havia reis africanos que
tudo faziam para prosseguir o negócio e que conseguiam escapar pelos buracos da
rede. O rei do rio Sherbro, na actual Serra Leoa, por exemplo, conseguiu mesmo
enviar um navio com negros para vender em Cuba, onde se pagava bem pela gente
escravizada.
Por
que razão os reis e chefes africanos — que os woke gostam de
imaginar que teriam sido ludibriados pelos europeus — se
agarravam tão tenazmente àquele negócio? Porque ele não era o que geralmente se
imagina e porque tinha para esses africanos vantagens que os woke ignoram
porque querem ignorá-las. Em finais de Abril, a jornalista brasileira Giuliana Miranda, com quem tive o prazer de
debater na SIC Notícias, dizia que os africanos só
tinham ganho “uns espelhinhos” com o tráfico negreiro. Muita gente pensa como
ela, mas está enganada. Era comum os manifestos de carga dos navios negreiros
registarem dezenas ou até mais de uma centena de artigos, alguns deles de luxo
e elevado estatuto, como candelabros ou vinhos finos. Esses artigos não tinham
valor monetário para os africanos, mas tinham enorme valor estratégico naquelas
regiões.
Por isso, aquilo que os europeus ofereciam em troca de escravos era
demasiado aliciante em termos das economias políticas africanas para poder ser
liminarmente recusado. Para um rei
africano, os produtos europeus (panos,
bebidas alcoólicas, etc.) eram
mais acessíveis e mais adequados do que os seus equivalentes africanos para
utilizar como presentes aos chefes de aldeia, que retribuiriam com esposas,
escravos, provisões e, sobretudo, obediência. Para além disso, os bens europeus
podiam chegar a crédito e à margem da rede de complicadas interrelações sociais
e de clientelismo africanas, o que significava que a sua aquisição não
implicava obrigações reconhecidas entre o comprador e o vendedor. Assim, e na medida em que o poder
político e o prestígio social dependiam do número de parentes e de dependentes
que cada um tinha ao seu dispor, não admira que as sociedades africanas tenham
acabado por aderir à venda de pessoas a troco de bens que lhes permitiam
adquirir ou dominar ainda mais pessoas, pois esse era o meio de pagamento em
muitas das suas transacções internas. Como Joseph C. Miller mostrou em Way of Death, o seu estudo magistral a respeito do
tráfico angolano, o que sucedia é que,
de um ponto de vista de economia política, os africanos tinham várias e boas
razões para vender aqueles que os ocidentais queriam comprar e faziam-no muitas
vezes por motivos semelhantes às estratégias desenvolvimentistas do empresário
moderno.
Alegam os woke, quando não podem escapar
a esta evidência, que os ocidentais ganharam mais do que os africanos, mas a
conta é impossível de fazer porque obrigaria a pensar simultaneamente duas
economias políticas de características incompatíveis para tentar encontrar, na
conversão de uma para a outra, o balanço de perdas e ganhos. O que importa não perder de vista é que
os lucros dos potentados e negociantes africanos eram a tal ponto grandes que
muitos deles não queriam abrir mão do negócio e tiveram de ser forçados a
fazê-lo.
Mas admitamos que os ocidentais ganharam mais. Nada disso é motivo de espanto. Nas
parcerias é comum um dos membros ganhar mais do que os outros que, por vezes
podem, até, vir a perder. E refiro-me a todo o tipo de parcerias. Toda
a gente sabe que a Geringonça foi uma parceria político-parlamentar entre PS,
BE e PCP, e toda a gente sabe que o PS ganhou eleitoralmente com o acordo, ao
passo que os outros perderam. Mas nem por
isso deixou de ser uma parceria voluntária, e esse é o ponto essencial a não
esquecer aqui: o
tráfico transatlântico foi, no geral, uma parceria voluntária.
Em desespero de causa, muitos wokes argumentam que mesmo que nessa
altura os reis e chefes africanos tivessem lucrado, viriam a perder mais
adiante, quando foram trucidados pelo colonialismo. Bem,
isto não é bem um argumento, mas sim uma descida ao ponto zero do raciocínio. É
o mesmo que alegar que não terá valido de nada aos romanos terem explorado as
riquezas do mundo antigo, terem lucrado e beneficiado com elas, porque acabaram
por ser vencidos e conquistados pelos visigodos e outros bárbaros germânicos.
Chama-se a isto terraplanar a história ao ponto da indigência mental. Os
acontecimentos de um determinado período não devem ser historicamente avaliados
e explicados à luz do que viria a acontecer 200 ou 300 anos depois. Os
historiadores esforçam-se por avaliar as coisas por aquilo que elas eram, em
cada época, e não por aquilo em que se tornaram ou a que terão dado azo séculos
depois. Em 1685 nem os negros nem os brancos envolvidos no
comércio negreiro sabiam ou poderiam saber que 200 anos depois haveria a
Conferência de Berlim, que o racismo se tornaria uma ideologia dominante, que a
medicina ocidental começava a perceber e a controlar as febres tropicais, e que
se estavam a inventar armas de repetição que iriam permitir penetrar em África
e conquistá-la. Não se avalia nem se explica a Alemanha de Hitler por aquilo
que ela agora é, nos tempos de Scholz.
É por tudo isto que aqui fica dito que é
moral e intelectualmente escabroso, para não lhe chamar coisas piores, querer
atirar a responsabilidade do horrível tráfico transatlântico de escravos apenas
para as costas dos portugueses e de outros europeus ou americanos. Foi uma
responsabilidade histórica mútua afro-ocidental e não o perceber — ou recusá-lo
— é coisa de fanáticos/as cegos/as e estanques ao conhecimento histórico.
TRÁFICO HUMANO CRIME SOCIEDADE
COMENTÁRIOS
Pertinaz; Na verdade os árabes já escravizavam africanos milhares de anos antes dos
europeus…!!! João Sá: Outra analogia para perceber o
enviesamento moral que estes "activistas" têm em relação à parceria
euro-africana na escravatura: hoje em dia em Portugal, comprar droga para
consumo pessoal não é crime enquanto vender o é. Como se explica?
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