Proposta pelo sr. Presidente da República
Marcelo Rebelo de Sousa - (a esfregar-se risonhamente servil pelos
representantes do governo cabo-verdiano, cujas ilhas, aquando da descoberta portuguesa,
eram desertas, embora fossem colonizadas ao longo dos séculos) - indemnização
extensiva às várias ex-colónias da escravatura - assisti hoje a um debate na
RTP sobre o assunto em foco, que mais uma vez me mostrou as vozes mais sérias
ou mais esganiçadas – estas da emoção raivosa contra os portugueses
escravizadores, aquelas mais equilibradas com pretensões de estudos feitos
sobre o tema - que nos coloca a todos em débito, embora o Sr. Presidente não puxasse
da carteira, em natural atitude exemplificadora da sua disponibilidade para o
primeiro passo indemnizatório.
Mas o escritor Francisco Pereira encara o assunto não como responsável
vitimizador, mas como vítima igualmente de um processo histórico - que, digam o
que disserem, enalteceu o povo que o iniciou - mostrando-se hoje desenraizado
de um espaço a que pertenceu, sem responsabilidade pessoal, e de que foi
retirado provavelmente sem indemnização, mas consciente de que deixava um país –
neste caso Moçambique – a que se entregara trabalhando para o seu
desenvolvimento, como tantos outros fizeram, e onde deixara tudo o que amara.
Pobre Presidente! Pobres tontos, os que
o apoiam!
… e a Mim Quando é que Mo Devolvem?
A vida pelas Áfricas não era pera
doce. "É aqui que é a terra do futuro, meus filhos", ouviu-o dizer ao
seu pai várias vezes.
FRANCISCO PEREIRA - Escritor
OBSERVADOR, 06
mai. 2024, 00:062
Ainda
hoje, já lá vão umas décadas valentes, ainda sente aquele estranho cheiro
amargo e seco no céu-da-boca. Lembra-se que foi um cheiro de repulsa, de
negação, de desespero, por assim, de um dia para o outro, sentir que, afinal, a
sua terra, não era sua terra e, a terra que nunca houvera sido sua, era agora a
terra dele. Era o terceiro filho da segunda geração de moçambicanos. Da
Metrópole, de que tanto ouvia falar, só era sua realidade quando apanhava pela
frente a esposa de algum oficial militar comissionista que, aborrecida com o
papel de ser dona de casa em terras de gente primária, achando-se com jeito
para a coisa, lá acabava por ser uma setôra qualquer os meses necessários para
se dar conta que aquilo de dar aulas não era para quem queria mas sim para quem
podia. Teve inúmeras setôras paraquedistas e a todas elas tratou com respeito.
Agora é diferente: é ele que está na Metrópole; é ele que é o estranho.
Lembra-se muito bem quando o seu pai, já ele nascido em Moçambique, foi à
Metrópole desfazer-se de alguns prédios rústicos que pertenciam aos falecidos
avós e de aquele pequeno pecúlio ter servido para os seus pais darem a volta
por cima que a vida pelas Áfricas não era pêra doce. É aqui que é a terra do
futuro, meus filhos, ouviu-o dizer ao seu pai várias vezes. Mas aquele
futuro trouxe uma guerra maldita e, de repente, esse mesmo futuro levou os seus
dois irmãos, desaparecidos, até hoje, nas matas daquela estranha guerrilha.
Ninguém o viu chorar, mas as suas entranhas são o esconderijo de cascatas
daquela dor indomável que teima em manter-se oculta. Conheceu Alva, a preta
mais bonita de sempre!, foi amor à primeira vista, e nunca mais se separaram. A
alegria regressou: um par de gémeos, cada um de seu sexo. Oh, felicidade! Mas
há alturas que o destino brinca com as mesmas pessoas. Uma incursão
guerrilheira fora de horas – talvez por mero desfastio – numa noite, corta
cerce a felicidade daquela família, trazendo a desgraça, levando a vida do
rapazinho. Catatónico, só dá conta que não está na sua terra quando sente
aquele estranho cheiro amargo e seco no céu da boca. Já lá vão umas décadas
valentes… Depois de ouvir o que ouviu, ouve-se um matraquear constante na sua
cabeça: … e a mim, quando é que mo devolvem?
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