quarta-feira, 8 de maio de 2024

A propósito da indemnização


Proposta pelo sr. Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa - (a esfregar-se risonhamente servil pelos representantes do governo cabo-verdiano, cujas ilhas, aquando da descoberta portuguesa, eram desertas, embora fossem colonizadas ao longo dos séculos) - indemnização extensiva às várias ex-colónias da escravatura - assisti hoje a um debate na RTP sobre o assunto em foco, que mais uma vez me mostrou as vozes mais sérias ou mais esganiçadas – estas da emoção raivosa contra os portugueses escravizadores, aquelas mais equilibradas com pretensões de estudos feitos sobre o tema - que nos coloca a todos em débito, embora o Sr. Presidente não puxasse da carteira, em natural atitude exemplificadora da sua disponibilidade para o primeiro passo indemnizatório.

Mas o escritor Francisco Pereira encara o assunto não como responsável vitimizador, mas como vítima igualmente de um processo histórico - que, digam o que disserem, enalteceu o povo que o iniciou - mostrando-se hoje desenraizado de um espaço a que pertenceu, sem responsabilidade pessoal, e de que foi retirado provavelmente sem indemnização, mas consciente de que deixava um país – neste caso Moçambique – a que se entregara trabalhando para o seu desenvolvimento, como tantos outros fizeram, e onde deixara tudo o que amara.

Pobre Presidente! Pobres tontos, os que o apoiam!

 

… e a Mim Quando é que Mo Devolvem?

A vida pelas Áfricas não era pera doce. "É aqui que é a terra do futuro, meus filhos", ouviu-o dizer ao seu pai várias vezes.

FRANCISCO PEREIRA - Escritor

OBSERVADOR, 06 mai. 2024, 00:062

Ainda hoje, já lá vão umas décadas valentes, ainda sente aquele estranho cheiro amargo e seco no céu-da-boca. Lembra-se que foi um cheiro de repulsa, de negação, de desespero, por assim, de um dia para o outro, sentir que, afinal, a sua terra, não era sua terra e, a terra que nunca houvera sido sua, era agora a terra dele. Era o terceiro filho da segunda geração de moçambicanos. Da Metrópole, de que tanto ouvia falar, só era sua realidade quando apanhava pela frente a esposa de algum oficial militar comissionista que, aborrecida com o papel de ser dona de casa em terras de gente primária, achando-se com jeito para a coisa, lá acabava por ser uma setôra qualquer os meses necessários para se dar conta que aquilo de dar aulas não era para quem queria mas sim para quem podia. Teve inúmeras setôras paraquedistas e a todas elas tratou com respeito. Agora é diferente: é ele que está na Metrópole; é ele que é o estranho. Lembra-se muito bem quando o seu pai, já ele nascido em Moçambique, foi à Metrópole desfazer-se de alguns prédios rústicos que pertenciam aos falecidos avós e de aquele pequeno pecúlio ter servido para os seus pais darem a volta por cima que a vida pelas Áfricas não era pêra doce. É aqui que é a terra do futuro, meus filhos, ouviu-o dizer ao seu pai várias vezes. Mas aquele futuro trouxe uma guerra maldita e, de repente, esse mesmo futuro levou os seus dois irmãos, desaparecidos, até hoje, nas matas daquela estranha guerrilha. Ninguém o viu chorar, mas as suas entranhas são o esconderijo de cascatas daquela dor indomável que teima em manter-se oculta. Conheceu Alva, a preta mais bonita de sempre!, foi amor à primeira vista, e nunca mais se separaram. A alegria regressou: um par de gémeos, cada um de seu sexo. Oh, felicidade! Mas há alturas que o destino brinca com as mesmas pessoas. Uma incursão guerrilheira fora de horas – talvez por mero desfastio – numa noite, corta cerce a felicidade daquela família, trazendo a desgraça, levando a vida do rapazinho. Catatónico, só dá conta que não está na sua terra quando sente aquele estranho cheiro amargo e seco no céu da boca. Já lá vão umas décadas valentes… Depois de ouvir o que ouviu, ouve-se um matraquear constante na sua cabeça: … e a mim, quando é que mo devolvem?

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