Em descritivo metafórico - trágico e
filosófico, de grande beleza poética, que agradecemos a PAULO RAMOS, no regozijo
pela descodificação lírica, enobrecedora das nossas vivências prosaicas…
Medeia, mochilas e a antinomia da solidão
A invisível mochila da nossa vida
passada – não importa quão curta ou longa ela seja – acompanha-nos na jornada.
Compete-nos escolher quão pesada será, porque a memória desconhece a lei da
gravidade.
PAULO RAMOS Investigador
no Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
e tradutor
OBSERVADOR, 25 mai. 2024, 00:157
Chama-se antinomia – do grego ἀντί (anti), “oposto”, e νόμος (nómos),
“lei” – ao paradoxo pelo qual duas afirmações que se contradizem podem ser
confirmadas como algo real em ambos os casos. É o que acontece com um par de
contraditórias emoções do ser humano, que podem – ou melhor, devem – ser ambas
vivenciadas simultaneamente. O princípio
kantiano da não contradição não se aplica aos nossos sentimentos.
Será «A» a razão das minhas lágrimas? Ou
«não A»? São ambas, pois é ao princípio da antinomia que obedecem as
inquietações que diariamente experimentamos, razão pela qual vivemos imersos num constante e vão combate com a vida
e connosco mesmos: procuramos a cada ocasião a lógica que regula os sentimentos
conflituantes que vivenciamos e, frustrados, experimentamos sempre a excepção.
“Não são de hoje, nem de ontem,
mas vigoram sempre, e ninguém sabe quando surgiram nem onde” diz Antígona sobre
a contradição das leis não escritas que regulam as nossas vidas na tragédia
homónima de Sófocles.
A razão emerge da irracionalidade.
Não há limite sem liberdade. Não há amor sem dor, nem júbilo sem tristeza. E
não há escolha que não arraste consigo uma palavra cortante e certeira: adeus.
Medeia nunca chorou tanto como quando se
preparava para abandonar para sempre a sua família, a sua casa, a sua terra. E,
simultaneamente, nunca foi tão feliz como quando se apaixonou por Jasão e
decidiu partir com aquele estranho rumo a um país também ele desconhecido.
Soluçava enquanto fugia do palácio onde
nascera e fora criada, enquanto acariciava o leito e as belas paredes da sua
infância com uma doçura que era já saudade. Diante dos seus últimos passos na
Cólquida, os ferrolhos das portas abriam-se para si. Corria descalça em direção
ao Argo pelas ruas da cidade que outrora a vira a brincar e que naquele momento
assistia silenciosamente às lágrimas que lhe humedeciam o rosto. Iguais eram em
intensidade a alegria e o desespero e “o coração batia-lhe como uma fúria pelo
medo” de sentimentos tão opostos e dolorosos.
Até Mene, a Lua, se regozijou, maliciosa e triste, ao contemplar do
alto a fuga de Medeia. Ela bem sabia o que sentia aquela menina, porque também
ela nada mais faz do que vagar inquieta pela abóbada celeste, perpetuamente
dividida entre a divina tarefa de iluminar o mundo durante a noite e o amor
terreno e humano por Endimião. É precisamente quando não consegue resistir
ao seu desejo que somos forçados a viver as nossas noites negras sem lua: Mene
cede à paixão e corre para se esconder no Monte Latmos, para reencontrar o
homem que ama. Gritou-lhe a Lua: «Corre, Medeia, e prepara-te para suportar
esta dor, por sábia que sejas, corre!»
A bordo do Argo, Medeia deixou-se
embalar pelas ondas nocturnas do mar e pelos braços fortes daquele que escolheu
para seu companheiro. Estava feliz por partir, mas desesperada por deixar a sua
terra natal. Estendia as mãos trémulas
em direcção à costa, à medida que esta ia ficando cada vez mais longe até se
fundir com o horizonte.
Escolher ser algo diferente
daquilo que somos, ser quem queremos, envolve sempre um abandono definitivo.
Chega um momento em que não temos escolha a não ser dizer adeus às pessoas que
amamos ou que já não amamos, aos nossos amigos, à nossa cidade, até àqueles que
sempre odiámos. No entanto, nunca mais ouvir ou ver alguém nas
nossas vidas é talvez a mais difícil das provações.
Podemos
dizer adeus a tudo o que aconteceu, mas nunca haverá uma separação real. As
pessoas com quem convivemos, as que amámos e odiámos, contribuíram para moldar
quem somos. Tornaram-se parte de nós. Melhor, elas são nós. As nossas
memórias estão tão intimamente ligadas entre si que as palavras que usamos, a
música que ouvimos, a pessoa que amamos, já não têm uma vida própria,
independente daquele em que nos tornámos. A partir do momento em que estamos
neste mundo deixamos um pouco de nós em todos os lugares e qualquer indivíduo
se torna parte de nós. Tudo o que nos acontece, portanto, é fecundo e
perigoso, quase sempre doloroso, jamais neutro. Se pudéssemos sair da nossa
história, mesmo que por um instante, talvez então a separação fosse possível,
real. Mas tal sortilégio não consentem
os deuses: podemo-nos alegrar e sofrer pelo exacto e mesmo amor, chorar e
sorrir pela exacta e mesma escolha, viver
o presente com saudade do passado – eis a nossa humana antinomia.
A invisível mochila da nossa vida
passada – não importa quão curta ou longa ela seja – acompanha-nos na jornada.
Compete-nos escolher quão pesada será, porque a memória desconhece a lei da gravidade. Poderá ser
ligeira como uma pena ou opressiva como um fardo, dependendo de como soubermos
viver a duplicidade do abandono, que é simultaneamente dor e libertação,
liberdade e saudade e, sobretudo, medo.
Jamais
poderemos existir sem carregar connosco a trouxa de quem fomos, de quem nos
criou, de quem amámos e, mais tarde, de quem perdemos ou escolhemos perder. O
preço seria não mais sermos viajantes que vão de um porto a outro nas nossas
vidas, mas andarilhos, banidos de nós mesmos, necessariamente esquecidos do
porto de onde partimos.
Matematicamente, só vale um, o oposto de
dois. Um, o número da exclusividade que todos desejamos. Um, o número da
solidão que tanto tememos – desabitados, abandonados, vazios, não importa se no
nosso quarto ou em companhia de outros, sempre separados de alguém ou de alguma
coisa.
É tão fácil a matemática – essa ciência
exacta, dizem-me – do nosso sentir! Tão desarmante a sua capacidade de contar
apenas até dois, dividir o nosso mundo entre singular e plural. E, contudo,
quão difícil é dar um nome às coisas da vida antes que petrifiquem e não
possamos mais movê-las.
Se esta noite virem uma menina a
percorrer – descalça, pés ligeiros e dentes ainda tortos – as ruas da sua
juventude rumo ao porto onde o Argo, enfunado pelo vento de feição, a aguarda,
perguntem-lhe o que é que Mene, no alto céu, lhe grita.
Talvez ela sorria.
COMENTÁRIOS (de 7)
Pobre Portugal: Fogo. Que maravilha!
João Floriano: Texto
lindíssimo. O Amor e a Felicidade enganam-nos porque somos levados a pensar que
será para sempre e que aquela embriaguez de nos sentirmos vivos vai ser
duradoura. Mas não é: tudo passa, tudo se transforma, tudo desaparece. E
perante esta roda da vida há os que continuam a acreditar e a apanhar quantos
Argos lhes aparecem pela frente e repetidamente voltar ao ciclo da embriaguez e
da ressaca e há por oposição os que se tornam cínicos, se protegem e entram em
qualquer Argo prontos para saltar fora ao primeiro sinal de borrasca. O peso da
mochila é perfeitamente subjectivo. Há os que claudicam com a mais pequena pedra,
há os que aguentam firmes as várias pedras que a vida lhes colocou na mochila.
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