A ter em conta: É sobre
os abortos na EU.
O aborto e os direitos
fundamentais da UE
Se a Carta dos Direitos Fundamentais
fosse uma espécie de cabide do internato, onde cada um pode ir pendurar o seu
direitozinho, nesse dia acabava a soberania nacional dos Estados. Não é boa
ideia.
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO Advogado
e cidadão
OBSERVADOR, 28
mai. 2024, 00:151
No quadro das eleições europeias que
se aproximavam, a esquerda decidiu armar uma campanha para exigir o direito ao
aborto no texto da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. É um
movimento coordenado da esquerda europeia, não só nacional, que teve como marco
de partida a votação nesse sentido de uma Resolução do Parlamento Europeu, em
Bruxelas, em 11 de Abril passado. É
assim que foi fixado este tema para a campanha eleitoral que decorre.
O
outro tema concertado à esquerda é a chamada permanente contra o avanço da
“extrema-direita”, amalgamando ID e ECR. Não creio serem linhas certas e
estarem a ter efeito no crescimento da esquerda – o que não é propriamente
questão que me preocupe. Mas são temas agitados em moldes claramente
populistas, na mira de também surfarem a onda populista que vai crescendo na
política de hoje. Vou deixar de lado a “extrema-direita”, muito favorecida pela
concentração de atenção e pelo protagonismo crescente que a esquerda provoca, e
focar-me unicamente no tema do aborto.
A abordagem é populista e genuinamente
um embuste: talvez um dos maiores logros a que, hoje, assistimos nos planos
político e jurídico. Por aquilo que se lê, o “direito ao aborto” é uma derivada
das reacções contra a reversão da célebre decisão Roe versus Wade (1973) pelo
Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América, em Junho de 2022. Esta
reversão não proibiu o aborto nos EUA, mas permitiu que os órgãos legislativos
de cada Estado legislem democraticamente como entendem. Isto causou alarme entre os que se opõem,
lançando a ideia de fixar nas Constituições a proibição de leis contrárias ao
aborto.
Nos EUA, não havia e não há essa proibição na Constituição, tudo se
passando no equilíbrio da separação de poderes entre a jurisprudência federal
do Supremo e os poderes legislativos dos Estados. Mas,
na Europa, o movimento quer bloquear o assunto, a nível constitucional. Foi o que aconteceu, há meses, em França,
aí, segundo o respectivo processo e em sede própria – um caso mais sério, que
tratarei noutra ocasião. E é o que aconteceu no Parlamento
Europeu e acontece, agora, na campanha eleitoral, sem a menor seriedade,
querendo levar eleitores ao engano. No plano das leis, para que correm, é algo
inteiramente inconsequente em si mesmo.
O raciocínio destes movimentos da
esquerda sugere a ideia de que a Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia se aplica, em geral, aos Estados-membros, subordinando inteiramente as
suas ordens jurídicas, estando acima das suas próprias Constituições e sendo,
assim, uma espécie de Constituição Suprema. Se não for assim, de que serve,
neste âmbito e com este propósito, uma norma inscrita na Carta? Juridicamente,
não serve para nada. Pois é!
É isso mesmo que acontece: não serve para nada.
A esquerda está farta de saber que é
assim. O que quer, neste delírio populista, é levar o povo, os cidadãos, os
eleitores ao engano. Ao engano, quanto à ameaça. E ao engano, quanto ao
remédio.
A
Carta dos Direitos Fundamentais, adoptada em Dezembro de 2000, não era mais do que um
compromisso político. Com o Tratado de Lisboa, em Dezembro de
2009, passou a ter força de lei, mas em âmbito limitado: aplica-se somente nos
contextos em que há conexão directa com a legislação da União Europeia. Ora, isto não tem nada a ver com as leis dos
Estados-membros que se aplicam ao aborto e que são da sua competência exclusiva.
A Carta é vinculativa para todas as
instituições, órgãos, organismos e agências da União Europeia. E aplica-se aos Estados-Membros da UE apenas quando
estes executam o Direito da União Europeia, não quando agem exclusivamente no
âmbito do seu próprio Direito nacional. Ou seja, este frenesim da esquerda é
inútil, cria fantasmas e promete fantasias. É, politicamente, o mais deplorável
que pode existir – sobretudo em eleições – e ao nível do mais rasteiro
extremismo sem escrúpulos.
A excitação com que a esquerda lançou esta linha na arena das
eleições europeias, invectivando quem não concorda, poderia levar a pensar que
colocar a sua ideia dentro da Carta dos Direitos Fundamentais seria empresa
facílima, na linha recta dos poderes dos deputados que vamos eleger. Leva as pessoas a pensar que seria algo tão
acessível como uma revisão constitucional. Nada disso!
Uma revisão constitucional é, de facto, acessível, mas realmente não
muito fácil. E uma revisão da Carta é processo ainda mais complexo, pois,
estando a Carta nos Tratados, segue procedimentos similares aos da revisão destes.
Primeiro, a revisão é iniciada por proposta de qualquer
Estado-Membro, do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia. Segundo, deve ser convocada uma Convenção, com representantes
do Parlamento Europeu, da Comissão Europeia e dos Estados-Membros (dos parlamentos
nacionais e dos Chefes de Estado ou de Governo), que recomenda um texto. Terceiro, o projecto de revisão recomendado pela
Convenção é apreciado pela Conferência Intergovernamental, que reúne
representantes dos governos dos Estados-Membros e que aprova, ou não, o texto
de revisão. Enfim, quarto, a
revisão tem de ser ratificada por todos os Estados-membros da União Europeia,
nos termos das suas Constituições, envolvendo aprovação pelos parlamentos
nacionais e, nalguns casos, referendos (na Irlanda, por exemplo, é obrigatório).
Alguém ouviu a esquerda, em Portugal
ou no resto da Europa, esclarecer detalhadamente este processo? E informar como
querem conduzi-lo? Não. Porquê? Porque a esquerda pretende enganar. A verdade
não serviria. A única coisa que interessa é criar uma ilusão.
Se
não fosse assim, isto é, se não fosse este processo rigoroso e se a ordem
constitucional dos Estados não prevalecesse na sua própria esfera, gerar-se-iam
vários perigos para a democracia e para os Estados-membros, todos eles.
Se
a Carta dos Direitos Fundamentais fosse uma espécie de cabide do internato,
onde cada um pode ir pendurar o seu direitozinho e as eleições europeias o
decidissem directamente, nesse dia, acabava a soberania nacional dos Estados e
nascia a soberania popular europeia..
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COMENTÁRIOS
J. D.L.: Conclusão deste excelente artigo: não são só as
políticas da esquerda que são um aborto, as suas práticas eleitorais também o
são. A esquerda é um verdadeiro aborto. E sendo a esquerda um aborto só deve
ser legal até às 12 semanas não é verdade?
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