Neste
rever literário de encantamento, por JAIME NOGUEIRA PINTO. Talvez que pudessem
aproveitar a Putin, fazendo-o repensar nos valores da vida, ele que, ao que
parece, está mais virado para as explosões mortíferas, da sua religiosidade pragmática…
Mais as explosões alheias, é certo, causadoras de gozos emocionais do foro
íntimo, naturalmente contidos, a deixar prever outros mais, em forjamento
contínuo. Talvez sem paralelo nas histórias dos escritores russos referidos por
JNP, de uma
filosofia mais universal, Putin sendo um espécime mais do calibre dos bichos da
selva, de instintos sem freio, tirante os sofismas das aparências, por vezes
necessárias, neste mundo já sem Cristo e sem resgate.
Quatro escritores russos, em
tempo de Páscoa
Mais que os filósofos e os teólogos, os grandes
escritores, os grandes ficcionistas russos interpretaram e contaram o mistério
de Cristo e da Paixão de Cristo.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 30
mar. 2024, 00:18
Em
A Ideia Russa, o historiador Nicolai Berdyaev defende que as figuras do
pensamento religioso russo e da busca
religiosa no século XIX não foram
filósofos, mas romancistas, como Dostoievski e Leo Tolstoi.
Para o autor de As raízes e o sentido do comunismo russo e de outras
obras fundamentais para o entendimento da Rússia e do comunismo, a
ficção de Dostoievski é comparável, em novidade e alcance, à obra de Nietzsche
ou de Kierkegaard, já que é, fundamentalmente, ao escritor de Crime e Castigo que se
deve toda uma “nova antropologia”,
que encara o homem como “uma
criatura contraditória, trágica, altamente infeliz; e não apenas sofredora, mas
amante do sofrimento”.
Condenado
pelo Grande Inquisidor de Dostoievski
Mas se o sofrimento e a redenção pelo sofrimento estão
presentes em toda a obra de Dostoievski, estão-no especialmente no “Grande
Inquisidor”, uma parábola contada por Ivan a Aliócha nos Irmãos Karamazov. Na parábola, Cristo, o Cristo evangélico, reaparece em
Sevilha, no século XVI; anda nas ruas, o povo reconhece-o, faz milagres, cura
doentes, ressuscita uma menina. Entretanto – estamos na Espanha da
época áurea da Inquisição – chega o Grande Inquisidor, manda prender Cristo
e interroga-o. O Grande Inquisidor
encara a liberdade do Homem, a que lhe permite pecar e perder-se, como um risco
desnecessário, e considera
Cristo um perigo para a humanidade,
porque entrega a Liberdade aos homens, incapazes de a usarem com discernimento. E assim
o Inquisidor volta a condenar Cristo. Para ele só pelos
caminhos do Mal, do Demónio, se pode chegar à unidade dos homens: é
preciso dar-lhes pão, satisfazer-lhes as necessidades básicas e, porque é “fraca, pecaminosa e ignóbil” a raça a
que pertencem, controlar-lhes a consciência e a livre expressão. Jesus cala-se perante o discurso do
Inquisidor. A história é ambígua; o Inquisidor parece um pessimista
antropológico, que enuncia as grandes forças que movem a Terra e os homens – que
não são a Liberdade, o livre arbítrio, a Verdade, a Justiça, o Amor, mas o
milagre, o mistério e a autoridade. Cristo não lhe
responde, permanece calado durante todo o interrogatório.
Tosltoi:
“Istina”, e não “Pravda”
Leo Tolstoi não vai tão
fundo como Dostoievski na ética cristã, mas é, para Nobokov, o maior dos escritores russos, um “pregador”
laico que influenciou com as suas histórias largos círculos da Intelligentsia e
da sociedade. Tolstoi lutava pelo aperfeiçoamento da escrita
e da ficção, mas era também um moralista com uma ética de Sermão da Montanha,
incutindo o complexo de culpa nas classes altas. Como insistia Nabokov, o autor de
Guerra e Paz mantinha, na sua alma e na sua pena, um diálogo ou um combate
entre a ética e a estética, entre o pregador e o artista, sempre à procura da
Verdade absoluta, da Istina, que não significa o mesmo que Pravda, que é
apenas a verdade relativa.
A Istina
é, para Nabokov, a verdade essencial, a verdade filosófica, a
Verdade com maiúscula. Pravda é a verdade correcta, a que não é mentira, uma
verdade de acordo com as regras, com o direito. Foi
também entre 1918 e 1991 o nome do órgão oficial do Comité
Central do Partido Comunista da União Soviética. Verdade mais que relativa, diríamos.
Bulgakov:
O Mal absoluto visita o mal relativo
Esta
procura da Verdade continuou a marcar os escritores russos que, no século XX,
presenciaram a passagem da autocracia czarista (limitada a partir de 1905) ao socialismo
totalitário, depois
da revolução bolchevique de 1917.
Um deles – e para mim um dos mais extraordinários, pela obra e pela vida – é Bulgakov.
Nascido
em Kiev em 1891, Mikhail Bulgakov, licenciou-se em medicina na Escola Médica de
Kiev, em 1916, e voluntariou-se como médico militar no Exército Branco, durante
a guerra civil. Depois da guerra, em vez de emigrar como muitos dos vencidos,
foi para Moscovo, onde iniciou uma carreira literária, publicando várias obras.
Mas é claro que, dado o seu passado e a sua crítica implícita ao regime, foi denunciado
e marginalizado pela Associação
Russa dos Escritores Proletários, que
tutelava, censurava e congelava escritos e escritores. Na desgraça
teve alguma sorte, não acabando numa cela da Lubianka ou num campo de trabalhos
forçados. A sorte foi que, o seu livro A Guarda Branca, teve uma versão teatral como Os Dias dos Turbin, exibida no
Teatro de Arte de Moscovo; Estaline gostou da peça e foi vê-la quinze
vezes. E quando Bulgakov, sem
trabalho, com os livros sem publicação, quis, em 1930, emigrar, o Czar Vermelho
telefonou-lhe e convenceu-o a ficar na Rússia, dizendo-lhe que longe da pátria
os escritores russos secavam, e arranjando-lhe um lugar modesto como consultor
do Teatro de Arte, de onde Bulgakov tinha sido afastado por Stanislavsky. Mas a
perseguição burocrática continuou e Bulgakov, que em 1932 se casou pela
terceira vez, com Elena Shilovskaya, não viu mais as suas obras publicadas.
Nestas obras não publicadas estava O Mestre e Margarida, que
começara a escrever em 1928.
É
um romance iniciático, fascinante, às vezes caótico, mas que além da história
da paixão do Mestre por Margarida, narra a visita a Moscovo, à Moscovo
comunista do pós-leninismo dos anos vinte, de Woland, uma personagem que
encarna o Mal, talvez o próprio Demónio.
Aqui não posso deixar de me lembrar do
professor Jorge Borges de Macedo, numa conversa sobre Bulgakov e O Mestre e
Margarida: “O Demónio, o Mal absoluto,
visita Moscovo comunista, o mal relativo. E os do mal relativo, os comunistas,
não acreditam no Mal absoluto… Woland mata alguns de forma mágica,
transcendente e comprometida, logo impossível para estes pequenos adeptos do
materialismo científico”, dizia ele.
Assim, no início do romance, Mikhail
Berlioz, um importante editor do regime, afirma categoricamente a verdade
comunista: “o
principal não é se Jesus era bom ou mau, mas que esse mesmo Jesus, como pessoa,
nunca existiu no mundo e todas as histórias sobre ele eram mera ficção […] os
cristãos criaram um Jesus, que, de facto, nunca existiu”.
Aí aparece o mágico, o professor
Woland, o próprio Satã, que vai dizendo, sussurrando, também categoricamente ao
editor comunista:
“Jesus
existiu… não são precisos muitos pontos de vista. Ele existiu, é tudo…”
Jesus Cristo entra no
romance, numa narrativa imaginada do seu julgamento por Pôncio Pilatos, a lembrar a visão do Jesus silencioso do Grande
Inquisidor de
Dostoievski. Mas o Jesus
de Bulgakov fala, responde. É um homem simples, bom, mas ingénuo. Um optimista
antropológico que acha que todos os homens são bons. Pilatos começa por
acusá-lo de querer instigar o povo a destruir o Templo, mas Jesus responde: “Nunca,
Hegemon…” E diz a Pilatos que o que disse era que o templo da velha fé cairia e
que um novo Templo da Verdade seria construído. O Jesus de O Mestre e Margarida é humilde, simples, aparentemente longe do
Filho de Deus, ou do que os homens imaginavam que podia ser o Filho de Deus.
Bulgakov afasta-se em muitos
pormenores da narrativa evangélica, embora haja um seguidor de Jesus, Mateus
Levi, que o acompanha e toma notas e que, num diálogo com Woland, parece
confirmar que ele é Ele ou que ele é também Deus. Bulgakov deixa de parte muita da narrativa evangélica para guardar o
essencial. No fim, por uma série de convergências, típicas da intencionalidade
caótica e consequente de Bulgakov, pode concluir-se que há um Deus; que Jesus
viveu e morreu e que em sentido espiritual ainda vive e está activo no mundo;
que não há pessoas essencialmente más e que todas as pessoas são boas; que os
homens chegarão, eventualmente, ao Reino da Verdade e da Justiça, onde não
haverá lugar para a autoridade opressora; e que apesar dos erros e pecados na
vida, é sempre possível esperar a Redenção.
E
neste romance exótico e admirável, a mensagem mais poderosa dada a partir de um
o retrato informal e original de Cristo, é o Jesus da Paixão e da Redenção, um
Jesus que acaba por perdoar e receber no seu Reino o Pôncio Pilatos que o
condenou por medo.
O livro
da vida de Pasternak
O último destes quatro escritores é
Boris Pasternak, prémio Nobel da Literatura em 1958. Pasternak nasceu em
Moscovo em 1890 numa família abastada de judeus russos, que se reclamavam
descendentes do judeu português Isaac Abarbanel. Quando da revolução
bolchevique na Rússia, melhor, quando da revolução democrática contra a
monarquia, causada pelos desastres da Guerra, Pasternak escreveu um poema, “A
revolução russa”, em que associava a revolução de Fevereiro de 1917 a um
triunfo dos ideais cristãos de igualdade e fraternidade: “E o socialismo de
Cristo soprou livre e fundo”.
Esta associação do cristianismo e do
cristianismo dos primeiros cristãos ao marxismo, fazendo de Cristo um herói do
Proletariado, tinha os seus pergaminhos em alguns autores comunistas, como Rosa
Luxemburgo e Karl Kautsky. Embora o materialismo dialéctico faça parte da
ortodoxia comunista, embora Marx seja claro quando nega a existência de um
“mundo invisível”, não apreensível pelos cinco sentidos, e Lenine insista na
ilusão criada pela religião, cúmplice dos poderes políticos estabelecidos,
embora a realização do “reino fraterno e igualitário do socialismo” na terra se
fizesse pela violência e pelo terror, havia uma aproximação evidente entre o
marxismo e cristianismo, até porque a fraternidade, mesmo desvirtuada,
pressupõe um Pai comum e a igualdade, mesmo imposta, é dificilmente
justificável sem a revelação cristã. E as interpretações de alguns textos
evangélicos, como o Sermão da Montanha, podiam der origem a alguma ambiguidade
entre a fraternidade igualitária do cristianismo e a fraternidade da utopia
marxista. Anatoli Lunatcharski, que em Outubro de 1917 foi nomeado pelo governo
bolchevique como responsável pelo Comissariado do Povo para a Educação, chamou
à revolução bolchevique a “nova páscoa revolucionária”. Talvez porque a maioria
dos russos, sobretudo das classes populares, era religiosa, fiel à Igreja
Ortodoxa.
De qualquer forma, o poema de
Pasternak, que começa, na primeira parte, com “o sopro livre e fundo do
socialismo de Cristo” na Revolução de Fevereiro, contrai-se abrupta e
violentamente em Outubro, na segunda parte, com a trágica e mortífera chegada
dos bolcheviques ao poder.
A Pasternak aconteceu o que aconteceu
a Bulgakov. Nos anos 30, tornou-se suspeito aos olhos do regime e foi
marginalizado; mas Estaline que, por alguma razão, gostava dos seus poemas,
decidiu poupá-lo, protegendo-o dos seus esbirros.
Quando, na destalinização, Pasternak
concluiu o Doutor Jivago, em 1956, o romance, por sair dos cânones
soviéticos, não foi publicado na URSS e acabou por ser publicado em Itália,
depois de uma intrincada odisseia. Ao tempo dizia-se que a CIA publicara
simultaneamente uma edição pirata em russo.
O livro, em parte autobiográfico,
está impregnado pelo cristianismo da velha Rússia e de todas as idades dos
Homens, sobrevivente e resistente na ditadura do materialismo científico.
A última parte do Doutor Jivago são
os poemas do protagonista, Yuri Jivago. E o último destes poemas, o final,
“quando é chegado o livro da vida à página mais sagrada que contém”, chama-se,
significativamente, “O Jardim de Getsémani”, ou, na tradução de David Mourão
Ferreira, “O Horto de Getsémani”: a agonia de Cristo que precede a prisão e o
calvário.
Ao contrário de Bulgakov, que usa
criativamente os Evangelhos, Pasternak é mais ortodoxo, sobretudo aqui, no fim,
na morte – na de Yuri Jivago, na sua, na nossa, na morte de Cristo. E é o
próprio Cristo que fala, em fim de livro, na hora de maior sofrimento, na hora
da Sua entrega ou da Sua “descida ao túmulo em tormento voluntário”, para se
erguer ao terceiro dia e nos resgatar.
Santa Páscoa da Ressurreição!
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