A luz do sol forma o dia e não falha. A luz
da noite é o luar - periclitante e ditando regras de sobriedade, nas caminhadas
e nos acessos. Obedecendo igualmente ao lema da liberdade, que acaba para cada
um se colide com a do outro, em fraternidade igualitária. O que justifica as imposições
das chefias, promovendo obstáculos, à luz dos preconceitos, nem sempre injustos.
A movida portuguesa
Espero, dado ser o que me sobra, que
Espanha resista ao avanço das sombras. Portugal, por exemplo e por desgraça,
não resistiu.
ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador
OBSERVADOR, 09
mar. 2024, 00:204
Passo boa parte do meu tempo no cantinho
superior direito do território nacional. Atravesso com frequência a fronteira,
que já só perdura nos mapas, para fazer compras, para jantar, para revisitar a
vida onde a vida ainda não foi aniquilada. Às vezes vou a San Vitero, uma
aldeia a quinze minutos de minha casa, com umas dúzias de habitantes e dois
restaurantes que frequento. Nunca consegui apurar o horário destes. Chego às
onze, fuso português, e sou sempre servido, por sinal com simpatia e molejas – e
há fregueses que chegam a seguir a mim e beneficiam de igual tratamento. Outras
vezes, no mínimo uma por mês, vou a Zamora. Faça frio ou calor, e em Zamora faz
bastante frio e bastante calor, a partir da tardinha as praças estão sempre
cheias de famílias e amigos e solitários a cirandar. Não são turistas: são os
indígenas que trocam o lar pelo ar livre, as lojas, as cervejarias e
“churrerias”, os bares que vendem tapas madrugada afora. Julgo que não vale a
pena descrever Salamanca e Madrid. Em Espanha, ou pelo menos na Castela que me
é familiar, subsiste qualquer coisa similar à alegria. Há quem não goste.
A ministra espanhola do Trabalho não
gosta. A senhora, que se chama Yolanda Diaz, quer obrigar os restaurantes, os
bares e o que calha a fecharem mais cedo. O “argumento” é o de que no resto da
Europa tudo fecha cedo, e a singularidade espanhola é, cito, “uma loucura”.
Loucura, parece-me, é aquilo de que padecem os que se acham no direito de impor
aos outros as alucinações que lhes povoam as cabecitas. Na última emissão do nosso “podcast”, o excelso A Lengalenga do
Costume, o meu amigo Tiago Dores dissertou com pertinência acerca dessa casta
de pervertidos, criaturas empenhadas em oprimir os semelhantes. Os
semelhantes, vírgula: não me considero da espécie de tais perturbados. Embora me ocorram imensos pensamentos
inconfessáveis, nunca me ocorre proibir o que as pessoas cometem por decisão
voluntária e inconsequente para terceiros. Os proprietários dos
estabelecimentos querem abrir até às tantas porque têm clientes que os querem
visitar até às tantas e encontram assalariados disponíveis a colaborar. Todos
livres, todos adultos, circunstâncias que a referida ministra naturalmente não
aprecia. Está no direito dela, que termina, ou deveria terminar, no exacto momento
em que começam os direitos dos demais.
Espero, dado ser o que me sobra, que Espanha
resista ao avanço das sombras. Portugal, por exemplo e por desgraça, não
resistiu. Não falo, em ambos os casos, de uns quarteirões nas principais
cidades em que jovens em afirmação e anciãos em negação se acotovelam para
beber uns copos. Falo, nas cidades grandes e nos lugarejos, do prolongamento
do quotidiano normal para depois do expediente, da possibilidade de
existir além do modo funcionário de que falava o poeta. Eu raramente bebo, como pouco, não sou
fanático por bares e abomino discotecas. Do que gosto é de poder usufruir das
trivialidades do meio-dia à meia-noite, das vozes lá fora ainda que eu esteja
em casa e, principalmente, da celebração da liberdade que essas miudezas
traduzem. Não sendo a felicidade, o destrambelhamento dos horários “decentes”
anda para mim muito perto.
Houve uma época em que Portugal foi
assim destrambelhado. Permitam-me o paroquialismo da alusão a Matosinhos, lugar
que carrega a honra de me ter visto nascer e crescer. Quando eu era criança e
adolescente, tornava-se difícil arranjar mesa em qualquer dos inúmeros cafés
locais, muitos dos quais paravam de
atender pelas duas da manhã. As marisqueiras praticavam loucuras
idênticas. Uma padaria em particular permitia que nos sentássemos no
interior antes do sol nascer, ao lado de pescadores e prostitutas, a tentar
engolir croissants a ferver. De Domingo a Domingo, após cada jantar e sem
regresso marcado, o povo saía à rua para a maior das revoluções: caminhar,
rir, discutir, conversar, enfim ser gente. Os meus avós, os meus pais, os avós
e os pais de todos nós engrossavam a multidão. Essa época morreu.
Nos últimos vinte ou trinta anos,
período em que Matosinhos deixou de ser uma vila simpática, industrial e linda
por troca com um dormitório horrendo, com ênfase em “horrendo” e em
“dormitório”, as coisas mudaram devagar e tragicamente. Agora, às nove da noite
é o deserto, agravado pelo sujeito que leva o cão à relva ou que corre sem que
o persigam. Os cafés
encerram às sete, o comércio às sete ou sete e meia. Os restaurantes, aliás
copiosos, vão até às nove ou dez, e não abusem. As próprias tendas de fast-food,
que na América chegam a funcionar sem parar inclusive em povoados que jantam às
18.30, aqui murcham cedo e limitam-se a atender automóveis. A horas
indecorosas, que continuo a testemunhar, o único sinal de que uma catástrofe
nuclear não varreu a humanidade são os transviados que se encostam aos guichés
das escassas bombas de gasolina “abertas”. O ideal é ninguém sair, que amanhã é
dia de trabalho. Como convém num dormitório, os cidadãos dormem, nem que
estejam acordados. Matosinhos é uma terra triste, e o pior é percebermos que
não está isolada na sua tristeza.
Portugal
é um país triste, atravessado pela mágoa de, durante um pedacinho breve, para
aí entre 1978 e 1994, se a memória não me trai, não o ter sido. É legítimo
culpar os shoppings, os sindicatos, a televisão, a Igreja, os
telemóveis, os governos, os conselhos médicos alusivos ao sono, os arquitectos,
os jogos de vídeo, o que se entender. É também inútil: os espanhóis possuem as mesmas maravilhas e, por enquanto, não
abdicaram de viver. Nós abdicámos, e resignámo-nos a um protocolo da
conformidade, interrompido por euforias de plástico para “partilhar” no
Instagram. Os portugueses não partilham nada, excepto a vocação para a derrota.
Desculpem o desabafo: é que hoje não posso escrever sobre política. Por
isso escrevi sobre política.
ESTILO DE
VIDA LIFESTYLE SOCIEDADE POLÍTICA
COMENTÁRIOS
Albino Ferreira: Excelente crónica. Retrato real de Matosinhos e não
só.
António S: A vida
segue, a saudade aumenta e a lembrança permanece! - Marianna Moreno -
Eduardo Cunha: excelente crónica. apesar de não ser desses lados,
Matosinhos , revejo me em tudo o que foi escrito. tenho 53 anos, deve ser por
isso.
Eduardo Martins: Dia
de reflexão ou a censura dos nossos dias?
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