De realismo descritivo e graça, o texto de ALBERTO
GONÇALVES.
A má vontade popular
Das duas uma: ou se proíbe os fachos
de votar ou se proíbe os fachos de concorrer. O que não podemos é continuar a
tolerar partidos e eleitores intolerantes. Contra a discriminação urge
discriminá-los
ALBERTO GONÇALVES Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 23 mar. 2024, 00:20
Primeiro insultaram os jovens,
mas não me importei porque não sou jovem. Não, agora a sério: primeiro insultaram
realmente os jovens. Foi uma inovação. Durante décadas, escorreu por aí um
discurso acerca da necessidade de envolver os jovens na política como se isso,
por si, constituísse uma virtude e um avanço civilizacional. Havia correntes de
opinião a reclamar a descida da idade de voto para os dezasseis anos. Havia
jornadas e acampamentos das juventudes partidárias. Com abundância de
paternalismo e impecável conversa mole, produziam-se chavões lindos que
combinavam numa frase os “jovens” e o “futuro”. Os jovens eram o futuro, do
país, da humanidade, do planeta e da Via Láctea. Os jovens eram a esperança. Os
jovens eram a “irreverência”. Eram.
Tudo
acabou a 10 de Março, quando se percebeu que a maioria dos jovens votou à
“direita”, e que uma parte significativa desses jovens
votou, Deus nos acuda, no Chega. Desde esse momento que a percepção deu uma
cambalhota: os jovens sonhadores e imaginários do passado afinal
são um motivo de preocupação. No serão
daquele Domingo, a “geração mais informada e esclarecida de sempre”
transformou-se num bando de calões, burros que nem portas, intolerantes que nem
postigos. A culpa é do TikTok. Dos videojogos. Da escola. Dos pais. De todos
nós, embora sobretudo de todos eles, esses imberbes e mimados fachos.
Depois insultaram os
ex-abstencionistas, uma segunda inovação. Passei a vida a ouvir relambórios
sobre os riscos do abstencionismo e a relevância de o combater. Até há uns
dias, votar era um dever cívico, e não faltava quem quisesse alterá-lo para uma
obrigação inscrita na lei. Em vez de uma preferência banal, o alheamento dos
cidadãos face aos actos eleitorais representava uma ameaça ao próprio regime,
quiçá um prenúncio do Apocalipse. Qualquer subida da abstenção causava pranto
público. Qualquer descida, ainda que ligeira, era festejada com orgulho
patriótico. Era.
A 10 de Março, a abstenção caiu a
pique e ninguém festejou. Mesmo que uma quantidade impressionante de gente
resolvesse ir às urnas, a verdade – e
a desgraça – é que o fez principalmente para votar à “direita” e com
generosidade, ai Jesus, no Chega. Num ápice, as hossanas à
“participação” evaporaram-se. E o “dever cívico” tornou-se uma chacota dos
sagrados valores democráticos. Em estúdios televisivos, comentadores pesarosos
afirmaram que, para cometerem semelhante vergonha, mais valia que os eleitores
não tivessem saído de casa. Os ex-abstencionistas, descobriu-se com pesar, são
fachos.
A seguir insultaram-se os emigrantes. Os emigrantes, que espalhavam pelo mundo
o melhor de Portugal. Os emigrantes, a nobre matéria da nossa diáspora. Os
emigrantes, que justificavam centenas de périplos oficiais de deputados,
ministros e presidentes, invariavelmente rendidos ao “calor humano” das
“comunidades” lusitanas. Os emigrantes eram a bravura que exportávamos, eram os
cérebros que fugiam, eram os justos descendentes de Cabral e Magalhães. Eram.
Deixaram de o ser a 10 de Março. Ou a 20, para ser exacto. Os emigrantes votaram, votaram mais do
que costumavam e, inacreditavelmente, votaram em largas doses na “direita” do,
cruz credo, Chega. As sombras anoiteceram a Metrópole, que ficou um
breu ao concluir que, para cúmulo, o intelectual Santos Silva fora varrido do parlamento por troca com
um antigo emigrante ilegal em França, onde vendia bacalhaus ou assentava tijolo
ou alguma coisa decerto menos prestigiante que a sociologia e a devoção a
Guterres, Sócrates, Costa e Lula da Silva. Nos “media”, as análises
especializadas não demoraram. Além dos
que receitam a cessação do direito de voto a semelhante corja,
defrontaram-se a tese de que os emigrantes são ingratos versus a tese de que os
emigrantes são traidores versus a tese de que os imigrantes são estúpidos
versus a tese de que os emigrantes no Brasil foram influenciados pelo sr.
Bolsonaro (?). Um ponto mostrou-se consensual: os emigrantes são fachos.
Enquanto se estende a merecida rajada de
ofensas aos algarvios e aos concelhos, freguesias, ruas e famílias do
território nacional que votaram substancialmente no, vade retro, Chega, convém
reflectir e mudar de rumo. Daqui em diante, das duas uma: ou se proíbe os fachos
de votar ou se proíbe os fachos de concorrer. O que não podemos é continuar a tolerar partidos e eleitores
intolerantes. Contra a discriminação, urge discriminá-los. Se “Abril”, entre
aspas e vénias, existiu para que o povo escolha em liberdade, o povo é livre de
escolher bem, ou seja, escolher as forças defensoras do pluralismo, ou seja a
esquerda. Se o povo escolhe mal, leia-se a direita
reaccionária habitual e – abrenúncio – o Chega, é sinal decisivo de que não se
está a cumprir “Abril”. E cumprir Março dá nisto. A vontade popular é
soberana, a má vontade não.
Nota: Alberto Gonçalves estará
de férias na próximas duas semanas. A crónica regressa no dia 13 de
Abril.
LEGISLATIVAS 2024 ELEIÇÕES LEGISLATIVAS POLÍTICA
PARTIDO CHEGA
COMENTÁRIOS (de 13)
Klaus muller: A entrevista do Santos Silva a
uma TV depois da contagem dos votos dos emigrantes, apesar de ter tido muitos
elogios de comentadores assalariados do PS, na realidade não foi uma mais valia
para a imagem que nos quis deixar. E estou a ser consideravelmente moderado. As suas afirmações sobre a sua imparcialidade
como Presidente da Assembleia foram descontroladamente pouco verdadeiras.
Alcides Longras: Quando é que a moralidade foi
permissiva e passivamente sequestrada pelos ideólogos de esquerda? Porque é que
lhes dão o direito exclusivo de julgar o que é ou não "democrático"?
Porque é que se assiste indiferente a um discurso sistematicamente discriminatório
de quem se arroga a "luta contra a discriminação"? Porque não se
denuncia toda essa hipocrisia alto e bom som?
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