Que o mundo permitiu, banalizado o mal,
ou não suficientemente julgado. Talvez se eu lesse o livro de Hannah Arendt também a condenaria, e repito a sua
frase, citada no magnífico estudo de JNP: “Seria reconfortante acreditar que Eichmann
era um monstro”, escrevia Arendt, mas, a verdade é que ele, e outros como ele,
eram “terrivelmente normais”. O totalitarismo burocratizava e banalizava
o mal, anestesiava as consciências, suspendia o julgamento moral, ético,
pessoal, manipulava palavras e conceitos, instituindo como bem supremo a
obediência ao chefe ou ao partido, detentores e administradores do ideal.» Porque, a obrigação dos homens, mesmo subordinados a
um regime condenável, é condenar esse regime e o monstro que o promoveu, bem à
vista de toda a gente que escutava Hitler nos seus arranques ferozes, como os que
escutam hoje os dizeres de Putin, na sua malícia sofisticada de raquítico sem
alma e nem sequer coragem, que não se importa de sacrificar até mesmo os seus,
numa insensibilidade monstruosa. Não, o Mal não se desculpa assim, a pretexto da sua banalização. Julgo
que, se os Homens criaram a Justiça, foi porque também existe o Bem, bem mais equilibrado no seu estatuto
de virtude, o Mal sendo um
desvio a ser punido – severamente, quando ele se revela atroz. Não, Hannah
Arendt, que foi vítima de um desses “normais”, não podia
desculpabilizá-lo assim, permitindo a proliferação desses, como Putin, que
provavelmente leu o seu livro. Julgo que JNP também a condena, mau grado a suavidade
do seu descritivo.
A “banalidade do mal”
Da actualidade e utilidade do espírito crítico, livre e de
“desobediência devida” de Hannah Arendt.
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 09
mar. 2024, 00:176
A Literary Review de Fevereiro
de 2024 confirma a actualidade de Hannah Arendt, dando
notícia de mais um livro sobre a pensadora política: We Are Free To Change The World: Hannah Arendt’s Lessons in Love and
Disobedience, de Lindsey Stonebridge, professora de Literatura, Humanidades e
Direitos Humanos na Universidade de Londres. A recensão de Stuart
Jeffries, intitulada “Anatomist of Evil”, diz que Stonebridge acrescenta
novidade à já longa história de Arendt e da “banalidade do Mal”.
A banalidade do Mal
Banal
e banalidade não são coisas que se associem ao Mal – ao Mal absoluto, ao Mal
com maiúscula, obra do Príncipe das Trevas, do Inimigo de Deus e do Homem – ou
mesmo ao mal político. Os monstros que, no século XX, orquestraram
ou executaram as grandes hecatombes do comunismo e do hitlerismo, por exemplo,
nada teriam de banal.
Por isso, quando Eichmann em
Jerusalém – A banalidade do
mal saiu em 1963, o choque perante a proposição de Hannah Arendt
sobre um dos principais executores da “solução final” hitleriana foi geral.
Tanto para os que, com Rousseau e outros optimistas, consideravam o Homem um
ser “naturalmente bom”, como até para
os tributários do pessimismo antropológico que, com a Bíblia, Maquiavel,
Hobbes, De Maistre, consideravam o mal uma coisa inerente ao Homem:
“Seria reconfortante acreditar que Eichmann era um monstro”,
escrevia Arendt, mas, a verdade é que ele, e outros como ele, eram
“terrivelmente normais”. O totalitarismo burocratizava e
banalizava o mal, anestesiava as consciências, suspendia o julgamento moral,
ético, pessoal, manipulava palavras e conceitos, instituindo como bem supremo a
obediência ao chefe ou ao partido, detentores e administradores do ideal.
Em Eichmann em
Jerusalém, Hannah Arendt fazia o
relato ensaístico do julgamento de um dos carrascos do “povo escolhido”, que
começara em Abril de 1961 na capital histórica de Israel.
Tal como outros altos funcionários do
regime nazi, Eichmann tinha escapado para a Argentina peronista, onde encontrara
acolhimento, e onde um comando israelita o descobrira e o raptara em Maio de
1960. Israel usava o julgamento para lembrar ao mundo a perseguição que tinham
sofrido os judeus europeus nos países ocupados pela Alemanha nazi.
Hannah (Johannah) Arendt era uma
judia alemã, nascida em Linden, em 14 de Outubro de 1906. Tinha vivido em
Königsberg (hoje Kaliningrado, na Rússia), estudado em Berlim e em Marburgo e
feito o doutoramento em Heidelberg, em 1929, com uma tese sobre o conceito de
Amor em Santo Agostinho, Der Liebesbegriff bei Augustin: Versuch einer
philosophischen Interpretation, orientada por Karl Jaspers. Em Marburgo
fora aluna e amante de Martin Heidegger.
Em
1933, com a subida de Hitler ao poder e depois de uma breve detenção pela
Gestapo, Hannah saíra da Alemanha, passara pela Checoslováquia e pela Suíça e
fixara-se em Paris. A seguir à invasão e ocupação da França, no Verão de 1940,
partira para os Estados Unidos via Portugal, o Portugal neutral de Salazar.
Viveu em Lisboa, com o segundo marido, Heinrich Blücher, entre Janeiro e Maio
de 1941, na Rua da Sociedade Farmacêutica, nº 6.
Arendt
rejeitaria expressamente o atributo de “filósofa” a propósito do seu
livro The Human Condition (1958). Em 1951 escrevera um clássico
sobre as Origens do totalitarismo, mas seria o seu polémico
ensaio-reportagem sobre o julgamento de Eichmann para a New
Yorker, publicado em livro em 1963, que lhe trariam a fama.
Lera e reflectira longamente sobre a Filosofia e a filosofia
política ocidental: de Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Maquiavel, Hobbes
e Kant até aos modernos pensadores políticos Marx, Trotsky e Mussolini. Além de
Heidegger e Jaspers, tivera como mestres um leque diversificado de pensadores,
do teólogo católico Romano Guardini ao luterano Paul Tillich. De Heidegger,
ficara-lhe o bom e mau da relação pessoal e as afinidades de um pensamento
errante, interrogante, insatisfeito, crítico.
Sabia o que era o Mal, sofrera na pele o
mal político e estudara nas Origens do totalitarismo o comunismo e o
nazismo. Mas quando apareceu Eichmann in Jerusalem: A Report on the
Banality of Evil foi
duramente atacada por Jacob Robinson na revista Facts. Robinson era um dos
assistentes de Gideon Hausner, o acusador público do processo Eichmann, e
chamou a Arendt “inimiga do povo judeu”. A partir daí, ficaria sob suspeita.
Segundo Robinson, ao “banalizar” o mal do burocrata do Extermínio, que se
justificava com o “cumprimento de ordens” e a “obediência devida”, Arendt
estava a desculpar, a explicar, a atenuar, a barbaridade do Holocausto.
Eichmann fora interrogado
preliminarmente e sujeito a um processo público integralmente filmado. O que
perturbava era que, tal como Arendt, o primeiro interrogador de Eichmann, Avner
Less, também vira nele, não o monstro que esperava, mas um “homem comum”, um
alemão nascido em 1906, inscrito no NSDAP em 1932, funcionário de carreira,
nomeado responsável do RSHA (Reichssicherheitshauptamt – Serviço Central
de Segurança do Reich) e “encarregado dos assuntos judaicos e das evacuações”.
Os totalitarismos
A partir da famosa conferência de
Wannsee, a da “solução final”, o burocrata Eichmann ficaria responsável pela
logística das “evacuações”, isto é, das deportações em massa. Só podia ser um monstro. Monstros como os que adivinhávamos entre
alguns chefes católicos e protestantes nas guerras religiosas, entre os
jacobinos e nas polícias políticas da Reacção, entre os revolucionários do
século XIX, entre bolcheviques e anti-bolcheviques na guerra-civil russa, e
aqui ao lado, em Espanha, também na guerra-civil. E, evidentemente, entre nazis e comunistas, na Gestapo e nas
Tcheckas. Porém, Hannah Arendt, por mais que
quisesse e por mais reconfortante que tal pudesse ser, não conseguira descobrir em Eichmann nada de
“diabólico” ou de “demoníaco”. Antes vira no logístico da “Solução Final”
a “banalidade do mal”.
A engrenagem totalitária criava nos
seus executivos e operacionais sentimentos de obediência devida que apagavam qualquer
outro juízo de valor, religioso ou moral. Hans Frank, o jurista do Reich,
ilustrava-o bem quando aconselhava: “Agi sempre de tal modo que, se
o Führer soubesse das vossas acções, as aprovaria”. Arendt
explicá-lo-ia melhor nas Origens do
totalitarismo: os novos totalitarismos criavam – no hitlerismo como no
comunismo soviético – um “princípio de
obediência total às ordens do chefe, do Partido, da ideologia”.
A origem do totalitarismo, de Arendt, divide-se em três ensaios –Antissemitismo, Imperialismo e Totalitarismo. Arendt inclui o hitlerismo alemão e o
comunismo ou o estalinismo soviético nos regimes totalitários, mas
não o fascismo mussoliniano. Para a
autora de On Revolution, apesar de Mussolini falar em “Estado
Totalitário”, o fascismo não fora um verdadeiro totalitarismo, já que a
negociação com os poderes estabelecidos – a Monarquia, o Exército, a Burguesia
Industrial e, sobretudo, a Igreja Católica – o teria aproximado mais dos
autoritarismos nacionais português e espanhol de Salazar e de Franco. “O que prova que a ditadura fascista é,
por natureza, não totalitária, é que as condenações políticas do regime foram
poucas e leves”, escreve.
Ora o verdadeiro totalitarismo
assentava na redução das classes sociais a massas fanatizadas, na destruição sistémica
de toda e qualquer lealdade concorrencial, de todo o vestígio de independência
perante o chefe e o Partido. Num regime totalitário, o Terror não era um simples
meio, mas um pilar do sistema. E o verdadeiro totalitarismo produzia
executivos e executores como Eichmann, que, perdido todo o sentido moral,
usavam o imperativo do dever kantiano para se defenderem.
A nossa banalidade
Ao fim de uma já longa vida posso dizer que vi muita gente boa ao
serviço de causas más e muita gente má ao serviço de causas boas. Talvez
porque, na minha vida, nas nossas vidas, não sofremos o verdadeiro
totalitarismo, o que elimina a noção de Bem e de Mal, transformando tudo em
“obediência devida”. Somos, como sempre repetia Jorge Borges de Macedo, “uma
nação muito antiga”, sem as vertigens do grande poder; uma nação onde o
cristianismo e a sociedade civil quase sempre temperaram os eventuais excessos
do Estado.
Porém, todos sabemos o que são
laivos e indícios de totalitarismo, todos sabemos o que é, o que pode hoje ser,
a banalidade do Mal, o entorpecimento do pensamento e a comodidade da
“obediência devida” a ideologias que se querem dominantes e únicas; a cedência
resignada à mediocridade, à simplificação, à perversão dos valores, ao
maniqueísmo, aos eufemismos que encobrem e justificam mortes, ao pensamento
correcto.
Arendt tinha aquilo a que Kant
chamava uma “mente larga”, uma cabeça que, além de brilhante, era abrangente.
E o espírito crítico, livre e de “desobediência devida” da pensadora
política de Men in Dark Times revela-se hoje particularmente útil e
necessário. Até para que, nos tempos cinzentos da nossa latitude e na
mediocridade insinuante de algumas aparências de bem, possamos pressentir e
prevenir alguns caminhos subtis para a banalização do Mal.
A SEXTA COLUNA HISTÓRIA CULTURA
Cisca Impllit: Gostei de ler Carlos Grosso: Em todos os tempos haverá homens muitíssimo interessantes, inteligentes, incansáveis e disponíveis para partilhar com os outros a sua arte de observar e estudar o mundo e os homens. Eu aprecio muito a circunstância de viver numa época em que posso aceder à partilha de sabedoria que JNP nos oferece. Obrigado. Paulo J Silva: Como sempre um excelente artigo! A consciência de que o Mal existe, e está sempre a procurar aumentar a sua acção, é algo que os que promovem os totalitarismos procuram encobrir. O anestesiar das consciências com o politicamente correcto é uma das formas. Espero que continue vivo o espírito de nação antiga nestes tempos em que é preciso combater uma maligna banalidade que se vai instalando. Manuel Matos: Obrigado! Rui Lima: JNP è um trabalhador incansável , esta semana num jornal de papel li um outro seu artigo onde analisa o último livro de Emmanuel Todd « A derrota do Ocidente « pena que em Portugal nem o livro nem as muitas entrevistas deste autor tenham a mínima ressonância , só o JNP para o fazer, talvez seu 3° factor da derrota do Ocidente seja a razão para o calarem. Emmanuel Todd:: « A nossa modernidade cultural parece, de facto, bastante insana para o mundo exterior, uma observação feita por um antropólogo, não por um retro moralista. « Mas a fixação das classes médias ocidentais nesta questão ultraminoritária levanta uma questão sociológica e histórica. Estabelecer como horizonte social a ideia de que um homem pode realmente tornar-se mulher e uma mulher um homem é afirmar algo que é biologicamente impossível, é negar a realidade do mundo, é afirmar o falso. «No artigo de hoje para ler e reflectir e para as águas entre regimes de terror comunismo e nazismo, regimes sem liberdade que como acontecia em Portugal e Espanha e os actuais partidos populistas que nada tem a ver com uma e outra situação antes o aproveitamento do medo de muitos com a perda da sua identidade e do seu modo de vida. Cisca Impllit > Rui Lima: Aguçou-me a vontade de ir ler esse pedaço de papel de jor
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