segunda-feira, 4 de março de 2024

Mesmo que não mudem

 

Servem para reagirmos e aclararmos, por vezes, as nossas mentes, ou reagirmos de acordo com o nosso posicionamento nas questões. Uma boa lição, esta de Patrícia Fernandes, que nos torna mais reflectidos, apesar das ironias dos comentadores desdenhosos.

Os debates mudam alguma coisa?

Como os debates consistem no confronto entre duas forças opostas, deles não resulta a vitória do melhor argumento mas sim oferecer aos membros do grupo uma maior clareza sobre os interesses em causa.

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 04 mar. 2024, 00:18

Como em quase tudo na vida, a resposta a esta pergunta depende dos princípios filosóficos e metapolíticos que subscrevemos. Pensemos, a título de exemplo, no modo como nos posicionamos na tradicional divisão entre esquerda e direita, e que depende, em grande medida, da nossa visão antropológica – nomeadamente, de termos um viés mais optimista ou mais pessimista quanto à natureza humana. Trata-se de uma tese que é regularmente revisitada por Jaime Nogueira Pinto: uma visão antropológica mais hobbesiana (pessimista) tende a colocar-nos à direita, valorizando mais a ordem; uma visão mais rousseauniana (optimista) tende a colocar-nos à esquerda, valorizando mais a autonomia. Não se trata de um argumento final, e por isso falamos em tendências ou inclinações e não em relações de causalidade, mas é um indicador bastante útil.

Da mesma forma, podemos usar uma lógica de tendência para nos posicionarmos quanto à relevância ou eficácia dos debates políticos: que papel desempenham no processo de decisão?

1Hobbits, hooligans e vulcanos

Comecemos com Jason Brennan, que nos confronta, à semelhança de Platão, com um argumento epistemológico contra a democracia. A resposta à nossa pergunta dependerá do tipo de pessoa que somos, pois Brennan divide a população dos países democráticos em três grupos: hobbits, hooligans e vulcanos.

Os hobbits são politicamente apáticos e ignorantes, não têm interesse em política e são regularmente abstencionistas. Em princípio, não assistirão ou mostrarão interesse por debates; mas, caso o façam, compreenderão pouco dos factos e temas que serão discutidos. Nessa medida, poderão ser influenciados por factores não-ideológicos – como a imagem, o estilo combativo, o facto de se ser visto como vencedor –, mas não pela troca de argumentos.

os hooligans interessam-se muito por política e estão geralmente envolvidos em actividades partidárias ou activistas. O problema é que se relacionam com a política como os adeptos fervorosos de futebol se relacionam com os seus clubes: consomem informação de forma tendenciosa e defendem sempre a sua equipa, independentemente dos factos. Nos debates não analisarão os argumentos com objetividade e desvalorizarão a utilização de informação menos factual e de estratégias mais emotivas por parte do candidato do seu partido. Neste caso, a resposta é clara: os debates políticos não farão diferença, a não ser tornar as claques mais ruidosas.

Os vulcanos serão aqueles que, interessando-se por política, procuram ser rigorosos e imparciais e evitar distorções de pensamento. Mesmo que tenham um partido ou favoreçam uma determinada posição ideológica, procurarão olhar para os debates com distanciamento e objectividade, avaliando os argumentos trocados e a qualidade das propostas apresentadas. Mas será que se deixam convencer pelos melhores argumentos, mudando até a sua intenção de voto?

Talvez seja melhor passarmos para Wilhelm von Humboldt.

2Quatro entendimentos sobre a linguagem

Aprendi com Bernhard Sylla, Professor de Filosofia da Universidade do Minho, que podemos encontrar nos escritos pouco sistemáticos de Humboldt (irmão do naturalista Alexander) quatro entendimentos de linguagem:

o primeiro considera que a essência da linguagem corresponde a uma competência linguística universal e está, nessa medida, relacionada com a noção kantiana de Razão enquanto organon universal do pensamento;

o segundo opõe-se a esta dimensão universalista: a essência da linguagem residiria nas línguas maternas, cujas estruturas determinam ou condicionam o pensamento, a fala e o agir dos seus falantes;

o terceiro parte deste sentido particularista da língua materna, mas ressalta a capacidade de o falante individual alterar a própria língua e criar mudanças no modo como interpretamos o mundo;

o quarto relaciona-se com o primeiro: partindo de uma capacidade linguística universal, a essência da linguagem encontra-se aqui no diálogo. É porque existe um outro que me responde que existe linguagem e razão, construídas numa troca permanente de argumentos sobre o mundo que apela a uma racionalidade comum.

A utilidade desta grelha de análise pode não ser imediatamente perceptível, mas merece ser considerada: a partir dela, e passando para o domínio político, podemos avaliar praticamente todas as teorias políticas contemporâneas e compreender os argumentos metapolíticos dos quais partem.

Pensemos em Habermas, que considera que a política deve assentar numa base deliberativa de diálogo permanente com os outros, a partir de uma racionalidade comum, e se enquadra no quarto entendimento da linguagem; ou em autores liberais, como John Rawls, que universalizam a solução liberal, colocando-se no primeiro entendimento.

Permite-nos também identificar autores mais particularistas como Michael Sandel, que chama a atenção para o facto de a razão funcionar sempre a partir de um contexto específico, nomeadamente moral, e que poderia ser enquadrado no segundo entendimento; enquanto no terceiro caberiam teorias da tradição revolucionária, que, apesar de reconhecerem o poder da estrutura, entendem que é possível uma revolução do sistema para se criarem novas condições políticas.

3Quatro entendimentos sobre a política

Com inspiração nesta hipótese de trabalho, seria possível identificar quatro posicionamentos políticos com relevância nos nossos dias:

o primeiro corresponderia a uma perspetiva universalista, que apela a uma racionalidade comum e, nessa medida, a uma possibilidade de entendimento constante e global pelo facto de a razão ceder perante a validade dos melhores argumentos e independentemente das circunstâncias históricas e geográficas;

o segundo apelaria a uma perspetiva particularista: o modo como percepcionamos politicamente o mundo depende do nosso contexto particular, nomeadamente aquele que resulta da nossa língua materna, das nossas tradições, da história da nossa comunidade. Nesta perspetiva, as diferenças culturais são sempre relevantes, e embora haja possibilidade de diálogo e entendimento dentro de cada cultura, nunca é possível uma compreensão absoluta entre culturas;

um terceiro teria uma índole materialista e apela àqueles que consideram que os interesses políticos são economicamente determinados e decorrem da nossa classe social. Neste sentido, um trabalhador nunca terá interesses políticos comuns aos da elite económica, pelo que a luta política oporá sempre estes dois grupos;

um quarto entendimento postularia a ideia de que a pertença a uma certa identidade condiciona radicalmente o modo como vemos o mundo pelo que a política se traduz numa luta entre diferentes identidades que têm, inevitavelmente, interesses diferentes. Este seria o entendimento identitário, encerrando a visão do mundo numa identidade específica.

Os dois primeiros entendimentos podem ser designados como dialogantes e os dois últimos como agonísticos – categorização que nos permite compreender a visão dos dois grupos no que diz respeito aos debates.

Para os primeiros, os debates podem mudar alguma coisa: a razão cederia perante os melhores argumentos, ou com efeitos universais ou com efeitos dentro da comunidade que define o bem comum. Não há um fosso intransponível entre homens e mulheres ou trabalhadores e empresários: os seus interesses políticos são racional e moralmente construídos e as convicções políticas podem ser partilhadas e negociadas tendo em vista o bem comum.

Para os segundos, a política é inevitavelmente um confronto entre posições diferentes e inconciliáveis e a luta política é permanente. Assim, na medida em que os debates consistem no confronto entre duas forças opostas, deles não resulta a vitória do melhor argumento, mas a possibilidade de oferecer aos membros do grupo mais clareza sobre os interesses que estão em causa e os argumentos que devem ser utilizados na luta.

Desta forma, quando Ricardo Conceição pergunta, na História do Dia, se os debates mudam alguma coisa, importa não esquecer que muito depende das nossas ideias filosóficas. Embora, em última instância, talvez possamos concluir como uma aluna me disse recentemente a propósito dos debates académicos: o que mais importa nos debates não é vencer ou convencer – é eles ajudarem-nos a pensar melhor. (E nestes momentos, é o aluno que dá a lição.)

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COMENTÁRIOS:

bento guerra: Os debates são desgarradas, que fazem de conta que os "chefes" representam os partidos. Um espectáculo inútil, mas que promovido pelas televisões, pode ter impacto, nas franjas analfo-emocionais.             João Floriano: «O que é demais não presta, o que é demais estraga». Não me atrevo como ignorante que sou a criticar as crónicas da Professora Patrícia Fernandes, mas considero-me um aluno atento, esforçado, interessado. Para já identifico-me com o grupo dos hooligans políticos. Já me tenho esforçado no sentido de ser volcano, mas confesso-me impotente. Sou mesmo dos que fazem claque, dos que não gostam nem um bocadinho dos partidos de extrema-esquerda, o que me leva a questionar como seria  a minha relação pessoal se tivesse como vizinhos Mariana Mortágua, Rui Tavares ou Paulo Raimundo. São níveis de relacionamento muito diferentes felizmente. Já de si a questão da utilidade dos debates é motivo para larga discussão e toda a informação teórica sobre a linguística e a sociologia que envolve o acto de debater nos seus diferentes actores, acaba por ser demais. Este é igualmente um sinal dos nossos tempos: excesso de informação geralmente muito complexa, muito hermética para  a maior parte do cidadão comum. Voltando aos debates considero que é melhor tê-los do que não tê-los. Há que distinguir entre os debates em si e todos nós conseguimos detectar os contras sem necessidade de lupa: pouca duração, escassa meia hora quando há tanto para dizer, engalfinhamento dos adversários políticos, incapacidade do moderador em manter  a ordem tanto por simpatia com um dos lados, como por falta de conhecimentos. O grande problema prende-se com o circo mediático que se segue ao debate onde doutos comentadeiros, na sua esmagadora maioria apoiantes da esquerda e da extrema-esquerda, Já nem vou pelo caminho de os considerar assalariados, se ocupam em análises e considerações que muitas vezes são pouco mais do que absurdas e mal intencionadas. Tanto comentadeiros a soldo como sondagens diárias se tornaram motivo de chacota e piada. Os hobbits não se interessam nem percebem o que está  a ser avaliado, os hooligans juntam-se em claques parciais, os volcanos são raríssimos, eu pelo menos tento lembrar-me de um só e não consigo até porque como sociedade, a clivagem é de tal ordem que dificilmente se conserva a objectividade. Os debates televisivos podem ser comparados àquelas sinopses muito rápidas que aparecem na contracapa dos livros. Se nos interessar o suficiente é motivo para adquirir o livro, se não for esse o caso fica na prateleira. Juntamente com a sinopse aparecem resumidas impressões de críticos. Há livros que recebem críticas tão más, tão negativas que somos imediatamente levados a comprá-los.              Américo Silva: Claro que mudam, podemos sempre observar qual o mais bonito, a mais bem penteada, a mais magra, o mais bronzeado, a melhor dentadura, a melhor perna. Mas para além dos debates é importante pôr a figura certa a falar para o público certo: Cavaco a falar aos lesados do BES; Beleza aos médicos; Passos Coelho aos pensionistas; Cristas aos que têm falta de casa; Durão Barroso aos que deixam o país, e assim por diante.              João Floriano > Américo Silva: Bom dia Américo. Grande sugestão de colocar as figuras certas a falar para o público certo. Permita-me enriquecer  a sua lista: Pedro Nuno Santos  a falar aos contribuintes portugueses, por whatsapp obviamente nos 3,2 mil milhões queimados na TAP e que não vão ser recuperados apesar do que inicialmente foi sugerido. Pode também falar sobre os hospitais e habitação que não passaram de promessas eleitorais. António Costa  a falar aos portugueses sobre  a falta de reformas estruturais, a brain drain à portuguesa, os casos e casinhos de corrupção, as demissões do seu governo de maioria absoluta e já agora o que estavam  a fazer uns trocados no gabinete ao lado do seu. Mariana Mortágua  a falar para os inquilinos com mais de 100 anos sobre  a possibilidade de serem despejados dos super apartamentos de 8 divisões com vista para o Marquês e com rendas de 1950. Pode também explicar a sua relação com a Climáximo. Paulo Raimundo a falar aos portugueses sobre o empreendimento imobiliário na Vivenda Aleluia. Quem tem telhados de vidro não deve atirar pedradas ao vizinho.

 

 

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