De CAROLINA CARVALHO a ISABEL MACHADO. A propósito do livro desta, sobre a Rainha Vitória
O príncipe
Alberto morreu muito novo. Como é que a Rainha lidou com o luto?
O Castelo de Balmoral era o seu
templo, ela fugia para ali e obrigava os ministros, imagine-se o que era no
século XIX, a ir de Londres às Highlands da Escócia para reuniões semanais. E depois falavam sempre com muito cuidado. Só
há um que a convence depois a voltar a ser vista [em público], que é o
[Benjamin] Disraeli, uma grande figura, porque ela o adora. Quando ela gostava, fazia tudo o que eles
[primeiros-ministros] queriam. Ela sofreu muito, mas também
cultivou aquilo. O culto à
morte do príncipe Alberto dominou até a Inglaterra. Foi um desgosto colectivo.
Ele era mesmo um homem especial e morreu em meia dúzia de dias, com 41 anos.
Não se estava à espera. Morreu de febre tifoide, mas hoje acha-se que não,
porque ele tinha muitos problemas. Era um homem estóico, mas de físico frágil. Ele
era lindo. Foi um casamento arranjado pelo tio Leopoldo, que também fez o
casamento da nossa Dona Maria II com o D. Fernando, que era irmão dele. Este
tio Leopoldo, que é o primeiro Rei dos Belgas, é que vai fazer estes casamentos
todos.
▲Osborne
House, na ilha de Wight. O quarto da Rainha Victoria, a sala de estar, uma
vista aérea e Carlos e Camila em visita em 2009 GETTY IMAGES
A Rainha Vitória foi a primeira
mulher a vestir-se de branco no casamento e tornou-se uma tradição. Descobriu
outros rituais ou princípios em que ela tivesse sido pioneira?
Esse é o primeiro. Ela desenha o seu vestido
e escolhe o branco, que não era uma cor nada real. Sendo uma romântica e
estando apaixonadíssima, o branco era a cor da pureza. Ela bateu o pé e todas as filhas se vão casar de
branco e por amor. Os filhos também, excepto o mais velho, que como ia ser Rei,
é um casamento decidido pelo pai, mas que ele aceita.
A Rainha Vitória era completamente desprovida de preconceito racial. Ela gostava mais das pessoas
simples, acho que era também uma questão de insegurança, ela sentia-se insegura
entre os grandes ministros e intelectuais. A pessoa mais importante na primeira fase da vida dela é uma governanta e, depois da viuvez, ela está
próxima de criados, de tal forma que se apaixona por dois, primeiro um escocês
e depois um indiano. Na Índia, o ponto alto do seu
reinado é o estatuto da Índia. Foi ela que esteve um ano inteiro a redigi-lo
pelo seu punho, uma coisa que ela impôs foi que nunca fosse
discriminada a cor da pele, nem a religião do povo indiano. Ainda hoje os indianos têm muito
apreço por ela. Mesmo que não gostem de ingleses, gostam da Rainha Vitória. E ela tinha uma paixão pela Índia,
mas nunca lá foi. Não gostava nada da Rússia e tem um filho que casa com a filha do Czar da
Rússia e ela fica furiosa porque ele apaixona-se, lá está. E depois a neta favorita dela vai casar com o Czar e é a última
Czarina que é morta com a família toda. Mas ela ficou horrorizada também com esse casamento
da neta. É outro paralelismo. Portanto, a
Rússia naturalmente já tinha a vontade de controle e de hegemonia e a primeira
guerra da Crimeia é no reinado da Rainha Vitória.
Sendo certo que era uma mulher
surpreendente em algumas coisas, na liberdade de casar por amor, no horror à
discriminação racial ou religiosa, ou quando dizia que as mulheres eram
escravas dos homens e que a gravidez e o parto eram um horror absoluto, não se
pode dizer que fosse uma “feminista” antes do tempo. Aliás, era ela contra o direito de
voto para as mulheres e contra a ideia de mulheres na política, como mostro no romance. Vitória
era, acima de tudo, uma pessoa contraditória, e é assim que eu a retrato,
extremamente complexa, podendo ir de um extremo de compaixão a acessos de
grande frieza.
A Crimeia já
era na altura um território desejado?
A história da Crimeia é muito
complexa, mas esteve sob domínio otomano muito tempo, até os russos se
apoderarem da região em finais do século XVIII. Ora, isto não
interessava nada nem aos otomanos, nem aos franceses, nem aos ingleses. Estes
últimos, que são os que nos interessam neste romance, porque o controlo do Mar
Negro pelos russos podia pôr em causa o poder britânico, obviamente. É preciso ver a proximidade do Mediterrâneo, logo ao
Egipto, que muito interessava aos britânicos nesta altura do reinado da Rainha
Vitória, mas também a própria Índia. Queriam os russos bem longe e quanto menos
território dominassem, mais seguro estava o império britânico. A Índia sempre
foi muito cobiçada também pelos russos. Daí terem feito uma aliança com
os turcos e os franceses, declarando guerra à Rússia.
O reinado da Rainha Vitória tem legados para tudo. Mais um: a enfermagem
nasce no reinado da Rainha Vitória durante a Guerra da Crimeia. Lá está, em
Inglaterra esta classe burguesa do século XIX que estudou e que era muito
avançada, tinha até mesmo alguns aristocratas, eram socialmente muito
empenhadosc, como Florence Nightingale, queviria a fundar uma escola de enfermagem,
depois de voltar da Crimeia.
[Embora não
tenha sido uma iniciativa do governo britânico] a Rainha Vitória vai
condecorá-la e mais tarde ela vai ajudar o nosso Rei D. Pedro V, que ele quer
fazer um hospital a honrar a mulher, o Hospital Dona Estefânia. Quem faz o
Hospital D. Estefânia é um arquitecto inglês, que a Rainha Vitória e o príncipe
Alberto aconselham, porque os projectos iam do rei D. Pedro V para eles, e eles
viam. Foi nesta altura que a Rainha Vitória criou a Victoria Cross, ainda hoje a mais alta
condecoração militar britânica, atribuída por actos valorosos frente ao
inimigo, mas que pode ser atribuída também a civis se estiverem em cenário
militar, sob comando militar. É atribuída a poucos eleitos e é sempre
entregue pessoalmente pelo Rei ou pela Rainha.
Os reis hoje
em dia, ou algumas famílias reais, têm relações próximas, visitam-se, mas na
altura como se mantinham as relações?
Muito
por carta, claro, mas [a Rainha Vitória] chegou a ir a Paris, e depois já no
fim, viúva, vai a França, vai para os Alpes. Reunia a família toda em sítios.
Também foi a Itália. A Rainha
Vitória começou outra coisa que é o conceito de férias em família, com a casa
de Osborne e com a casa de Balmoral.
Apesar de ela continuar sempre a trabalhar, a família está ali sozinha, não
está na corte. Quando os filhos começam a casar, ela ia visitar a filha que
estava em Berlim, a Vicky, que é mãe do futuro Kaiser, e visita outros. A
Portugal é que nunca veio, era longe.
O livro está
escrito quase num registo de diário, como se fosse uma sucessão de cartas.
Porquê?
Por
causa da Rainha Vitória, por causa da personalidade que eu encontrei. Uma
personalidade tão emotiva, tão transbordante, tão inesperadamente excessiva,
emoções à flor da pele, sem freio, sensual, que eu achei irresistível para o
leitor, de vez em quando, entrar o registo de primeira pessoa, que é um registo
ficcionado, mas baseado absolutamente nas opiniões dela e de como ela via as
pessoas e o mundo.
Diz que todas
as personagens do livro são verídicas. Quais é que destaca como sendo as mais
interessantes?
Este
livro tem muitas personagens. Mas a mais interessante é a Rainha Vitória,
porque é inesperada, porque é uma mulher excessiva, sensual, muito escandalosa,
e depois o príncipe Alberto. Foi a maior surpresa da pesquisa, é um homem
incrível. Os ingleses devem-lhe muito, ele passou as passas do Algarve em
Inglaterra por causa dos preconceitos por ele ser alemão e estrangeiro, quando
ele era absolutamente brilhante, humanista, empenhado, um homem que deu tanto a
Inglaterra. Depois da
morte é reconhecido, ainda hoje é considerado um homem absolutamente
extraordinário. E um homem de paz. Se ele tivesse vivido [não morresse tão
cedo], talvez não tivesse havido a Primeira Guerra, que é provocada pelo seu
neto. Guilherme II, que é o neto da filha preferida do príncipe Alberto, e eu
acho que com a influência dele, talvez o século XX não tivesse sido assim.
▲O príncipe Alberto e a Rainha Victoria
E algumas figuras portuguesas?
Os
reis portugueses também, nomeadamente Dom Pedro V, para mim também uma grande
surpresa. Sofri muito com aquele rei. Ele é muito infeliz e eu gostei muito
dele. Depois, há outras figuras políticas, como por exemplo Marechal Saldanha,
que eu acho uma maravilha. É assim a figura mais colorida da política
portuguesa do século XIX. O homem aos 80 anos ainda fazia pronunciamentos
militares, estava nas guerras todas. O duque de Saldanha, Marechal de Saldanha.
E depois, os políticos ingleses, há ali figuras extraordinárias. Temos o Benjamin
Disraeli e o Gladstone. Sobretudo
estes, que ela odiava um e amava outro. O Lord Belmore, o seu primeiro
primeiro-ministro. O tio Leopoldo, que faz os casamentos de todos, mas esse
entra mais à distância. E depois o Eduardo VII, o seu filho Berthi, eu dou
muita atenção, porque acho que ele era muito maltratado pelos pais e era um
grande amigo de Portugal.
Viveu parte
da sua vida fora de Portugal, nomeadamente nos Estados Unidos e em Macau,
sítios onde não há a tradição da realeza. De onde vem o seu interesse por
figuras deste universo?
Eu não sou monárquica. Há atracção
por algumas figuras da realeza, mas a atracção é pela História e por alguns
períodos e algumas figuras. De facto os meus livros são todos sobre figuras
ligadas à realeza, mas é mais uma consequência de figuras ou períodos
históricos que me atraem. Muitas vezes é nas pesquisas de uns [livros] que
tenho ideias [para outros]. Tenho estado muito na realeza, mas hei-de sair.
Já foi professora e
jornalista, o que é que a levou para a profissão de autora?
A minha grande primeira paixão
foi sempre a literatura e a História, por causa do meu pai. Era um apaixonado por História. Nós desde pequeninos,
desde que aprendemos a falar, aprendemos a ouvir falar de História. Depois
estudei línguas e literatura, depois o jornalismo acontece em Macau, a
televisão também. Continuo depois cá no canal Parlamento e a escrever para
revistas. Os livros foram uma sugestão de uma editora, a Esfera dos Livros na
altura. Um amigo meu tentava arranjar pessoas que pudessem talvez adaptar-se a
escrever romances históricos nessa editora e um dia perguntou-me se eu não
gostava de fazer um romance histórico. Eu disse logo que sim. Foi a primeira e
única vez na minha vida que disse logo que sim a uma proposta de trabalho. Foi uma
loucura porque disse que sim sem saber no que me estava a meter.
Há quem diga
hoje que a monarquia está ultrapassada, mas a verdade é que continua a
interessar muito às pessoas. O que acha que mantém esse interesse?
Acho que em primeiro lugar é o simbolismo
da ligação à história. A pertença. Ou seja, as pessoas olham para aquelas
pessoas e vêem uma continuidade que é muito apelativa e que nenhum político
tem. Depois, o cerimonial é uma coisa que é muito importante na vida humana. O
simbolismo, todo o significado dos gestos. Todas as culturas têm isso e não há
nenhum sistema do mundo em que isso seja mais exacerbado do que numa monarquia.
Adoro o Carlos III, há muitos
anos, acho o melhor deles todos, humanamente. Há 50 anos que ele é um defensor
do ambiente, da agricultura orgânica, do diálogo interreligioso, do diálogo
interracial. Há 50 anos quando ninguém falava nisto. É um homem extraordinário.
Há uma coisa que eu, apesar de não ser monárquica, tenho de reconhecer nas
monarquias constitucionais. É que aquela pessoa é treinada desde pequena para o
dever. É absolutamente apartidária. E é mesmo. Nós olhamos para a Dinamarca,
olhamos para a Holanda, sabemos que podem ser elementos unificadores. A
Bélgica, a Espanha, a Grã-Bretanha. Mesmo os escoceses, quando quiseram fazer o
referendo, antes do Brexit, disseram “nós queremos ser independentes, mas
queremos manter a libra e a Rainha”.
▲A
soberana rodeada pela família em Osborne House, no final do século XIX UNIVERSAL
IMAGES GROUP VIA GETTY
A dada altura, no seu livro, a Dona
Maria diz à Rainha Vitória que os políticos arranjam problemas que têm de ser
os soberanos a resolver. Quais é que acha que são os desafios da realeza actualmente
quando, nas monarquias constitucionais, os reis são diplomatas nos bastidores,
mas vistos como figuras decorativas para
o exterior?
É esse equilíbrio. O principal
desafio de qualquer monarquia constitucional é manter-se relevante num mundo em
constante mudança. Eles aí até
podem ter um trunfo, que a tal continuidade é a estabilidade que eles podem
representar. E eles têm de se adaptar. Portanto, eles têm de manter na mesma
o cerimonial e todo o simbolismo que tanto cativa as pessoas e que une as
pessoas, mas têm de modernizar. No caso de Inglaterra, a família real, a
monarquia em geral, dá aos cofres milhões. Milhões, não só no turismo, mas,
mais importante ainda, na caridade. Porque a família real britânica é, talvez,
no mundo das instituições que mais consegue angariar fundos para tudo o que se
possa imaginar.
Acha que as
monarquias têm futuro, nomeadamente na Europa? Quem é que são as figuras que
destaca do presente e, possivelmente, para o futuro?
Destaco já Carlos III. Gosto
muito do Rei de Espanha, Felipe VI. Não gostava
do outro, mas gosto deste, como pessoa. Destacaria estes dois. Se tem futuro,
não sei. Têm que saber manter-se relevantes e acompanhar os tempos.
Quanto tempo
andou mergulhada na vida da Rainha Vitória a escrever o livro?
Dois anos. Portanto, de 2012 a 2014.
Esta edição do livro
acrescenta alguma coisa à primeira?
Não, há uma diferença da escrita. Fiz
algumas alterações na estrutura. Acrescentei as fotografias que não tinha.
Acrescentei uma árvore genealógica que não tinha. Acrescentei a nota da autora.
Actualizei [alguma informação, por exemplo, sobre] o Rei Carlos III.
Pode revelar quem é a personagem que já tem
debaixo do olho para o próximo livro? Se é do antigamente ou mais recente?
Não. É da
história.
Porque sente
que é relevante falar da Rainha Vitória agora?
A
Rainha Vitória é sempre actual porque, em primeiro lugar, é uma mulher que
reinou sobre um império inteiro. Uma
mulher de poder no século XIX, que é um século em que começa a despontar o
direito das mulheres. Depois, era uma mulher sem preconceitos raciais, que se
vê muito no livro, que é uma coisa absolutamente inesperada. Muito na
ordem do dia e muito surpreendente. É uma mulher que não fazia distinção entre
classes. Preferia muitas vezes a companhia de criados causando, aliás, até
muito incómodo na sua família, nos seus filhos, na aristocracia porque ela
gostava da gente simples e diz isso desde jovem.
Depois, é uma mulher que
defendeu os casamentos por amor, ela deu um grande passo, e há muitos sítios do
mundo onde ainda não se casa por amor, onde as mulheres são forçadas a casar. Nós
vivemos num paraíso, mas se calhar em dois terços do mundo, as mulheres têm
zero direitos e cá também têm menos que os homens. Também não há nenhum sítio
onde não têm menos que os homens, nem na Suécia. E depois, é importante porque
há uma desagregação na Europa, que está numa convulsão tremenda, e a Rainha
Vitória e o príncipe Alberto sempre acreditaram e sempre lutaram no sentido da
paz. E essa felicidade de terem até os filhos casados, eles acreditavam que a
paz era melhor que a guerra. O reinado da Rainha Vitória, que é o reinado das
grandes conquistas sociais, deve lembrar-nos que nós temos sempre, sempre,
sempre de lutar pela democracia, pela liberdade, porque é a coisa mais frágil
do mundo.
Artigo
actualizado às 12h05 de 27 de maio com as datas do reinado de Dom Carlos
LIVROS LITERATURA CULTURA CASAS REAIS CELEBRIDADES LIFESTYLE FAMÍLIA REAL BRITÂNICA NOSTALGIA HISTÓRIA
COMENTÁRIOS (de 14)
António Soares: Cada uma tinha o seu cargo. Portugal ainda é nosso, muito embora, se dependesse do PCP, há muito que seria uma colónia russa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário