quarta-feira, 26 de junho de 2024

CONCLUSÃO DA ENTREVISTA ANTERIOR


De CAROLINA CARVALHO a ISABEL MACHADO. A propósito do livro desta, sobre a Rainha Vitória

O príncipe Alberto morreu muito novo. Como é que a Rainha lidou com o luto?
O Castelo de Balmoral era o seu templo, ela fugia para ali e obrigava os ministros, imagine-se o que era no século XIX, a ir de Londres às Highlands da Escócia para reuniões semanais. E depois falavam sempre com muito cuidado. Só há um que a convence depois a voltar a ser vista [em público], que é o [Benjamin] Disraeli, uma grande figura, porque ela o adora. Quando ela gostava, fazia tudo o que eles [primeiros-ministros] queriam. Ela sofreu muito, mas também cultivou aquilo. O culto à morte do príncipe Alberto dominou até a Inglaterra. Foi um desgosto colectivo. Ele era mesmo um homem especial e morreu em meia dúzia de dias, com 41 anos. Não se estava à espera. Morreu de febre tifoide, mas hoje acha-se que não, porque ele tinha muitos problemas. Era um homem estóico, mas de físico frágil. Ele era lindo. Foi um casamento arranjado pelo tio Leopoldo, que também fez o casamento da nossa Dona Maria II com o D. Fernando, que era irmão dele. Este tio Leopoldo, que é o primeiro Rei dos Belgas, é que vai fazer estes casamentos todos.

Osborne House, na ilha de Wight. O quarto da Rainha Victoria, a sala de estar, uma vista aérea e Carlos e Camila em visita em 2009 GETTY IMAGES

A Rainha Vitória foi a primeira mulher a vestir-se de branco no casamento e tornou-se uma tradição. Descobriu outros rituais ou princípios em que ela tivesse sido pioneira?
Esse é o primeiro. Ela desenha o seu vestido e escolhe o branco, que não era uma cor nada real. Sendo uma romântica e estando apaixonadíssima, o branco era a cor da pureza. Ela bateu o pé e todas as filhas se vão casar de branco e por amor. Os filhos também, excepto o mais velho, que como ia ser Rei, é um casamento decidido pelo pai, mas que ele aceita.

A Rainha Vitória era completamente desprovida de preconceito racial. Ela gostava mais das pessoas simples, acho que era também uma questão de insegurança, ela sentia-se insegura entre os grandes ministros e intelectuais. A pessoa mais importante na primeira fase da vida dela é uma governanta e, depois da viuvez, ela está próxima de criados, de tal forma que se apaixona por dois, primeiro um escocês e depois um indiano. Na Índia, o ponto alto do seu reinado é o estatuto da Índia. Foi ela que esteve um ano inteiro a redigi-lo pelo seu punho, uma coisa que ela impôs foi que nunca fosse discriminada a cor da pele, nem a religião do povo indiano. Ainda hoje os indianos têm muito apreço por ela. Mesmo que não gostem de ingleses, gostam da Rainha Vitória. E ela tinha uma paixão pela Índia, mas nunca lá foi. Não gostava nada da Rússia e tem um filho que casa com a filha do Czar da Rússia e ela fica furiosa porque ele apaixona-se, lá está. E depois a neta favorita dela vai casar com o Czar e é a última Czarina que é morta com a família toda. Mas ela ficou horrorizada também com esse casamento da neta. É outro paralelismo. Portanto, a Rússia naturalmente já tinha a vontade de controle e de hegemonia e a primeira guerra da Crimeia é no reinado da Rainha Vitória.

Sendo certo que era uma mulher surpreendente em algumas coisas, na liberdade de casar por amor, no horror à discriminação racial ou religiosa, ou quando dizia que as mulheres eram escravas dos homens e que a gravidez e o parto eram um horror absoluto, não se pode dizer que fosse uma “feminista” antes do tempo. Aliás, era ela contra o direito de voto para as mulheres e contra a ideia de mulheres na política, como mostro no romance. Vitória era, acima de tudo, uma pessoa contraditória, e é assim que eu a retrato, extremamente complexa, podendo ir de um extremo de compaixão a acessos de grande frieza.

A Crimeia já era na altura um território desejado? 

A história da Crimeia é muito complexa, mas esteve sob domínio otomano muito tempo, até os russos se apoderarem da região em finais do século XVIII. Ora, isto não interessava nada nem aos otomanos, nem aos franceses, nem aos ingleses. Estes últimos, que são os que nos interessam neste romance, porque o controlo do Mar Negro pelos russos podia pôr em causa o poder britânico, obviamente. É preciso ver a proximidade do Mediterrâneo, logo ao Egipto, que muito interessava aos britânicos nesta altura do reinado da Rainha Vitória, mas também a própria Índia. Queriam os russos bem longe e quanto menos território dominassem, mais seguro estava o império britânico. A Índia sempre foi muito cobiçada também pelos russos. Daí terem feito uma aliança com os turcos e os franceses, declarando guerra à Rússia.

O reinado da Rainha Vitória tem legados para tudo. Mais um: a enfermagem nasce no reinado da Rainha Vitória durante a Guerra da Crimeia. Lá está, em Inglaterra esta classe burguesa do século XIX que estudou e que era muito avançada, tinha até mesmo alguns aristocratas, eram socialmente muito empenhadosc, como Florence Nightingale, queviria a fundar uma escola de enfermagem, depois de voltar da Crimeia.

 [Embora não tenha sido uma iniciativa do governo britânico] a Rainha Vitória vai condecorá-la e mais tarde ela vai ajudar o nosso Rei D. Pedro V, que ele quer fazer um hospital a honrar a mulher, o Hospital Dona Estefânia. Quem faz o Hospital D. Estefânia é um arquitecto inglês, que a Rainha Vitória e o príncipe Alberto aconselham, porque os projectos iam do rei D. Pedro V para eles, e eles viam. Foi nesta altura que a Rainha Vitória criou a Victoria Cross, ainda hoje a mais alta condecoração militar britânica, atribuída por actos valorosos frente ao inimigo, mas que pode ser atribuída também a civis se estiverem em cenário militar, sob comando militar. É atribuída a poucos eleitos e é sempre entregue pessoalmente pelo Rei ou pela Rainha.

Os reis hoje em dia, ou algumas famílias reais, têm relações próximas, visitam-se, mas na altura como se mantinham as relações?

Muito por carta, claro, mas [a Rainha Vitória] chegou a ir a Paris, e depois já no fim, viúva, vai a França, vai para os Alpes. Reunia a família toda em sítios. Também foi a Itália. A Rainha Vitória começou outra coisa que é o conceito de férias em família, com a casa de Osborne e com a casa de Balmoral. Apesar de ela continuar sempre a trabalhar, a família está ali sozinha, não está na corte. Quando os filhos começam a casar, ela ia visitar a filha que estava em Berlim, a Vicky, que é mãe do futuro Kaiser, e visita outros. A Portugal é que nunca veio, era longe.

O livro está escrito quase num registo de diário, como se fosse uma sucessão de cartas. Porquê?

Por causa da Rainha Vitória, por causa da personalidade que eu encontrei. Uma personalidade tão emotiva, tão transbordante, tão inesperadamente excessiva, emoções à flor da pele, sem freio, sensual, que eu achei irresistível para o leitor, de vez em quando, entrar o registo de primeira pessoa, que é um registo ficcionado, mas baseado absolutamente nas opiniões dela e de como ela via as pessoas e o mundo.

Diz que todas as personagens do livro são verídicas. Quais é que destaca como sendo as mais interessantes?

Este livro tem muitas personagens. Mas a mais interessante é a Rainha Vitória, porque é inesperada, porque é uma mulher excessiva, sensual, muito escandalosa, e depois o príncipe Alberto. Foi a maior surpresa da pesquisa, é um homem incrível. Os ingleses devem-lhe muito, ele passou as passas do Algarve em Inglaterra por causa dos preconceitos por ele ser alemão e estrangeiro, quando ele era absolutamente brilhante, humanista, empenhado, um homem que deu tanto a Inglaterra. Depois da morte é reconhecido, ainda hoje é considerado um homem absolutamente extraordinário. E um homem de paz. Se ele tivesse vivido [não morresse tão cedo], talvez não tivesse havido a Primeira Guerra, que é provocada pelo seu neto. Guilherme II, que é o neto da filha preferida do príncipe Alberto, e eu acho que com a influência dele, talvez o século XX não tivesse sido assim.

O príncipe Alberto e a Rainha Victoria

E algumas figuras portuguesas?

Os reis portugueses também, nomeadamente Dom Pedro V, para mim também uma grande surpresa. Sofri muito com aquele rei. Ele é muito infeliz e eu gostei muito dele. Depois, há outras figuras políticas, como por exemplo Marechal Saldanha, que eu acho uma maravilha. É assim a figura mais colorida da política portuguesa do século XIX. O homem aos 80 anos ainda fazia pronunciamentos militares, estava nas guerras todas. O duque de Saldanha, Marechal de Saldanha. E depois, os políticos ingleses, há ali figuras extraordinárias. Temos o Benjamin Disraeli e o Gladstone. Sobretudo estes, que ela odiava um e amava outro. O Lord Belmore, o seu primeiro primeiro-ministro. O tio Leopoldo, que faz os casamentos de todos, mas esse entra mais à distância. E depois o Eduardo VII, o seu filho Berthi, eu dou muita atenção, porque acho que ele era muito maltratado pelos pais e era um grande amigo de Portugal.

Viveu parte da sua vida fora de Portugal, nomeadamente nos Estados Unidos e em Macau, sítios onde não há a tradição da realeza. De onde vem o seu interesse por figuras deste universo?

Eu não sou monárquica. Há atracção por algumas figuras da realeza, mas a atracção é pela História e por alguns períodos e algumas figuras. De facto os meus livros são todos sobre figuras ligadas à realeza, mas é mais uma consequência de figuras ou períodos históricos que me atraem. Muitas vezes é nas pesquisas de uns [livros] que tenho ideias [para outros]. Tenho estado muito na realeza, mas hei-de sair.

Já foi professora e jornalista, o que é que a levou para a profissão de autora?

A minha grande primeira paixão foi sempre a literatura e a História, por causa do meu pai. Era um apaixonado por História. Nós desde pequeninos, desde que aprendemos a falar, aprendemos a ouvir falar de História. Depois estudei línguas e literatura, depois o jornalismo acontece em Macau, a televisão também. Continuo depois cá no canal Parlamento e a escrever para revistas. Os livros foram uma sugestão de uma editora, a Esfera dos Livros na altura. Um amigo meu tentava arranjar pessoas que pudessem talvez adaptar-se a escrever romances históricos nessa editora e um dia perguntou-me se eu não gostava de fazer um romance histórico. Eu disse logo que sim. Foi a primeira e única vez na minha vida que disse logo que sim a uma proposta de trabalho. Foi uma loucura porque disse que sim sem saber no que me estava a meter.

Há quem diga hoje que a monarquia está ultrapassada, mas a verdade é que continua a interessar muito às pessoas. O que acha que mantém esse interesse?

Acho que em primeiro lugar é o simbolismo da ligação à história. A pertença. Ou seja, as pessoas olham para aquelas pessoas e vêem uma continuidade que é muito apelativa e que nenhum político tem. Depois, o cerimonial é uma coisa que é muito importante na vida humana. O simbolismo, todo o significado dos gestos. Todas as culturas têm isso e não há nenhum sistema do mundo em que isso seja mais exacerbado do que numa monarquia. Adoro o Carlos III, há muitos anos, acho o melhor deles todos, humanamente. Há 50 anos que ele é um defensor do ambiente, da agricultura orgânica, do diálogo interreligioso, do diálogo interracial. Há 50 anos quando ninguém falava nisto. É um homem extraordinário. Há uma coisa que eu, apesar de não ser monárquica, tenho de reconhecer nas monarquias constitucionais. É que aquela pessoa é treinada desde pequena para o dever. É absolutamente apartidária. E é mesmo. Nós olhamos para a Dinamarca, olhamos para a Holanda, sabemos que podem ser elementos unificadores. A Bélgica, a Espanha, a Grã-Bretanha. Mesmo os escoceses, quando quiseram fazer o referendo, antes do Brexit, disseram “nós queremos ser independentes, mas queremos manter a libra e a Rainha”.

A soberana rodeada pela família em Osborne House, no final do século XIX UNIVERSAL IMAGES GROUP VIA GETTY

A dada altura, no seu livro, a Dona Maria diz à Rainha Vitória que os políticos arranjam problemas que têm de ser os soberanos a resolver. Quais é que acha que são os desafios da realeza actualmente quando, nas monarquias constitucionais, os reis são diplomatas nos bastidores, mas vistos como figuras decorativas para o exterior?
É esse equilíbrio. O principal desafio de qualquer monarquia constitucional é manter-se relevante num mundo em constante mudança. Eles aí até podem ter um trunfo, que a tal continuidade é a estabilidade que eles podem representar. E eles têm de se adaptar. Portanto, eles têm de manter na mesma o cerimonial e todo o simbolismo que tanto cativa as pessoas e que une as pessoas, mas têm de modernizar. No caso de Inglaterra, a família real, a monarquia em geral, dá aos cofres milhões. Milhões, não só no turismo, mas, mais importante ainda, na caridade. Porque a família real britânica é, talvez, no mundo das instituições que mais consegue angariar fundos para tudo o que se possa imaginar.

Acha que as monarquias têm futuro, nomeadamente na Europa? Quem é que são as figuras que destaca do presente e, possivelmente, para o futuro?

Destaco já Carlos III. Gosto muito do Rei de Espanha, Felipe VI. Não gostava do outro, mas gosto deste, como pessoa. Destacaria estes dois. Se tem futuro, não sei. Têm que saber manter-se relevantes e acompanhar os tempos.

Quanto tempo andou mergulhada na vida da Rainha Vitória a escrever o livro?
Dois anos. Portanto, de 2012 a 2014.

Esta edição do livro acrescenta alguma coisa à primeira? 
Não, há uma diferença da escrita. Fiz algumas alterações na estrutura. Acrescentei as fotografias que não tinha. Acrescentei uma árvore genealógica que não tinha. Acrescentei a nota da autora. Actualizei [alguma informação, por exemplo, sobre] o Rei Carlos III.

Pode revelar quem é a personagem que já tem debaixo do olho para o próximo livro? Se é do antigamente ou mais recente?
Não. É da história.

Porque sente que é relevante falar da Rainha Vitória agora?

A Rainha Vitória é sempre actual porque, em primeiro lugar, é uma mulher que reinou sobre um império inteiro. Uma mulher de poder no século XIX, que é um século em que começa a despontar o direito das mulheres. Depois, era uma mulher sem preconceitos raciais, que se vê muito no livro, que é uma coisa absolutamente inesperada. Muito na ordem do dia e muito surpreendente. É uma mulher que não fazia distinção entre classes. Preferia muitas vezes a companhia de criados causando, aliás, até muito incómodo na sua família, nos seus filhos, na aristocracia porque ela gostava da gente simples e diz isso desde jovem.

Depois, é uma mulher que defendeu os casamentos por amor, ela deu um grande passo, e há muitos sítios do mundo onde ainda não se casa por amor, onde as mulheres são forçadas a casar. Nós vivemos num paraíso, mas se calhar em dois terços do mundo, as mulheres têm zero direitos e cá também têm menos que os homens. Também não há nenhum sítio onde não têm menos que os homens, nem na Suécia. E depois, é importante porque há uma desagregação na Europa, que está numa convulsão tremenda, e a Rainha Vitória e o príncipe Alberto sempre acreditaram e sempre lutaram no sentido da paz. E essa felicidade de terem até os filhos casados, eles acreditavam que a paz era melhor que a guerra. O reinado da Rainha Vitória, que é o reinado das grandes conquistas sociais, deve lembrar-nos que nós temos sempre, sempre, sempre de lutar pela democracia, pela liberdade, porque é a coisa mais frágil do mundo.

 

Artigo actualizado às 12h05 de 27 de maio com as datas do reinado de Dom Carlos

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COMENTÁRIOS (de 14)

António Soares: Cada uma tinha o seu cargo. Portugal ainda é nosso, muito embora, se dependesse do PCP, há muito que seria uma colónia russa.

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