Bem me lembro nos princípios, quando
tudo era obscuro na busca da sobrevivência por cá, uma colega minha que se exprimia
com autoridade, falando de transparência e da
necessidade dessa. Eu olhava com respeito a minha colega, nunca pela minha vida
passara tal expressão como imprescindível, habituados que estávamos a intuí-la
ou a subentendê-la, mais do que a expô-la, e mesmo a explaná-la, no alarde de
uma mudança política recente, a nossa educação tendo parcimoniosamente
enveredado, anteriormente, pelos trâmites da sinceridade e da verdade na nossa
vida apolítica, apenas votada ao trabalho e aos brinquedos e prazeres do
convívio, com as agruras da praxe, na existência de cada um.
Hoje retomei a tal transparência, como
velha conhecida, desses inícios de choque vocabular politizado, e depois tantas
vezes banalizada e esquecida, com o andar da carruagem, outras expressões tendo
surgido, reveladoras de uma cultura democrática e experiências de vida de mais
gabarito ainda.
A minha gratidão pela retoma, para mais,
esclarecidamente descodificada, no lúcido texto de PATRÍCIA FERNANDES.
A democracia tem limites?
A lógica de politizar todas as áreas
da vida, aplicando princípios democráticos no espaço da esfera privada, gera
efeitos perversos. Até no domínio político, mais democracia pode ser democracia
a mais.
PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola
de Economia e Gestão da Universidade do Minho
Observador, 03 jun. 2024, 00:2016
1A sala fumarenta das traseiras
Uma expressão fundamental no âmbito das teorias da democracia resulta da política norte-americana e é traduzida habitualmente como “a sala fumarenta das traseiras” [smoke-filled back room]. De acordo com os historiadores, ela remete para uma circunstância histórica particular: em 1920, os delegados republicanos juntaram-se para escolher o seu candidato em Chicago, mas após vários dias de votação não foi possível chegar a consenso. Os velhos dirigentes partidários reuniram-se, então, numa sala privada até decidirem que o nomeado seria Warren G. Harding. Como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt contam em Como morrem as democracias,
“A Velha Guarda, como os jornalistas lhes
chamaram, serviu-se de bebidas, fumou charutos e discutiu noite dentro como
sair do impasse para chegar ao candidato de que os 493 delegados precisavam
para a nomeação.”
Com
o tempo, a expressão “smoke-filled back room” acabou por assumir um sentido
metafórico para a circunstância de importantes decisões políticas serem tomadas
pelo grupo restrito que detém o verdadeiro poder nas instituições (senadores,
barões, elites). Contudo, ao longo das décadas seguintes e com o
aprofundamento democrático das sociedades ocidentais, a ideia de decisões
tomadas na sala dos fundos (cada vez mais higienizadas) tornou-se
progressivamente menos popular: essas decisões eram entendidas como reveladoras
do fosso existente entre representantes e representados, pelo que não
representavam verdadeiramente os interesses da maioria.
No caso norte-americano, o
momento de mudança aconteceu no final da década de 1960, em particular após a
violência que marcou o congresso democrata de 1968 em Chicago, entre o
assassinato de Robert Kennedy dois meses antes e os protestos contra a Guerra
no Vietname. As imagens de violência que marcaram o
país
conduziram à publicação, em 1971, do relatório
McGovern-Fraser, que, entre outras medidas, recomendava um sistema de primárias
presidenciais vinculativas. Nas palavras de Levitsky e Ziblatt, “pela primeira vez, as pessoas que
escolheriam os candidatos presidenciais de cada partido [os delegados] não
estariam ao serviço de líderes partidários nem teriam a liberdade para realizar
acordos de bastidores na convenção; em vez disso, reflectiriam fielmente a
vontade dos eleitores nas primárias do seu estado.”
Um aprofundamento democrático deste
tipo, embora parecesse necessário, traduziu-se na impossibilidade de os partidos
continuarem a funcionar como guardiões da democracia, fiscalizando, na medida
do possível, a qualidade dos candidatos e exercendo sobre eles algum tipo de
controlo. E, assim, importava perguntar: “As primárias vinculativas
eram certamente mais democráticas. Mas poderiam elas ser excessivamente
democráticas?”
2O problema da transparência
James D’Angelo e Brent Ranalli debateram-se
com o mesmo tipo de reflexão quando, em 2019, publicaram na Foreign Affairs um
provocador artigo sobre um dos princípios basilares dos sistemas democráticos actuais
– o princípio da transparência –, considerando que esta gerava, apesar de virtudes eminentemente democráticas, efeitos
perversos.
A sua análise debruça-se, em
particular, sobre a questão do lobbying, cuja
regulação, visando maior transparência, acabou por prejudicar o interesse
público. Mas o argumento é especialmente relevante
quando permite compreender o impacto
que a transparência teve na polarização da política norte-americana das últimas
décadas. Vejamos em que medida.
Embora o apoio à ideia de
governo aberto e transparente seja hoje praticamente universal, nem sempre foi
assim:
“Antigamente,
o secretismo era visto como essencial para um bom governo, especialmente quando
se tratava de elaborar legislação. Aterrorizados com as pressões externas,
os redatores da Constituição dos EUA trabalharam em estrita privacidade,
fechando as janelas do Salão da Independência e colocando sentinelas armadas à
porta. Como Alexander Hamilton explicou mais tarde, “se o processo
deliberativo tivesse sido aberto, os clamores das facções teriam impedido
qualquer resultado satisfatório”. James Madison concordou, afirmando: “Nenhuma Constituição teria sido adoptada
pela convenção se os debates tivessem sido públicos”.”
A verdade é que “a sala fumarenta
nas traseiras” permitia
diálogo, negociações e cedências e aumentava a possibilidade de os partidos
chegarem a acordo, uma vez que não estavam sujeitos à pressão dos seus eleitores,
nomeadamente das suas facções mais activistas. Como disse Robert Luce,
congressista republicano do Massachusetts que escreveu um manual sobre o
processo legislativo: “Atrás de portas fechadas, o compromisso é possível;
perante os espectadores, é difícil”.
Paradoxalmente, a política feita às claras dificulta o processo político,
e o mecanismo de representação – de distanciamento – é perturbado pela
exigência de pureza ideológica e partidária por parte das facções. O
antagonismo aumenta e a polarização política torna-se inevitável.
3 Os limites da democracia
Estas considerações devem, então,
alertar-nos para uma certa fetichização da democracia, como se ela fosse a solução para todos os
problemas e nunca implicasse prejuízos.
Feliz ou infelizmente, isso não é verdade. Como temos visto em textos
anteriores, a lógica de politizar todas as áreas da vida, aplicando princípios
democráticos nas dimensões da esfera privada, gera efeitos perversos. Mas o
argumento vai ainda mais longe: até no domínio político, mais democracia pode
ser democracia a mais.
Um bom exemplo disso, entre nós, é o que
tem acontecido com o Livre e a sua
reivindicação de ser um partido-modelo para o futuro enquanto partido verdadeiramente
democrático. Esta afirmação passaria, nomeadamente, pela consagração de
primárias abertas como forma de aprofundar a democracia (regulamento aqui), um desejo que Mafalda
Pratas capta com a expressão “romantização da
horizontalidade da política”. O Livre seria, assim, um partido aberto como forma de
expressar confiança numa espécie de natureza democrática do ser humano.
Na prática, o partido tem passado por
sucessivas dificuldades institucionais, com a eleição, primeiro, de Joacine Katar Moreira e
a revelação de que figuras individuais não têm qualquer pejo em usar o partido
para promover interesses pessoais; e, agora, com o processo atribulado de escolha de Francisco Paupério como
primeiro candidato na lista para as eleições europeias. A ausência do número dois da lista, que
não está a fazer campanha, e o quase desaparecimento de Rui Tavares
(apareceu, no sábado, pela primeira vez) levaram mesmo a que se perguntasse, no
podcast Soundbite, se o líder
do partido deseja, na verdade, que Paupério seja eleito.
Estas são, provavelmente, as dores de
crescimento normais de um partido recente, que se confronta com as limitações
das suas próprias crenças democráticas. E pode aprender muito com a realidade: as instituições, para serem capazes de desempenhar
os seus propósitos, precisam de regras, compromisso e uma certa dose de
verticalidade – pelo que, até na política, a democracia tem os seus limites.
COMENTÁRIOS (de 17)
Tim do A: Esse é o tipo
de democracia que é mais o caminho de uma ditadura. É o que estamos a tomar no
mundo ocidental. A liberdade tem diminuído no mundo ocidental, e de que
maneira!
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