quarta-feira, 26 de junho de 2024

Uma entrevista

 

De CAROLINA CARVALHO a ISABEL MACHADO. A propósito do livro desta, sobre a Rainha Vitória

"Não fazia ideia dos laços de proximidade tão afectiva que houve entre a Rainha Vitória e os reis de Portugal"

Vitória e Dona Maria II partilhavam a idade, o cargo de rainha e uma grande amizade. Isabel Machado fala sobre a biografia reeditada da soberana inglesa que conta também a História de Portugal.

CAROLINA CARVALHO: Texto

OBSERVADOR, 26 mai. 2024, 15:0314

A série “The Crown”, da Netflix, levou os espectadores pelos corredores da casa real para contar a história da coroa britânica e dos seus protagonistas ao longo das últimas décadas. O livro “Vitória de Inglaterra, a Rainha que amou e ameaçou Portugal” (Manuscrito) pode ser visto como uma proposta semelhante, só que aqui a personagem principal é a Rainha Vitória, o cenário é a Inglaterra do século XIX e há várias cenas dedicadas à coroa portuguesa. A autora Isabel Machado dedicou dois anos a investigar a vida da soberana britânica que deu nome a uma era inteira e em 2014 publicou aquilo que diz ser “a História de Portugal vista através da corte de Inglaterra”. O livro foi relançado esta quarta-feira, dia 22 de maio, numa nova editora e lança um novo convite a viajar pela vida da Rainha Vitória e perceber a personalidade e os contrastes que tornaram esta mulher uma das grandes figuras da História.

Da paixão pelo príncipe Alberto, o seu papel de soberana numa monarquia constitucional entre políticos e ainda a amizade com a Rainha Dona Maria II. As cartas que trocavam mostram duas mulheres à conversa sobre tudo e fazem-nos questionar o que teria sido esta relação se tivessem tido telefones. O reinado de Vitória foi tão longo que manteve a relação de proximidade com quatro soberanos portugueses, de Dona Maria II a Dom Carlos, que ascendeu ao trono em 1889 e viria a morrer em fevereiro de 1908, sete anos depois da soberana britânica. Com o revolucionário século XIX como pano de fundo, são muitos os acontecimentos internacionais que marcaram aquela época e continuam a fazer eco nos dias de hoje. Isabel Machado encontrou-se com o Observador no Palácio da Ajuda para falar sobre as histórias e descobertas deste livro.

Escolheu fazer esta entrevista no Palácio da Ajuda (em Lisboa). Porquê?
Escolhi estar neste palácio porque foi construído depois do terramoto de 1755, mas só vai ser usado muito mais tarde pelo rei D. Luís, que é um dos reis primos da Rainha Vitória e do Príncipe Alberto, o seu pai era primo direito dos dois. Portanto, a Rainha Vitória, o Príncipe Alberto e o nosso rei Dom Fernando II, marido de Maria II, eram todos primos direitos, filhos de irmãos. Dom Pedro V e outros dois irmãos vêm todos infectados de Vila Viçosa, pensa-se que com febre tifoide, e morrem em poucas semanas. Então, depois desse trauma, D. Luís finalmente diz que não consegue viver no palácio onde morreram os seus irmãos, e muda-se para aqui [para o Palácio da Ajuda]. Depois de tantos anos, depois do terramoto, vem inaugurar este palácio maravilhoso, ele e a sua mulher, Dona Maria Pia.

O D. Luís disse que gostava de casar com uma das filhas da Rainha Vitória e já sabia que não podia ser, porque eles eram anglicanos, protestantes. Não sei se havia o mesmo impedimento cá, dos reis portugueses, mas em Inglaterra não podiam casar com católicos. Depois a Rainha Vitória tenta influenciar sobre as princesas que ele deve escolher para casar e escolhe quatro, a maior parte delas alemãs. O D. Luís depois responde porque tomavam muito em consideração a opinião da Rainha Vitória, foi ela e o príncipe Alberto que escolheram a mulher para Dom Pedro V.

Porque é que uma Rainha de Inglaterra escolhe a noiva de um príncipe português?
Porque o D. Pedro V, que era o filho mais velho de Dona Maria II e de D. Fernando, tinha 16 anos quando a mãe morre e torna-se Rei. A Rainha Vitória era amiga da Dona Maria II, escreviam-se muito, e quando ela morre, tem um desgosto enorme. Há três meses de luto, na corte da Inglaterra. E dizem ao D. Fernando II, o rei de Portugal, para por favor enviar os filhos para lá [Inglaterra], para passar um tempo com eles.
O D. Pedro V e o D. Luís passam dois verões em Inglaterra, até aos 18 anos de D. Pedro V, quando ele pode assumir a coroa, e são dois verões que vão transformar a vida deles.

O Dom Pedro V, que se dava um bocadinho mal com o pai, encontrou no príncipe Alberto um pai. Isto é uma história muito, muito bonita. E o príncipe Alberto encontrou no D. Pedro V um filho, porque se dava muito mal com o seu filho, futuro Eduardo VII, que era o Berti do livro e um grande amigo de Portugal. E esta relação de pai e filho é tão intensa que durante os poucos anos, infelizmente, que o D. Pedro V é rei, porque só é Rei durante seis anos, eles escrevem-se intensamente sobre tudo: as angústias, as tristezas, as dificuldades, a frustração do D. Pedro V com o país, com os políticos, com a corrupção. Eram cartas lençóis para o príncipe Alberto, e este a aconselhá-lo e a mandá-lo descansar. Realmente, Dom Pedro V era obcecado com o trabalho e destruiu a saúde.

Esta relação era tão próxima que, às tantas, o príncipe Alberto e a Rainha Vitória pensam que ele é um infeliz, só trabalha e que têm que lhe arranjar uma noiva. Então, o príncipe Alberto vai para o almanaque do Gotha escolher uma pessoa que tivesse a ver com ele porque gostava muito dele, mas sabia que ele tinha uma personalidade complicada, obcecada com o trabalho, era muito introvertido, e não podia ser uma princesa frívola. Então escolhe a [que viria a ser a] rainha Dona Estefânia. Portanto, é também pelos laços afectivos, não é que [a Rainha Vitória] mandasse em Portugal, embora tivesse aqui um bocado de poder.

"Vitória de Inglaterra. A rainha que amou e ameaçou Portugal", da editora Manuscrito

Este livro é um relançamento. O que a levou há 10 anos à história da Rainha Vitória?

Eu tinha [escrito sobre] a Rainha Isabel I, mas é preciso dizer que não era uma biografia romanceada sobre Isabel I ou sobre a Rainha Vitória, foi desde o princípio a História de Portugal vista através da corte de Inglaterra, através destas duas grandes mulheres. Sobre a Rainha Isabel I eu nem sabia que havia tanta relação com a história de Portugal, depois descobri na pesquisa. Da Rainha Vitória já sabia que havia, mas não tinha noção. Portanto, o objectivo era para fazer o pleno das grandes monarcas britânicas, relacionadas sempre com a história de Portugal.

O século XIX é o meu século favorito, porque é o século extraordinário na história da Europa. É o século da liberdade. Os leitores vão ver neste livro a forma como o século XIX determina tudo o que vai acontecer no século XX. As guerras mundiais, os problemas com África, todas as descolonizações, as guerras na Europa, a guerra na Bósnia já nos anos 90 do século XX, tudo isto tem origem naqueles impérios feitos artificialmente no século XIX, no aparecimento da Alemanha, que é unificada nessa altura. No reinado da Rainha Vitória a Alemanha não existia, eram principados e unem-se. O crescimento da Alemanha, que é uma coisa extraordinária de ver, porque repete o que vamos ver no século XX, até o processo que depois vão usar na 2ª Guerra. Por volta de 1860, depois da Guerra Franco-Prussiana, eles vão anexando territórios, como faz agora o Putin, com o argumento de que são falantes de Alemão. De repente há um protagonista na Europa que vai destabilizar tudo, porque antigamente era sempre a França ou a Inglaterra, e de repente aparece a Alemanha. Tudo isto é durante o reinado da Rainha Vitória.

Tinha noção das afinidades?

Não fazia ideia dos laços de proximidade tão afectiva que houve entre a Rainha Vitória e os reis de Portugal. D. Maria II, D. Pedro V, D. Luís e D. Carlos. Sobretudo com D. Maria II e D. Pedro V, mas também com os outros, era uma amizade de cartas quase diárias e depois de tentativa de ajudar em todos os problemas que se passavam aqui em Portugal, nomeadamente a guerra da Patuleia, todos os problemas entre os liberais. D. Maria II pede ajuda e a Rainha Vitória, em todo o seu reinado, isto é interessante, tem uma posição de grande confronto em relação aos seus ministros. Eles tinham muito menos tolerância para com Portugal, porque não cumpria a escravatura, por exemplo, e ela sempre a tentar defender, a tentar arranjar mais um pouco de tolerância e isto vai acontecer até ao ultimato. Mas ela também desespera às vezes com Portugal. Não respondíamos, protelavamos, depois não pagávamos as dívidas, depois havia esquemas de corrupção por causa da escravatura, que é um grande mito acharmos que acabámos com a escravatura.

A escravatura é um tema muito presente no livro e na actualidade também. Porque é que isto foi uma questão tão importante naquela altura?

Eu achei interessante que as pessoas soubessem. A escravatura era um tema muito, muito importante na Europa desta época, no início do reinado da Rainha Vitória. E em Inglaterra, concretamente, era uma questão mesmo muito importante. Porque a Inglaterra, depois da Revolução Industrial, começou a ter uma classe de burguesia, média burguesia, que começou a estudar nos melhores colégios do reino, nas universidades e começou a criar uma comunidade de milhares de pessoas, muito conscientes, muito empenhadas socialmente. Não é por acaso que a Inglaterra está na vanguarda de muitos dos direitos humanos, das mulheres, dos povos, direitos à autodeterminação, de uma série de coisas. E, portanto, havia uma opinião pública fortemente anti-escravatura em Inglaterra que ia para a rua, em manifestações. Havia ministros, por causa de todo esse ambiente, que como qualquer político, tinham que se vergar à opinião pública, e outros por genuína convicção, como o Lord Palmerston, que era genuinamente contra a escravatura.

E por cá?

Portugal tinha uma situação incrível, porque no Brasil não tinha pessoas para tratar das vastas terras brasileiras e, portanto, alegava que precisava de escravos e precisava de alargar o prazo para terminar completamente com a escravatura. Isto é oficial, é factual. No Congresso de Viena, quando se rearranja a Europa depois de Napoleão, os portugueses suplicam para terem um prazo maior porque precisam de escravos. Os congressistas na Europa não gostaram, e já no reinado da Rainha Vitória torna-se incomportável. Portugal comprometeu-se a acabar com a escravatura e até fez acordos com a Inglaterra. Só que continuava a haver uma corrupção tremenda, entre os cúmplices no Brasil e as autoridades portuguesas em África. Isto é típico de Portugal, a lei é maravilhosa, na prática, os cruzadores, os navios que cruzavam o Atlântico constantemente de África para o Brasil estavam cheios de escravos. E os ingleses, a dada altura, dizem, ‘então, vamos nós controlar para o meio do Atlântico’.

Foi encontrado outro esquema. Como os portugueses eram aliados, as autoridades portuguesas e brasileiras e as portuguesas de África punham, por exemplo, em navios brasileiros, o pavilhão português ou a bandeira, para os aliados deixarem passar. Mas às tantas, os ingleses afundam um navio português cheio de escravos. Aquilo foi brutal. Os jornais em Portugal, até muitos em Inglaterra diziam que era um atentado. Os portugueses, de facto, protelavam. A lei dizia uma coisa, a prática fazia outra. Mas depois aquilo resolve-se. Com muita, muita diplomacia e ajuda da Rainha, a tentar pôr água na fervura. Enfim, mas ela não tem tanto poder assim. Ela já não é Isabel I, que reunia o Parlamento quando lhe apetecia.

Guie-nos pela pesquisa que fez para este livro. Andou por Inglaterra? Com quem falou? Onde esteve?

Eu fiz a pesquisa, ao mesmo tempo, da história de Portugal e da história de Inglaterra naquele período. Dos quase 900 anos de história, o século XIX, em termos de período prolongado, é o mais caótico da história de Portugal. As cartas de Dona Maria II estão todas publicadas em português, em dois grandes livros do Ruben Andresen Leitão, de meados do século XX, e algumas do D. Pedro V para o príncipe Alberto. As cartas dizem-nos tudo, porque eles escreviam cartas diariamente. Evidentemente, depois fui também ler as biografias deles, a História de Portugal, tudo isso.

Fiz duas pesquisas em Inglaterra em dois momentos diferentes. Uma para ir aos sítios onde ela [a Rainha Vitória] viveu, sobretudo Windsor. Eu já conhecia, mas tinha ido por causa de Isabel I. Fui ao Palácio de Buckingham, que é ela que estreia e esta tradição de a família real ir à varanda, foi ela que começou. O Castelo Balmoral ainda não se podia visitar, por isso não fui lá. Mas fui à ilha de Whight, à casa de Osborne. E aí é que eu percebi realmente a relação carnal e sensual entre a Rainha Vitória e o príncipe Alberto. É naquela casa, que é construída para uma família, não é para uma família real. As crianças estão todas lá para cima em camaratas, bem longe dos pais, para ninguém chatear. Os pais dormem na mesma cama, que é uma coisa nunca vista. E depois, o quarto está cheio de trancas. Eu perguntei e foi o príncipe Alberto que as mandou pôr. Eles tinham uma vida sexual intensa. Apaixonados. Ela obsessivamente, mas ele também. É mesmo uma bonita história de amor. É ela que tem que o pedir em casamento, porque ela é que é Rainha.

Qual a característica da Rainha Vitória que mais a surpreendeu?

É preciso ver que a corte dela era muito puritana, por causa do marido. Aquela Inglaterra puritana do século XIX baseada na imagem da família da Rainha, mas depois dentro de portas era explosivo. Era muito engraçado. Aquela paixão pelo marido, que ela mostrava e dizia a toda a gente. Portanto, isso é uma coisa muito, muito importante, foi a maior surpresa da pesquisa. Aliás, de todos os livros que escrevi, já escrevi seis, tenho sempre mesmo surpresas na pesquisa, mas a maior de todas até hoje, foi a sensualidade da Rainha Vitória. Era a última coisa que me passava pela cabeça.

Quando diz sensualidade, em que é que viu isso na pesquisa? 

Na forma como ela descreve a beleza. Vi na casa de Osborne. Vi nos seus desenhos, que ela era uma esteta, portanto estava sempre a fazer aguarelas e desenhos. Vi na tal casa de Osborne, nas estátuas de nus. Como uma, nos aposentos privados, que é em alabastro, um príncipe Alberto, maravilhoso, vestido de legionário romano. Não há nada mais sexual que esta imagem. Nenhum dos filhos quis ficar com a casa — acho que tem a ver com o facto de ser a casa da paixão do pai e da mãe. Depois na Primeira Guerra até a deram aos soldados e aos feridos e pertence à herança histórica, portanto é visitado. Eu estive lá dois dias, de manhã à noite, a ver tudo, porque os sítios são muito reveladores. A maternidade para ela era um problema. A forma como é descrita por alguns historiadores, o que ela fazia e dizia e as atitudes dela, ela tinha depressões pós-partos, rejeitava os filhos. Assim que nascia um [bebé] ela olhava logo e dizia: “não é nada como o meu Alberto”. Ela não queria saber. Detestava a gravidez, sobretudo porque não podia dormir com o marido. Naquele tempo, uma mulher grávida tinha que estar separada. Isso para ela era mesmo um problema.

Ele sempre lhe foi fiel?

Sempre. E ela a ele. E foi assim toda a vida. Ela não era nada bonita, mas ele era absolutamente fiel. Qualquer história de amor não é perfeita. E ela tinha explosões, lutas, gritaria, mas era ela que começava. Depois ele escrevia-lhe cartas, era paternalista. Depois ela espojava-se aos pés dele, pedia desculpa.

Nas cartas no livro vemos Dona Maria II dizer constantemente que o país está uma balbúrdia.
É muito engraçado que Dona Maria era uma [mulher] prática e não tinha, temos que dizer, a noção da monarquia constitucional que tinha a Rainha Vitória, que foi absolutamente preparada. A Dona Maria II é atirada para um trono aos sete anos. Quer é resolver os problemas. As cartas entre as duas, tanto falam de política como da vida doméstica, mas a rainha Vitória depois tinha aquele lado um bocado pedagógico. Estava sempre a querer ensinar aos primos como é que é uma monarquia constitucional.

Logo no início do livro, percebemos pela correspondência entre as rainhas que elas se tratam pelo primeiro nome, de uma maneira muito doce. Isto era realmente assim?
Era, era. Elas só se encontraram duas vezes, aos nove anos e aos catorze, mas a Rainha Vitória era uma romântica, um puro exemplar de um movimento romântico. Era uma idealista. E quando gostava das pessoas era cega, amava.

Como é que se conheceram?

Conheceram-se porque quando a D. Maria II vinha para Portugal o navio teve que ser desviado para Inglaterra. Isto aqui era um caos com a Guerra Civil, entre o D. Pedro e o D. Miguel. Ela teve que ir para a Inglaterra, onde estavam os exilados liberais portugueses. Depois vai para a França e vai para outros sítios fazer a sua formação.

Elas têm a mesma idade com poucas semanas de diferença.

São duas mulheres que vão ser rainhas. Quando a Rainha Vitória a conhece não sabe que vai ser rainha. É filha de um quarto filho de um Rei e chega ao trono por sorte. A mãe dela, de facto, escravizou-a e ela vai escravizar os filhos. É tudo como ela quer, porque foi como ela foi educada. Ela era uma prisioneira, como ela diz. A Rainha Vitória não tem filtro. É uma coisa muito, muito curiosa. Não faz ideia o que são os diários dela… eu ponho [no livro] na primeira pessoa, mas não é como ela escreve. Faço-o de uma forma bastante mais cuidada, ponho uma linguagem mais elaborada. Os diários dela são um encanto de ler. Ela escreve “odeio” como faria uma criança, com letras maiúsculas e dez pontos de exclamação. “Adoro este homem”, pontos de exclamação. “Eu sou uma desgraçada”, pontos de exclamação. Ela escrevia cartas e diários obsessivamente e sem filtro nenhum, tanto que os diários foram queimados.

(CONTINUA)

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