Em suma, os olhos, o coração e a razão. Caso contrário, adeus pátrias,
adeus histórias nacionais passadas, abram-se as mentes a outros ditames mais
caóticos. Sem medos. Sem vergonhas. Na algazarra da destruição, na hipocrisia da
falsa cordialidade, ou na sinceridade absurda da desvergonha impune. JAIME
NOGUEIRA PINTO analisa, com o fulgor de sempre.
O centro, os extremos e a guerra civil
A partir de um centro aparentemente
inocente e pacífico, Macron opta pela dissolução estratégica e agita a guerra
civil para segurar um poder que chegou à exaustão.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 29
jun. 2024, 00:1820
Fez
agora um século que o presidente da República Francesa, Gaston Doumergue,
entregou a formação do novo governo a Édouard Herriot. Herriot era, desde 1919,
o chefe do Partido Radical-Socialista e ganhou as eleições legislativas de Maio
de 1924 com uma coligação de esquerdas, o “cartel das esquerdas”.
A regra de Herriot, retomando o mote de
Léon Bourgeois, era “pas d’ennemis à
gauche”. Porém, os
comunistas, os primeiros deputados comunistas eleitos em França, tinham-se
recusado a participar na coligação. No “cartel das esquerdas” tinham ficado os radicais independentes, os
radicais-socialistas, os republicanos socialistas, os socialistas independentes
e os da Secção Francesa da International Operária (SFIO – Section Française de
l’International Ouvrière).
Olhando para a França que amanhã vai às urnas nas mais simbólicas e
importantes eleições na Europa desde 1945, e para os três blocos – direita
nacional, centro e esquerdas moderadas e radicais unidas – que para a semana se
vão reorganizar em dois, é importante ter em conta a história próxima.
Macron poderá ser arrogante,
deslumbrado até, mas não é estúpido nem suicida. É um qualificado representante da
oligarquia sistémica com o currículo clássico: formado na École Nationale
d’Administration, foi Inspector de Finanças do Ministério da Economia
(2004-2008) e passou pela banca de investimento (Rothschild & Co. Banque,
2008-2012). Regressou ao Estado como Secretário-Geral Adjunto do Eliseu na
presidência do socialista François Hollande (2012-2014) e foi Ministro da
Economia e Finanças, sempre com Hollande, a partir de 2014. Em 2017 foi o
candidato do sistema a disputar a segunda volta com Marine Le Pen.
Em
2012, Hollande vencera o
incumbente Sarkozy, que
representava a Union pour un Mouvement Populaire, um guarda-chuva que abrigava gaulistas do
Rassemblement pour la République e giscardianos da Union pour la Démocratie
Française. Pretendia-se
juntar tudo o que estava entre as
esquerdas socialistas e comunistas
e o Front National, uma “extrema-direita” que já assustava, com os temidos
Le Pen, pai e filha. A verdade
é que, em 2012,
Hollande acabaria por ganhar a Sarkozy com 51,64% contra 48,36%.
Em 2017, com as desgraças à
direita, a Union pour un Mouvement Populaire ultrapassou o Les Republicans, mas
o alarme soou quando François Fillon ficou atrás de Marine Le Pen. Aí
o jovem Macron, que em 2016 lançara o
movimento En Marche, marchou, qual cavaleiro
do Bem, contra o dragão do fascismo – ou melhor, contra a herdeira do dragão, que lhe surgia travestida de democrata e populista. E
o Bem acabaria por vencer com 24% à primeira volta, contra os 21,30% do Mal.
Depois, postos perante a escolha definitiva, 66% de intrépidos eleitores
franceses optaram pelo caminho certo contra os 34% que voltaram a deixar-se seduzir pelas artes do Demo. Ou
seja, em França, dois em cada três eleitores ainda eram eleitores de bem.
Mas entre 2017 e 2022 o Mal foi
estendendo os seus tentáculos e progredindo: na primeira volta Macron voltou a
ficar à frente, com cerca de 28%, seguido por Le Pen, com 23%, e por Jean-Luc
Mélenchon, que rondou os 22%. Entretanto, Éric Zémmour aparecera à direita da
“extrema-direita”, retirando a Le Pen talvez uns 7%. Na segunda volta, Macron
ficaria com 58,55% e Le Pen com 41,45%. O Bem vencera outra vez, mas o Mal
ganhava terreno. Agora, em cada 10 franceses, 6 votavam consciente e
esclarecidamente e 4 votavam manipulados pelas forças do Mal.
Dissolução estratégica
A decisão de Macron de dissolver o Parlamento não foi uma decisão de
última hora, tomada em cima da vitória da “extrema-direita” nas europeias. Segundo
o Figaro, o Le Monde e o Le
Point, no curso da campanha das eleições europeias, o Presidente já reunira o núcleo duro dos
colaboradores para discutir essa alternativa.
Fazia sentido: depois das europeias, o macronismo e os
macronistas ficariam a arder em fogo lento com uma maioria desmoralizada e
desautorizada pelos sinais claros de desaprovação popular e em risco de cair a
todo o momento por um voto convergente dos extremos. Macron jogava o tudo ou nada; sabia bem
que não cumprira, mesmo naquilo em que se esperava que um financeiro liberal
cumprisse (em 2017 herdara uma dívida pública de 2, 280 mil milhões de Euros,
dívida essa que, em Dezembro de 2023, estava já acima dos 3,100 mil milhões,
representando hoje mais de 110% do PIB); e sobretudo não se importava de correr o risco máximo de uma
coabitação com o Rassemblement, sabendo que, no passado, as coabitações tinham
sido geralmente negativas para a parte coabitante que estava no governo.
Depois, além de forçar a “extrema-direita” a partilhar o poder pelo lado do
governo e a poder fracassar, Macron poderia, numa clara estratégia de
“antifascismo”, ter a esperança de criar a ambicionada “frente” já com um apoio
alargado – do jacobino Mélenchon ao rigorosamente ao centro François Bayrou,
passando por alguns desconsiderados e despeitados das direitas. Afinal Léon
Bourgeois nos anos 90 do século XIX e Herriot em 1924 tinham lançado o “pas
d’ennemis à gauche” e Charles Maurras, o pensador da direita
nacionalista francesa, o monárquico conservador e racionalista que influenciara
por meio século o pensamento alternativo na Europa, o “pas
d’ennemi à droite”.
Um outro “mundo de ontem”
Os dirigentes dos partidos
“conservadores” do sistema euroamericano, ansiosos pela simpatia ou receosos da
antipatia dos media e dos mandarins sistémicos, foram abandonando
progressivamente os valores inerentes à vida das comunidades – pátria,
religião, família, identidade. Para os
defenderem surgiram então personalidades do novo caudilhismo mediático e de
massas; personalidades quase sempre excêntricas também por desafiarem o centro,
como Donald Trump, Jair Bolsonaro, ou Xavier Milei; ou formações político-partidárias vindas
da margem do sistema, mas que foram sabendo, sem renegar o mais importante,
adequar a mensagem aos eleitores. Eleitores esses que os
liberais-chiques de todas as facções arrumam na quota dos “deploráveis” e que o
que resta da Esquerda revolucionária quer manipular e mobilizar por via
legislativa e pelo “activismo” violento, agitando um desajustado “perigo fascista”.
Lembre-se que, há um século, quem quebrou as regras do jogo das
sociedades liberais em crise do início do século XX foi a Esquerda, ou melhor,
a Extrema-Esquerda comunista, depois da revolução bolchevique na Rússia. A seguir à imposição da guerra civil e do
terror vermelho, as movimentações comunistas prosseguiram na Polónia e na
Hungria (com a breve e sanguinária ditadura de Bela Kun). Na Alemanha, tinha sido a revolta
spartakista, em Berlim; em Itália, foi o chamado “Biennio Rosso”, com ocupações
de terras e fábricas. A violência da Direita – nuns casos militar-autoritária, noutros partidária e de rua, com os
fascistas de Mussolini – só veio depois de a Esquerda ter optado por
essa via para a tomada do poder.
De
resto, com a mobilização de milhões de jovens europeus na rotina do
combate e da morte, a Grande
Guerra criara uma disponibilidade
generalizada para a violência. E depois da Grande Guerra, das
revoluções e das suas consequências económicas e sociais, os Estados
liberais do século XIX tinham passado a pertencer irremediavelmente ao “mundo
de ontem”, tão magnificamente lembrado por Stefan
Zweig na obra homónima.
Hoje, a perpetuação de um outro “mundo de ontem”, o
espaço que os partidos do centro-direita à esquerda socialista europeia estão a
tentar ocupar e preservar, vê-se na pressa e no critério com que seleccionaram
a Presidente da Comissão Europeia, o Presidente do Conselho Europeu e a
Responsável pelos Assuntos Externos da União Europeia. A ideia é impor a coligação
popular-liberal-socialista na gestão da estrutura de Bruxelas antes da chegada
dos “bárbaros”. A nomeação do liberal Mark Rutte, o derrotado primeiro-ministro
holandês, para Secretário-Geral da NATO vem completar o naipe.
Será
que isto vai agitar mais ainda a vaga das direitas nacionais e populares, que
está a avançar nas eleições europeias e legislativas, e espicaçar o “activismo”
das esquerdas mais extremas? É que hoje, ao contrário do que insinuam as
proclamações alarmistas de Macron sobre “os extremos” e a “guerra civil”, a direita
nacional e nacional-conservadora já não traz “esquadras negras”, nem camisas
azuis ou castanhas: vai a votos e espera pelos resultados; e quanto à
eleitoralmente mais exígua extrema-esquerda, confiante no seu caminho
gramsciano “através das instituições” e na legislação que vai conseguindo
avançar, passou a trazer latas de tinta, arco-íris, “ocupas”, “antifas” e manifspara
secundar a inquestionada aura de vanguardismo e superioridade moral com que
manipula as elites sistémicas.
Esperamos que, seja qual for o
resultado eleitoral em França, ele seja respeitado por vencidos e vencedores e
não haja a “guerra civil” que Macron, a partir de um aparentemente inocente e
pacífico centro, parece querer agitar para segurar um poder que chegou à
exaustão.
A SEXTA
COLUNA HISTÓRIA CULTURA FRANÇA EUROPA MUNDO
COMENTÁRIOS (de 20):
Rui Lima: Todos os que nascerem nos anos
50 e princípio de 60 têm um fascínio pela França , por isso a mínima primeira
viagem ao estrangeiro foi ir conhecer Paris, com o tempo, pode conhecer a
totalidade do país. Se a degradação era só nas grandes cidades, agora está
presente em todo o território, cidades de 5000 habitantes deixam de ser
seguras se virem o mapa eleitoral foi nas localidades médias e pequenas que
o partido de le Pen deu um grande salto . Sofro com o que se passa em
França desde 2000 é minha convicção que tudo vai acabar no caos em violência
generalizada , penso que o poder militar tem essa noção, pode ser obrigado a
separar os contendores. A
França desde o Georges Pompidou que foi um homem extraordinário, só tem tido
presidentes inúteis, só nos primeiros 3 meses a dívida subiu 58 000 milhões não tem margem
para mais despesa e todos prometem mais, sem o euro a França há muito que
estaria em bancarrota. Mas o maior problema não é financeiro, será mesmo o
que está na origem da crise é ter outra civilização no seu interior que odeia o
país que nada quer da civilização ocidental que quer impor o seu modo de vida. Henrique Nobre:
Caro Jaime
Nogueira Pinto. Poderemos citar uma célebre frase (julgo que de Millor
Fernandes, salvo erro nos anos 70 do século passado), "O Brasil estava
á beira do abismo, e decidiu dar um passo em frente". Sendo eu um
francófilo de formação - para alguém nascido em 1959, seria bizarro não o ser -
, já há anos que vejo a França como um caso perdido. E digo-o com muita
tristeza. O Maio de 68 foi o início de uma lenta e inexorável agonia da
França, economicamente, culturalmente, e socialmente. Após as vagas de imigração italiana, espanhola,
e portuguesa, absorvidas naturalmente pelo tecido social francês, a imigração
maciça de muçulmanos vindos do Magrebe (que ainda hoje continua) introduziu um
factor disruptivo na sociedade francesa. Se, a isso somarmos a cegueira da Direita
francesa às consequências óbvias desse fenómeno na identidade nacional, e os
delírios de uma Esquerda fascinada com a intelectualidade estalinista, maoista,
e anarco-libertina, que emergiu do Maio de 1968... O prognóstico é
reservado. Muito me alegraria estar errado... Muito Obrigado. Maria
Emília Santos Santos: Os franceses assim como toda a Europa fomos convencidos desde há alguns
anos, por uma esquerda desejosa de poder, mas escondida, de que devemos
testemunhar a nossa civilização, tornando-nos "bons" acolhedores dos
estrangeiros, permitindo-lhes imporem os seus estilos de vida, e dando-lhes
prioridade em tudo, absolutamente tudo! Deste modo, a cultura francesa
ou seja a civilização cristã foi-se apagando, para permitir que a muçulmana se
expandisse! E, infelizmente, assim
aconteceu! Hoje, a NOM bate palmas porque conseguiu facilmente destruir a
França e a sua cultura para que o islão que outrora era considerado inimigo,
hoje possa dominar, sem se ter preocupado em fazer nenhuma espécie de guerra
com armas! Agora que a multiculturalidade invadiu negativamente a
Europa e ela entrou em desespero, com tanto "racismo" de
esquerda contra os europeus, podemos pensar o que nos
espera! Não só
à França, mas a toda a Europa! Portugal que tem os exemplos
dos países europeus que se "modernizaram" primeiro do que nós, fecha
os olhos a tudo, para também ser "evangelizado" por esta onda de
paganismo, de desordem "acolhedora", por esta multiculturalidade
perniciosa e intencional para que a Europa descambe e os globalistas possam
enfim, dominar o mundo, sem que algum povo civilizado se lhes oponha! Os governantes que tivemos, nos países europeus,
fingiram ignorar os direitos dos povos que os elegeram. e colocaram-se ao
serviço dos poderosos do mundo! As opções eram só duas: ou
serviam quem os tinha eleito para governar ou serviam os poderosos que
simplesmente tinham e têm objectivos opostos! Estes governantes traidores
do povo que os elegeu e das suas pátrias, optaram por servir quem tem o
dinheiro porque os seus caracteres são perversos! Assim, o que conduziu a
Europa à crise em que se encontra, foram os governantes traidores, como Macron,
António Costa, Trudeau, etc. O que fazer agora que parece que alguns já
estão a acordar? Simples: tentar mudar de direção! É o que está a acontecer,
mas claro, os de antes, opõem-se veementemente, pois todas as fontes estavam a
jorrar para a maré da NOM! Vamos ter coragem e esperar que a direita vença,
porque há muito bons políticos a quererem endireitar o que está errado! João Floriano: Excelente! não se consegue
segurar um poder que chegou à exaustão e que se aguenta através de habilidades.
Macron está condenado e se não for agora será num futuro próximo. O que
aflige a Europa é não conseguir antever, perceber, antecipar o que por aí vem
com a queda de governos moderados e a ascensão de franjas que ainda não têm os
votos suficientes para formar governos estáveis. A direita ataca como se viu
nas declarações de Meloni sobre os entendimentos que se fizeram para escolher
Costa e o centro defende-se. Até quando? Estamos todos a olhar para França.
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