Digo, a Associação Ambientalista,
que se dessedenta com a água própria, que mete por aí, a dessedentar quem tem
sede, incluindo-se a si própria…
Memória de Elefante
Muitos dos actores da discussão
acalorada sobre o Alqueva não terão mudado de opinião, mas há que confrontar as
suas previsões com a realidade. Ouçamo-los com respeito, com saudável memória
de elefante
20 jun. 2024,
00:1621
No dia dez de junho do ano da graça de 2024, o boletim da entidade
gestora do Alqueva
indicava que a albufeira estava cheia até à cota 150.71 m, a pouco mais de um
metro do máximo possível, armazenando mais do que 4000 hm3 de água. Há cerca de um ano a situação era semelhante e,
apesar da variabilidade da precipitação nos últimos tempos, os valores de
armazenamento têm sido consistentemente elevados. Boas notícias.
Como
previsto por muitos, e ansiado pelo Alentejo, o Alqueva é
hoje um elemento fundamental da sustentabilidade económica do sul do
continente: mudou a paisagem, modificou o
clima, criou
condições para uma economia que apesar de todas as suas limitações é capaz de
assegurar empregos um pouco melhores do que anteriormente. Apoiou a
modernização de uma parte da agricultura portuguesa. No ciclo de estio que
precedeu os últimos dois anos, a reserva de água do Alqueva lembrou as célebres
reservas de barras de ouro do Banco de Portugal.
Apesar da real importância do Alqueva, a
sua construção foi tudo menos consensual. Graças ao site “arquivo.pt” é
possível fazer um pequeno exercício de memória e voltar ao dia 11 de abril
de 2001 onde um comunicado de uma associação ambientalista
muito respeitável, o GEOTA, escrevia (versão em inglês) sob o título “Dinheiro europeu a ser desperdiçado na
região do Alentejo” algumas
frases contundentes: “O
projecto do Alqueva é a pior forma de promover o desenvolvimento”, “Este projecto só pode ser concretizado se
os impostos portugueses e europeus oferecerem a água aos agricultores”, “A título de exemplo, e se tudo se
confirmar, em 2025 o crescimento da produção agrícola portuguesa,
devido ao projecto, deverá ser de apenas 0,65%”, “A salinização das terras irrigadas será
um problema imediato, uma vez que as terras irrigadas são sensíveis ou muito
sensíveis à salinização (65%) e a qualidade da água prevista é, na melhor das
hipóteses, média”.
Um cientista português muito relevante, Miguel
Araújo, exprime o seu ponto de vista num fórum de discussão, de uma forma ainda mais
expressiva: “Que
diremos aos nossos netos para justificar a indiferença com que a nossa geração
aniquilou um património que a eles também pertencia? […] Quem irá beneficiar do
investimento de 300 milhões no plano de rega do Baixo Alentejo? […] Também se
fala de Alqueva turístico. Mas pergunta-se, qual o valor acrescentado de uma
charca de água, barrenta, a cheirar a cágados, num país com uma das
maioríssimas linhas de costa, por metro quadrado, na Europa?” e
aponta quem vai beneficiar: “Naturalmente que o Alqueva irá
trazer benefícios imediatos a alguns concidadãos. Para começar, a indústria da
construção civil beneficia. Beneficiarão também alguns especuladores que vêem
agora os seus terrenos valorizados pela miragem de um desenvolvimento, que
ninguém sabe qual é e a quem beneficiará. É possível que alguma indústria
hoteleira se instale nas margens da futura albufeira. Um restaurante aqui, uma
pousada ali, um campo de golfe acolá”.
Cinco associações ambientalistas juntam-se numa plataforma de
protesto afirmando que o projecto do Alqueva é um crime,
acusam o governo de falta de vontade e incompetência, e procuram impedir o
cofinanciamento comunitário, o que não conseguem.
Estes exemplos são todos de organizações
e de pessoas que têm dado contributos significativos para a preservação do
ambiente e o desenvolvimento científico. São pontos de vista importantes e
reflectem a dimensão dos valores ambientais que foram destruídos para que o
Alqueva adquirisse vida. No calor da discussão são vulgares o exagero e as
teorias da conspiração. A separação entre portugueses, europeus e agricultores
é surpreendente. O
crescimento de 0,65% da produção agrícola afigura-se assaz subavaliado. A
“charca de água, barrenta, a cheirar a cágados” parece também uma descrição, no
mínimo, deslocada. Os campos de golfe têm sempre “má imprensa”, sendo aquilo
que Louis Renault, personagem do filme Casablanca, chamava “os suspeitos do
costume”, e merecem ser, também aqui, identificados e encostados à parede para
a fotografia da praxe. Nada de bom, mas também nada de novo.
Cada elemento da sociedade tem um papel
a desempenhar numa decisão tão importante como a construção de uma grande
barragem, mas esses papéis não se podem confundir. Cabe sempre aos
governos, através das suas organizações, e ouvidos todos os interessados,
avaliar e medir qual o melhor compromisso entre ganhos e perdas para os
cidadãos e o ambiente. É
necessário minimizar os impactos em todas as áreas, com eventuais compensações
ambientais sempre que possível. É preciso introduzir na equação a componente
económica que é quase sempre tratada de forma sobranceira pelas avaliações
unidimensionais. As organizações vocacionais são importantes, mas não são
juízes independentes.
Este princípio aplica-se ao Alqueva como
a qualquer situação em que estejam em causa valores ambientais, económicos e
sociais em parte ou no todo incompatíveis. E a decisão é sempre política,
naquilo que esta palavra tem de mais nobre, e exige coragem, porque a
capacidade de previsão dos efeitos das medidas é sempre limitada, e todas as
decisões acarretam riscos.
Do que sabemos hoje os decisores
políticos estiveram bem no Alqueva. O clima vai continuar a mudar ao longo
deste século, e a forma dessa mudança é hoje mais clara do que era há vinte
anos. Esperamos maior irregularidade da precipitação e períodos de estio mais
prolongados. Apesar de haver sempre uma margem de incerteza nas previsões
climáticas, o Alqueva afigura-se muito importante para as próximas décadas.
Estamos
agora perante novas decisões complexas que envolvem assegurar a disponibilidade
de água ao sul do continente e uma partilha equilibrada deste recurso entre as
regiões e os utilizadores para viabilizar todas as atividades económicas, bem
como os caudais necessários para a protecção dos ecossistemas aquáticos. Muitos
dos actores da discussão acalorada do princípio do século não terão
provavelmente mudado de opinião, porque ela radica numa hierarquia de valores
muito firme, mas na qual outros sectores da sociedade se não revêm. Mas temos
sempre de confrontar as diferentes previsões com a realidade.
Ouçamo-los a todos com respeito, mas
mantendo sempre uma saudável memória de elefante.
COMENTÁRIOS (de 21)
Manuel F: Pois, a realidade está á vista
de todos mas nem sempre assim acontece. O
que se passou com a barragem do Coa foi o inverso, deixou de se construir uma
obra com enorme interesse económico, por causa de umas gravuras pré históricas
que hoje são visitadas por meia dúzia de interessados na área. Se tivessem sido
submersas lá continuariam preservadas e o museu que foi construído, muito
interessante, mostraria e mostra as referidas gravuras para quem as quiser ver.
Qualquer país com um governo capaz teria avançado com
a obra, mas cá até foi um governo do PSD que se acobardou, por causa de umas
eleições que se aproximavam, e interrompeu a construção que estava em curso e a
seguir veio um governo PS que obviamente encerrou em definitivo o assunto, a
bem da cultura mundial e a mal do País. É triste mas é a nossa sina, sermos
governados, maioritariamente, por gente, no mínimo, desqualificada.
Ronin: Não fossem as barragens deixadas pelo Estado Novo, sem apoios externos e
nem água teríamos para beber em muitos locais do país. Nunca, apesar de se poder ser
liberal ou o que se quiser, as barragens deveriam ser entregues ao sector
privado. Não é o mesmo que a TAP, é um sector estratégico para o país a gestão da
água.
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