sábado, 22 de junho de 2024

O zelo pela transparência

 

Retrato bem nosso, hábeis que somos na virtude das palavras, a especulação sobrepondo-se, em nós, à acção, está visto. Também, se não fosse assim, não teríamos o prazer de ler as crónicas da minúcia brilhantemente satírica de AG, que Deus proteja por longos anos, a informar e a divertir, mesmo em esgares sombrios...

A casta do castelo

A “confiança nas instituições” não é minada porque uma casta sem escrúpulos coloca o poder ao serviço dos seus excelsos interesses. Não, senhor. Ela só corre riscos se as trafulhices são divulgadas.

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 22 jun. 2024, 00:206

Imagine-se que os telefonemas de um governante são escutados pela polícia a pretexto de suspeitas de tráfico de influências e corrupção. Imagine-se que, num dos telefonemas, o escutado conversa com outro governante e este, sobre quem não recaem quaisquer suspeitas na história em apreço, confessa ao colega um projecto em vias de conclusão para rebentar um infantário à bomba, a título de alerta para as alterações climáticas e o “genocídio” em Gaza. Imagine-se que a gravação é rápida e ilicitamente entregue aos media, que a difundem. Imagine-se o que aconteceria, logo de seguida, num país normal. E imagine-se o que aconteceria em Portugal.

Num país normal, além da extraordinária repercussão na opinião pública, as forças de segurança tratariam imediatamente de deter o sujeito em questão, obrigá-lo a denunciar possíveis cúmplices e, claro, anular o plano, impedir o atentado e salvar as criancinhas. Em Portugal, semelhantes minudências passariam para segundo plano: a reacção prioritária seria encher os estúdios televisivos e as colunas dos jornais de comentadores com ambições políticas e políticos a fingir de comentadores, todos indignadíssimos com a fuga do segredo de justiça, o comportamento inaceitável do Ministério Público e a necessidade de, acima de tudo, resgatar o bom nome do candidato a bombista, entretanto arrastado pela lama. No que dependesse desses vultos da ética, as criancinhas não teriam hipótese.

O exemplo é caricatural e grotesco? É. Gosto de caricaturas grotescas, inclusive caricaturas grotescas de “pessoas sérias”, que andam por aí de dedinho em riste a condenar a “descredibilização da classe política” e o “ataque cerrado” à “confiança nas instituições”. Note-se que a “confiança nas instituições” não é minada porque uma casta sem escrúpulos coloca o poder ao serviço dos seus excelsos interesses. Não, senhor. A “confiança nas instituições” só corre riscos se as trafulhices são divulgadas. A “ética” de que a casta fala não se aplica aos actos, e sim à ocultação, ou à revelação, dos ditos. Parece Kant, mas é “cant”, a palavra inglesa que significa o recurso insincero a sentimentos virtuosos, ou a pura hipocrisia. A palavra aplica-se com frequência ao linguajar do submundo.

Se quiserem, substituam o ataque ao infantário por um ataque mais meigo e plausível. Ao erário público, por exemplo. Imagine-se então que o dr. Costa era escutado a informar o ministro Galamba do despedimento à bruta e por “justa causa” da presidente da TAP, de modo a poupar ao governo as maçadas subsequentes à indemnização da famosa engenheira. Imagine-se os milhões que a senhora francesa reclama ao Estado (seis). Imagine-se os milhões antes aprovados por WhatsApp (meio). Imagine-se os milhares de milhões assim pulverizados nos divertimentos com a “companhia de bandeira” (três ou quatro). Para os porta-vozes da casta, perdão, os comentadores isentos da esquerda à “direita” (risos), as escutas deveriam ter sido destruídas, dado que, esclarecem, não aludem ao processo investigado e não contêm “qualquer relevância criminal”. Pois não. Desviar dinheiro dos contribuintes para obter benefícios partidários não é sequer um pequeno delito: é um direito da casta, legitimado pela jurisprudência, quiçá o usucapião.

Francisco Mendes da Silva, funcionário da casta e rapaz simpático, apareceu-me no Twitter a chamar ao episódio “um sintoma de uma cultura insuportavelmente anti-democrática”. Tendo a concordar. O que nos distingue é ele achar que o problema está na Justiça, que verte para o exterior, cito, “conversas políticas”, e eu achar que o problema está nos políticos, que confundem conspirações ilícitas com diálogos triviais, privacidade com imunidade, política com impunidade. E democracia com privilégio. Sem se rir, o Francisco queixa-se de que a Justiça é “insindicável” – e não, ele não deseja, ou pelo menos não diz desejar, que a Justiça seja “sindicável” pela restante parelha de poderes. O que ele deseja é que o jornalismo escrutine a Justiça como, deduz-se, escrutina a política. Escrutinar a política? Em Portugal? O Francisco tem graça. Se lhe coubesse decidir o caso Watergate, que saiu barato por comparação com a TAP, o Francisco fechava o Washington Post, lançava o Garganta Funda nas masmorras e atribuía uma comenda a Nixon.

Aliás, também é engraçado reparar que a aversão do Francisco e dos seus parceiros de ofício à “excessiva” independência judicial termina quando o alvo das investigações e dos eventuais abusos é o cidadão “comum” ou, vá lá, um político que a ortodoxia repute de “extremista”. Por alguma razão que me escapa e que com certeza é de uma imaculada nobreza, essa rapaziada apenas defende pro bono os membros da casta. E acrescente-se que a defesa tem resultado: apesar das tenebrosas perseguições a cargo de juízes ressentidos e “insindicáveis”, a casta continua aí, resistente e heróica, a sofrer martírios enquanto espalha rigor, honestidade e valores democráticos com abundância. Imagine-se o que aconteceria se os juízes tivessem trela. Imagine-se o leite e o mel da democracia a transbordar. Imagine-se a Venezuela.

JUSTIÇA     CORRUPÇÃO     MEDIA     SOCIEDADE

COMENTÁRIOS (DE 11)

observador censurado: O governante que colocou a bomba no infantário e matou as criancinhas não vai preso porque não se pode utilizar as escutas? As criancinhas irão morrer em vão?

Eduardo Cunha: Excelente crónica...

F. Mendes: Um excelente artigo, sobre um tema relevante. Comento assim: 1. Basta termos em mente que um ex-PM socialista, manifestamente corrupto, está para ser julgado vai para 10 anos. Como se isto não fosse, em si, já demasiado grave, o Costa foi ainda pior do que ele; e safar-se-á da Justiça, caso os fumos relativos à exploração de lítio se dissipem no tempo, prometendo continuar as patifarias na "Óropa". Logo, é "normal" que a oligarquia que tanto condiciona a Justiça, pretenda continuar a condicioná-la. Nada de novo aqui, infelizmente. 2. O Mendes da Silva é o proverbial "idiota útil", na versão de comentadeiro avençado. Ouvi-o uma vez, e chegou. 3. Devemos ficar atentos ao desenvolvimento do caso BES-Manuel Pinho, aceitando-se apostas sobre o número adicional de recursos a apresentar depois das condenações a prisão efectiva. Os interessados devem contactar o escritório do Xico Proença de Carvalho, que anda entusiasmadíssimo com os honorários a cobrar e pagos com o nosso dinheiro! 4. Devemos preparar-nos para ouvir os comentários futeboleiros do "prof."  Marcelo, caso a Selecção não dê barraca na fase de grupos. O homem deve andar cheio de vontade de falar sobre qualquer coisa, dado manter o bico de papagaio fechado sobre o caso das gémeas vindas do Brasil, para beneficiarem das nossas reparações às antigas colónias. Finalmente, percebi que os 4 milhões foram uma espécie de adiantamento. Temos que o aguentar durante mais 21 meses, caso não o reformem por manifesta incapacidade para o cargo!

Rosa Lourenço: Infelizmente até está bem "humorizado" o desenrolar de acontecimentos em Portugal. Quando será que a Comunicação Social se tornará um meio de exigência democrática na sociedade? Quando será que a Dignidade, a Justiça, a Liberdade, a Responsabilidade e a Independência entre os poderes constitucionais coexistirão em harmonia? Os portugueses merecem.

André Ondine: O tal Francisco é, de facto, simpático e até tem um gosto musical muito recomendável (pelo que vejo no Twitter), mas é um dos comentadores trendy da lavra Lux. Tal como o amigo Marques Lopes, pela-se por agradar os amigos da nova esquerda. É um daqueles comentadores de direita (diz ele) que a nova esquerda adora. O citado Marques Lopes é outro exemplo e o exemplo maior é o guru Pacheco Pereira que não faz parte da pandilha do Lux, mas que, suspeito, só porque o porteiro não o deixa entrar… Foi curioso ver a indignação da pandilha neste caso das escutas ao Habilidoso. Indignaram-se com as escutas e esqueceram o conteúdo, que torna evidente o carácter maquiavélico do Sr Costa. Mais uma vez, deu ordens para sacrificar e humilhar uma pessoa em nome da manutenção do seu poder. Mas isso não move a pandilha comentadora. O que interessa mais um sacrifício de alguém para manter o poder Habilidoso?? Nada. O omnipresente (mais um…) Daniel Oliveira está é zangado com a escuta. O Francisco, o Marques Lopes e o Pacheco também estão zangados. Furiosos. Quanto apostam que se o escutado fosse Passos Coelho ou Cavaco, esta pandilha não estaria assim tão zangada com as escutas? Pelo contrário, adivinho, esqueceriam este atentado monumental à democracia e seriam os primeiros a mostrar a sua indignação pelo que as escutas revelavam. A pandilha comentadora do regime está sempre indignada com o que lhe dá jeito. É pena que nunca se indignem com o seu próprio comportamento que é, de facto, indigno e indecente. Protegem-se uns aos outros e promovem-se uns aos outros. E assim vão sobrevivendo, poluindo drasticamente o espaço mediático.

Antonio Serrano: Bem estruturado e assertivo li com agrado e proveito.

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