Retrato bem nosso, hábeis que somos na
virtude das palavras, a especulação sobrepondo-se, em nós, à acção, está visto.
Também, se não fosse assim, não teríamos o prazer de ler as crónicas da minúcia
brilhantemente satírica de AG, que Deus proteja por longos anos, a informar e a
divertir, mesmo em esgares sombrios...
A casta do castelo
A “confiança nas instituições” não é
minada porque uma casta sem escrúpulos coloca o poder ao serviço dos seus
excelsos interesses. Não, senhor. Ela só corre riscos se as trafulhices são
divulgadas.
ALBERTO GONÇALVES Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 22
jun. 2024, 00:206
Imagine-se
que os telefonemas de um governante são escutados pela polícia a pretexto de
suspeitas de tráfico de influências e corrupção. Imagine-se
que, num dos telefonemas, o escutado conversa com outro governante e este, sobre quem não recaem quaisquer
suspeitas na história em apreço, confessa ao colega um projecto em vias de
conclusão para rebentar um infantário à bomba, a título de alerta para as
alterações climáticas e o “genocídio” em Gaza. Imagine-se que a gravação é rápida e ilicitamente entregue aos media,
que a difundem. Imagine-se o que aconteceria, logo de seguida, num
país normal. E imagine-se o que aconteceria em Portugal.
Num
país normal, além da extraordinária repercussão na opinião pública, as forças
de segurança tratariam imediatamente de deter o sujeito em questão, obrigá-lo a
denunciar possíveis cúmplices e, claro, anular o plano, impedir o atentado e
salvar as criancinhas. Em Portugal, semelhantes minudências passariam para
segundo plano: a reacção
prioritária seria encher os estúdios televisivos e as colunas dos jornais de
comentadores com ambições políticas e políticos a fingir de comentadores, todos
indignadíssimos com a fuga do segredo de justiça, o comportamento inaceitável
do Ministério Público e a necessidade de, acima de tudo, resgatar o bom nome do
candidato a bombista, entretanto arrastado pela lama. No que
dependesse desses vultos da ética, as criancinhas não teriam hipótese.
O exemplo é caricatural e grotesco?
É. Gosto de caricaturas grotescas, inclusive caricaturas grotescas de “pessoas
sérias”, que andam por aí de dedinho em riste a condenar a “descredibilização
da classe política” e o “ataque cerrado” à “confiança nas instituições”. Note-se que a “confiança nas
instituições” não é minada porque uma casta sem escrúpulos coloca o poder ao
serviço dos seus excelsos interesses. Não, senhor. A “confiança nas
instituições” só corre riscos se as trafulhices são divulgadas. A “ética” de que a casta fala não se aplica aos
actos, e sim à ocultação, ou à revelação, dos ditos. Parece Kant, mas é “cant”, a palavra
inglesa que significa o recurso insincero a sentimentos virtuosos, ou a pura
hipocrisia. A palavra aplica-se com frequência ao linguajar do submundo.
Se
quiserem, substituam o ataque ao infantário por um ataque mais meigo e
plausível. Ao erário público, por exemplo. Imagine-se então que o dr. Costa era
escutado a informar o ministro Galamba do despedimento à bruta e por “justa
causa” da presidente da TAP, de modo a poupar ao governo as maçadas
subsequentes à indemnização da famosa engenheira. Imagine-se os milhões que a
senhora francesa reclama ao Estado (seis). Imagine-se os milhões antes
aprovados por WhatsApp (meio). Imagine-se os milhares de milhões assim
pulverizados nos divertimentos com a “companhia de bandeira” (três ou quatro). Para
os porta-vozes da casta, perdão, os comentadores isentos da esquerda à
“direita” (risos), as escutas deveriam ter sido destruídas, dado que,
esclarecem, não aludem ao processo investigado e não contêm “qualquer
relevância criminal”. Pois não. Desviar dinheiro dos contribuintes para obter
benefícios partidários não é sequer um pequeno delito: é um direito da casta,
legitimado pela jurisprudência, quiçá o usucapião.
Francisco
Mendes da Silva, funcionário
da casta e rapaz simpático, apareceu-me no Twitter a chamar ao episódio “um
sintoma de uma cultura insuportavelmente anti-democrática”. Tendo
a concordar. O que nos distingue é ele achar que o problema está na Justiça,
que verte para o exterior, cito, “conversas políticas”, e eu achar que o
problema está nos políticos, que confundem conspirações ilícitas com diálogos
triviais, privacidade com imunidade, política com impunidade. E
democracia com privilégio. Sem se rir, o Francisco queixa-se de
que a Justiça é “insindicável” – e não, ele não deseja, ou pelo menos não diz
desejar, que a Justiça seja “sindicável” pela restante parelha de poderes. O que ele deseja é que o jornalismo
escrutine a Justiça como, deduz-se, escrutina a política. Escrutinar a
política? Em Portugal? O Francisco tem graça. Se lhe coubesse decidir o caso
Watergate, que saiu barato por comparação com a TAP, o Francisco fechava o Washington
Post, lançava o Garganta Funda nas masmorras e atribuía uma comenda a Nixon.
Aliás, também é engraçado reparar que a aversão do Francisco e dos seus parceiros
de ofício à “excessiva” independência judicial termina quando o alvo das
investigações e dos eventuais abusos é o cidadão “comum” ou, vá lá, um político
que a ortodoxia repute de “extremista”. Por alguma razão que me escapa
e que com certeza é de uma imaculada nobreza, essa rapaziada apenas defende pro bono os membros da casta. E acrescente-se
que a defesa tem resultado: apesar
das tenebrosas perseguições a cargo de juízes ressentidos e “insindicáveis”, a
casta continua aí, resistente e heróica, a sofrer martírios enquanto espalha
rigor, honestidade e valores democráticos com abundância. Imagine-se o que
aconteceria se os juízes tivessem trela. Imagine-se o leite e o mel da
democracia a transbordar. Imagine-se a Venezuela.
JUSTIÇA CORRUPÇÃO MEDIA SOCIEDADE
COMENTÁRIOS (DE 11)
observador censurado: O governante que colocou a bomba no infantário e matou as criancinhas não
vai preso porque não se pode utilizar as escutas? As criancinhas irão morrer em
vão?
Eduardo Cunha: Excelente crónica...
F. Mendes: Um excelente artigo, sobre um
tema relevante. Comento assim:
1. Basta termos em mente que um
ex-PM socialista, manifestamente corrupto, está para ser julgado vai para 10
anos. Como se isto não fosse, em si, já demasiado grave, o Costa foi ainda pior
do que ele; e safar-se-á da Justiça, caso os fumos relativos à exploração de
lítio se dissipem no tempo, prometendo continuar as patifarias na
"Óropa". Logo, é "normal" que a oligarquia que tanto
condiciona a Justiça, pretenda continuar a condicioná-la. Nada de novo
aqui, infelizmente. 2. O Mendes da Silva é o
proverbial "idiota útil", na versão de comentadeiro avençado. Ouvi-o
uma vez, e chegou. 3. Devemos ficar atentos ao desenvolvimento do caso BES-Manuel Pinho,
aceitando-se apostas sobre o número adicional de recursos a apresentar depois
das condenações a prisão efectiva. Os interessados devem contactar o escritório
do Xico Proença de Carvalho, que anda entusiasmadíssimo com os honorários a
cobrar e pagos com o nosso dinheiro! 4. Devemos preparar-nos para ouvir os comentários futeboleiros do
"prof." Marcelo, caso a Selecção não dê barraca na fase de
grupos. O homem deve andar cheio de vontade de falar sobre qualquer coisa, dado
manter o bico de papagaio fechado sobre o caso das gémeas vindas do Brasil,
para beneficiarem das nossas reparações às antigas colónias. Finalmente,
percebi que os 4 milhões foram uma espécie de adiantamento. Temos que o
aguentar durante mais 21 meses, caso não o reformem por manifesta incapacidade
para o cargo!
Rosa Lourenço: Infelizmente até está bem
"humorizado" o desenrolar de acontecimentos em Portugal. Quando será
que a Comunicação Social se tornará um meio de exigência democrática na
sociedade? Quando será que a Dignidade, a
Justiça, a Liberdade, a Responsabilidade e a Independência entre os poderes
constitucionais coexistirão em harmonia? Os portugueses merecem.
André Ondine: O tal Francisco é, de facto,
simpático e até tem um gosto musical muito recomendável (pelo que vejo no
Twitter), mas é um dos comentadores trendy da lavra Lux. Tal como o amigo
Marques Lopes, pela-se por agradar os amigos da nova esquerda. É um daqueles
comentadores de direita (diz ele) que a nova esquerda adora. O citado Marques
Lopes é outro exemplo e o exemplo maior é o guru Pacheco Pereira que não faz
parte da pandilha do Lux, mas que, suspeito, só porque o porteiro não o deixa
entrar… Foi curioso ver a indignação da pandilha neste caso das escutas ao
Habilidoso. Indignaram-se com as escutas e esqueceram o conteúdo, que torna
evidente o carácter maquiavélico do Sr Costa. Mais uma vez, deu ordens para
sacrificar e humilhar uma pessoa em nome da manutenção do seu poder. Mas isso
não move a pandilha comentadora. O que interessa mais um sacrifício de alguém
para manter o poder Habilidoso?? Nada. O omnipresente (mais um…) Daniel Oliveira está é
zangado com a escuta. O Francisco, o Marques Lopes e o Pacheco também estão
zangados. Furiosos. Quanto apostam que se o escutado fosse Passos Coelho ou Cavaco, esta
pandilha não estaria assim tão zangada com as escutas? Pelo contrário,
adivinho, esqueceriam este atentado monumental à democracia e seriam os
primeiros a mostrar a sua indignação pelo que as escutas revelavam. A pandilha
comentadora do regime está sempre indignada com o que lhe dá jeito. É pena que
nunca se indignem com o seu próprio comportamento que é, de facto, indigno e
indecente. Protegem-se uns aos outros e promovem-se uns aos outros. E assim vão
sobrevivendo, poluindo drasticamente o espaço mediático.
Antonio Serrano: Bem estruturado e assertivo li com agrado e proveito.
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