terça-feira, 11 de junho de 2024

Uma pena


Era em Figueiró dos Vinhos que o programa estava a decorrer ontem, no Primeiro Canal, Canal Nacional, com cantares e danças e talvez comidas. Abri nesse instante em que uma jovem escalava uma alta rocha, que nem fixei bem, pois que, enquanto ela descia, segura na corda esticada, apareceu no écran, à direita, o seguinte escrito, nesse dia dez de Junho - Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades – neste ano 2024 d.C, segundo o calendário gregoriano da nossa orientação temporal:

OS LUSÍADAS relatam os DESCOBRIMENTOS de PORTUGAL no MUNDO”.

Foi a frase do meu espanto indignado, que, das viagens sucedidas nessa narração épica - estudada desde os tempos do liceu, em leitura não integral, é certo, mas completada, eventualmente, em curiosidade própria - apenas considerava como “plano viageiro” o referente à aventura marítima do Gama até à “terra de Calecu” (segundo a alegre designação do piloto melindano), plano entretecido ocasionalmente pelos outros – da História de Portugal, dos Deuses e o plano pessoal, dos excursos próprios do sujeito narrativo - Camões, tout court.

De facto, tal frase não era prevista, muito menos num Canal Nacional, que parece que pagamos todos, e mesmo que fosse à borla, não se admitiria, menos ainda nesse dia 10 de Junho, dia de Portugal, dia do pobre Camões assim envilecido, no seu muito saber e no seu extraordinário talento de contador de uma história heróica, que pressupõe uma viagem longa e acidentada, com fantasias pelo meio, quer da referência mítica, onde se incluem os vaticínios do Adamastor, ou o canto de exaltação da “bela ninfa” a feitos portugueses posteriores ao Gama – (já que os relatos do Gama ao rei de Melinde se circunscrevem antes a um plano da história de Portugal do Gama conhecida) - de vice-reis, como Afonso de Albuquerque, tudo isso complementado pela extensa fala de Tétis sobre a “Máquina do Mundo”, de extraordinária dimensão narrativa, subentendendo conhecimento astral de uma amplitude e engenho perfeitamente grandiosos.

Não, uma tal obra, de tão extrema amplitude, não devia ser assim conspurcada, com tão pérfida referência de absoluta falsidade – “OS LUSÍADAS relatam os DESCOBRIMENTOS de PORTUGAL no MUNDO” - porque se circunscrevem apenas ao descobridor do caminho marítimo da Índia, as referências contidas nas ameaças do Adamastor ou no canto da ninfa sendo sintéticas ou mesmo vagas.

Como foi possível tal dislate? Camões não merece um abocanhamento tão futilmente vergonhoso. Ou seremos nós que não merecemos Camões… Revivamo-lo na sua dor:

«Nô mais, musa, nô mais, que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
D
ũa austera, apagada e vil tristeza. (X, 145)»

Neste caso nacional, a tristeza da nossa ignara arrogância e descaramento sem pejo.

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