Da agricultura portuguesa.
De facto, não tem sido assunto da comunicação social. Pelos vistos, novas
perspectivas se abrem ao desenvolvimento agrícola. E a imagem das nossas
tradições nesse capítulo, quer do pequeno ou médio agricultor da jorna diária
cavando e regando as suas terras, ou do carro de bois atulhado dos produtos da
sua safra, ou dos cantares das mulheres nas ceifas e nas desfolhadas, como
líamos em Júlio Dinis, foi certamente substituída, talvez vantajosamente para o
nosso país modernizado, em que os filhos dos agricultores, seguem estudos no
país ou no estrangeiro, abandonando as courelas paternas.
Gostei do texto de Miguel Miranda, que nos mostra outros esquemas
mais rentáveis da produção agrícola nacional, embora ainda se continue a
produzir os milhos e as couves nas terras que conheci, servidas, hoje, pela
auto-estrada.
Orgulho e preconceito
Porque é que
não mostramos satisfação com o contributo crescente da produção alimentar
nacional? Aparentemente, porque quem está a aumentar a produção agrícola não
são os “verdadeiros agricultores”...
MIGUEL MIRANDA Geofísico, antigo presidente do
IPMA
OBSERVADOR; 12 jun. 2024, 00:17
Uma das questões que sempre me
intrigou foi a falta de orgulho no que os empresários agrícolas portugueses têm
alcançado nos últimos anos. Penso que nunca vi um dirigente político de
primeira linha chegar à televisão, em “prime time”, e dizer com orgulho que o
mundo agrícola português conseguiu alcançar este ou aquele resultado.
Apesar do
desinteresse geral, alguma coisa está a acontecer. Lenta, mas inexoravelmente,
verifica-se uma mudança na estrutura da propriedade e da produção agrícola. As
unidades agrícolas são progressivamente maiores e progride a organização
empresarial. Aumentam as culturas permanentes como o olival, o amendoal, as
culturas subtropicais e os pequenos frutos. Muito impulsionado pelo Alqueva,
mas não só, Portugal é autossuficiente em azeite desde 2014, e já é o 6º maior
produtor mundial, com exportações sempre crescentes em valor. Na amêndoa somos
já o sexto produtor mundial e a margem de progressão está assegurada nos
próximos três anos.
Francisco
Avillez, um conhecedor
profundo da economia agrária fez um balanço da evolução
da economia agrária nos últimos sessenta anos. Destaca os aspectos mais relevantes da década
2012-2022: “Enorme resiliência demonstrada pela agricultura
portuguesa face às sucessivas crises […] a sua capacidade para responder do
ponto de vista produtivo, tecnológico e estrutural aos desafios […] da qual
resultaram os mais favoráveis resultados económicos sectoriais e empresarias
das últimas décadas.” Sublinha na conclusão de que
o processo de inovação é, na última década, o principal responsável pela
melhoria significativa observada no desempenho económico, a par da importância
das práticas agrícolas ambientalmente mais sustentáveis.
Estamos assim longe do tempo
em que se afirmava a eito que o problema da agricultura portuguesa era a União
Europeia, porque desincentivava a produção. Que os subsídios só serviam para
destruir a capacidade agrícola, antes florescente. Que já não éramos capazes de
produzir o que comemos. Sendo assim, os resultados alcançados pelas empresas
agrícolas na última década, deveriam ser um motivo de grande satisfação
nacional. Não são.
Porque é que não podemos mostrar satisfação com o contributo crescente da
produção alimentar nacional? Aparentemente, porque quem está a conseguir
aumentar a produção agrícola não são os
“verdadeiros agricultores”, mas o famigerado agronegócio, que encara a
agricultura como uma oportunidade para “ganhar dinheiro” e apenas se concentra
nas culturas mais rentáveis e não naquelas que o imaginário coletivo associa à
tradição agrícola do país.
Mais um pecado que se junta aos dois braços da cruz que os empresários
agrícolas têm de carregar: a condução
intensiva e o esbanjamento de água.
Uma passagem
mesmo breve pelos jornais ou pelas páginas da internet não parece deixar
dúvidas: as empresas agrícolas estão a tomar conta do mundo rural,
destroem os solos e gastam água sem amanhã. Iniciativas
como o Alqueva são mais prejudiciais do
que benéficas e acentuaram a velocidade com que a agricultura “verdadeira” está
a desaparecer. É assim normal que surja a indignação, e que os dirigentes
políticos, sempre cautelosos, mantenham reserva.
Para muitos o orgulho está num
passado onde a fome grassava nas aldeias e nas herdades. Outros imaginam as
virtudes da vida pobre, com a família reunida à noite à luz da candeia, outros
acham que a boa agricultura é a dos pequenos produtores que amanham uma pequena
courela de terra para sobreviver. Os mais sofisticados idealizam uma parte dos
portugueses a viver nas zonas rurais à custa do pagamento dos “serviços do
ecossistema”. Os recursos para tal viriam seguramente do milagre europeu, ou do
poço sem fundo do Orçamento de Estado.
Felizmente o
futuro não passou por aí. A agricultura industrializada é hoje mais eficiente e
a especialização em culturas mais rentáveis permite compensar algumas das
deficiências estruturais como a qualidade dos solos e a fisiografia difícil. É
claro que uma exploração dirigida de forma predatória pode conduzir ao que os
geólogos chamam “lavra gananciosa”, e esgotar rapidamente os recursos que a
tornaram viável. Em
todas as situações o uso displicente da água na produção agrícola é um crime
ambiental e económico. Contudo, no espaço europeu e numa escala como a
portuguesa, os organismos reguladores têm a obrigação de supervisionar com
transparência ambas as práticas e prestar aos cidadãos informação verdadeira e
representativa. O papel da monitorização rigorosa deve ser acautelado. O
acompanhamento do impacto social das mudanças que estão a ter lugar tem igual
importância.
A condução de um
modo de produção agrícola de “precisão”, com mais tecnologia e uma utilização
muito controlada de água, exige uma capacidade financeira significativa que só
pode ser alcançada por actores económicos relevantes ou por associações
competentes de produtores. Tem todos os riscos de qualquer atividade económica,
quando se expõe ao mercado, a que se somam os riscos provenientes da
dependência do mundo natural. Foi já percorrido um longo caminho de
reorganização e modernização e a agricultura é hoje um universo tão inovador
como a indústria ou os serviços. Existe um futuro possível e há quem o esteja a
trilhar.
Todas os
pontos de vista devem ser ouvidos e todos são importantes. Temos de dar margem
à contestação, e a diversidade de opiniões faz parte da construção democrática
das decisões colectivas, mas não podemos ter a memória do peixe encarnado,
sempre à volta, confundindo o seu aquário com o mundo. Devemos ter orgulho nos
empresários agrícolas portugueses. Tudo o resto são preconceitos.
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