Este texto de Maria João Avillez,
não só pelo seu refazer pessoal “in loco” da vasta “caminhada” marítima de antigos
“barões assinalados”, como pelo esplendor de uma linguagem com os seus travos
poéticos de envergadura, a condizer com os do Poeta festejado, como pelo
espírito de exaltação desse que foi maior – julgo que o maior em dimensão:
poética, historiográfica, criadora de entrechos e conceitos, em suma, de
extrema abrangência histórica e cultural, para além da cadência rítmica dos
seus decassílabos de tanta maviosidade e riqueza esplendorosa, em criatividade,
conceito e forma.
Lembro, entretanto, um
texto que li de Miguel Esteves Cardoso, do “Público” de 9 de Junho, que me
ficou atravessado, pela leviandade de um julgamento de alguém que se julga
superior nos seus comentários de experiências de vida ligeiros e mesmo, por
vezes, fanfarrões, a querer distanciar-se desses portugueses a que só pertence
em parte, dada uma ascendência materna britânica, segundo leio na Internet, que
julgo favorecer essa vaidade e arrogância distante e farfalhuda, texto seu que
começa assim:
“Se calhar, é preciso ser-se português para ter a certeza de que Camões é o
melhor poeta que alguma vez existiu. // Isso apenas significa que a grandeza da
poesia dele só se mostra inteiramente na língua em que foi escrita….” e o
semeia de ironia que supõe
arrasadora, sem conseguir demonstrar a sua opinião desfeiteadora.
Sim, Camões é um poeta
superior, MEC não deve ter dúvidas disso. Como poeta lírico e épico, na exaltação
emotiva de configuração clássica, pressupondo estudo de antecessores primeiros,
e de antecessores segundos, já renascentistas, nesse seu discurso naturalmente
mais expressivo na língua original, segundo a fórmula infelizmente certeira do “tradutore traditore”. MEC aplica ao seu
discurso de rebaixamento trocista dos tais portugueses que se atribuem valores
exagerados, uma espécie de desígnio exaltado de tipo futebolístico, em que
aqueles se acham “os melhores do mundo”
como desforço da sua mediania como povo.
Mas antes de pretender
ironizar, poderia ler Camões de facto, e achar que uma obra como “Os Lusíadas” - quer pelo assunto, quer
pelo entrecho variado do encadeamento narrativo, quer pelo saber revelado, nas
histórias que conta desse país com história, quer pela grandeza de conhecimento
traduzido, que se alarga até ao conhecimento astral, quer pela criatividade de
um entrecho humano e mitológico, quer pelos excursos pessoais de um sentimento
crítico e tantas vezes demonstrativo de dor pessoal, provinda da relação
humana, quer, em suma, no equilíbrio de uma estrutura formal as mais das vezes
de admirável força poética – uma tal obra merece um primeiro lugar, sim, entre
as literaturas mundiais. O que não merece é a falsa superioridade trocista de
um qualquer crítico de meia tigela.
Mas o texto seguinte, de Maria João Avillez, cobre, afinal, o desprazer da leitura desse texto artificioso e vão:
Tanto Portugal tão longe
O século XVI foi português, Portugal esteve, para o bem e para o mal, pelas
lonjuras do mundo. Ter-me apercebido disto, tê-lo visto com os meus olhos, foi
um dos maiores presentes que a vida me deu.
MARIA JOÃO
AVILLEZ
Jornalista, colunista do Observador
OBSERVADOR, 19 jun. 2024, 00:2014
a Luís Vaz de
Camões
1Quando por vezes me convidam para ser a
contadora de alguns lugares e mundos aos quais – estou disso certa – devo
grande parte do meu modo de ser e fazer, ninguém adivinhará a dificuldade da
empreitada. Desde logo porque me impõe um convívio com a memória após tantas e
tão fecundas deambulações pelas sete partidas. Exercício, como se sabe
delicado, este, de deixar soltar a memória por aí fora, sem rédea, nem rede.
Depois, porque como sou de mais de uma pertença, nunca me surge como tarefa
fácil o contar que se pode com naturalidade e felicidade, pertencer a mais de
um lugar. Depois ainda, porque se trata de uma viajem a qual, amparada nesse
convívio com a memória, é, como disse um
dia a maravilhosa Nélida Pinon, um “delicado e incerto ofício que conta apenas
com a palavra”.
Ora encontrarei eu as palavras exactas,
límpidas, para voltar á vertigem e a fortuna da viagem?
2Foi pelo sul que abri a descoberta e pelo sul que
caminhei.
Calhou-me assim em sorte uma luz que
cedo me predispôs o olhar para a transparência dos lugares e das paisagens
desse sul. Fui desde logo solicitada para essa espécie de claro relevo na rota
do calor, para a exuberância dos verdes, o cheiro acre da terra sob a chama do
sol, para corpos mais nus que vestidos, dias mais longos, noites mais breves. E
por sobre tudo isso, céus sempre mais estrelados, que quaisquer outros céus.
Numa espécie de sagrada harmonia entre as coisas, as pedras, os seres e os
lugares. Falo e não por acaso de lugares,
porque foi por eles que comecei, foram eles que tiveram a primazia na
curiosidade e no afã do meu correr.
Só depois os seus habitantes ilustraram,
ocuparam, a viagem. Eram as traves mestras, mas quem os precedia era a
luminosidade, o perfil da pedra tingido pelo sol, a superfície liquida de mares
e dos rios, a planura das areias, o recorte da paisagem, os embondeiros, as
palmeiras, as mangueiras. O Atlântico e o Índico. A geografia, portanto. A do maior dos poetas. Esses mares de Luís Vaz de Camões e a
desmesura da gesta portuguesa que nos deixou o génio da sua pena.
E
depois havia a derisória nostalgia de tudo isto, como se eu já lá estivesse
estado, como se de cada vez ocorresse um singular reencontro de mim com tais
lugares onde nunca fora mas parecia afinal que tão bem conhecia.
3Fui
pelas savanas de África e pelos morros do Brasil e pelos cheiros da India. Fui
e encontrei a altaneira torre portuguesa da branca Arzila, à beira de Marrocos;
vislumbrei uma praia com sete ondas em S. Tomé e conheci a solidão sem limite
da ilha do Príncipe; descobri a lendária Ajudá no escondido Benim, e mais
abaixo a cidade de S. Salvador de Luanda, na orla do Atlântico sul; do outro
lado de África vi a incomparável dimensão do Forte de Jesus, em Mombaça: e
ainda no Índico, em Quíloa, nessa já orientalizada África que é a Tanzânia,
curvei-me perante a memória de D. Francisco de Almeida que lá levantou pedras
em nome de Portugal e consta que nasceu uma fortificação em apenas vinte e três
dias. E depois, parti em busca do ruído alucinante de Bombaim, a prenda de
Portugal aos ingleses por mor de um casamento real; fui atrás das quietas águas
de Cochim onde morreu Vasco da Gama e dos arrozais de Goa, entrecortados ao
longe pela mancha das brancas igrejas, há sempre brancas igrejas ao longe de
Goa; procurei a cidade espraiada de Malaca onde está a impressiva Famosa, que é
nome de Fortaleza; entristeci sob o crepúsculo de Dakha nesse desolado
Bangladesch e inebriei-me com a noite tão quente de Banguecoque. E
tudo isto – e porque em tudo isto esteve o poeta em corpo e alma – com Luís Vaz
de Camões no pensamento. Cinco séculos
antes de mim também aqui andou nestes mesmíssimos lugares e também descobrindo
mais Portugal que se ia fazendo tão longe. Por vezes acudiam-me estrofes,
passagens, momentos desses Lusíadas que tudo cantaram da nossa saga pelo desconhecido.
Mas tão impressos estavam por vezes esses versos no que eu via e ouvia que era
como se subitamente os ponteiros do tempo andassem para trás e Luís de Camões
andasse comigo pelas águas daquele Indico
Também
rumei a ocidente deste sul, circulando por vários Brasis. Cada um deles com o
seu específico coração e uma identidade própria mas todos unidos pelo
denominador comum da língua que é a nossa. E mais adiante, aportei á Colónia do
Sacramento, florida de hibiscos e banhada por esse rio de enganos que é o Rio
da Prata, um pedaço do Uruguai que mais se assemelha afinal nas suas linhas, a
um perdido e amoroso canto de Portugal.
Parti
sempre em busca da nossa impressão digital e do que dela hoje resta e
espantosamente em todo o lado a encontrei. Fui onde me levaram esses sinais,
marcas e marcos; parti cinco séculos depois, passageira dessas mesmas caravelas
de tão estranho desígnio, dos portugueses das sete partidas.
4Parti dez vezes, vinte vezes, todas as
vezes, e sempre descendo a sul. Vi
gente em Malaca que misteriosamente persiste hoje em rezar, falar ou cantar na
nossa língua, e que também aprecia cozinhar em português. E quando atónita lhes perguntei porquê,
responderam-me com Afonso de
Albuquerque e
soletraram-me a data de 1511; vi na Igreja do Santo Rosário de Daka, no improvável
Bangladeche, imagens e ornamentos religiosos levados de Macau ou da India, por
mãos que só podiam ser lusas; vi grandes arquivos impressos na minha língua, no
Paço Episcopal de Cochim; vi em S. Luís, terra do Maranhão, em chão brasileiro
um grande mural representando o Terreiro Paço antes do terramoto de 1755; no
Estado de Minas Gerais, vi na cidade de Ouro Negro, pequena-grande jóia branca
puramente decalcada de cidades nossas mas foi, recordo-me bem, na açoriana Angra
do Heroismo que pensei; e no Rio de Janeiro, no Real Gabinete de Leitura, vi a
formidável biblioteca que lá deixou o D. João VI e chorei diante da
impressivíssima talha doirada, estonteantemente barroca, dos altares do
Mosteiro beneditino de S. Bento do Rio, uma quase cópia da nossa Madre de Deus,
com as suas obras primas de ourivesaria; na pequena povoação tailandesa de
Ayuttháya, vi as ossadas de alguns religiosos portugueses agora já
cuidadosamente acondicionadas em digna morada á beira da Igreja de S. Domingos,
templo erguido em 1566, por dois sacerdotes portugueses; em todas as partes
ouvi muito falar deste ocidental canto da Europa de onde somos e de onde
partimos. Em Mombaça,
em Ajudá ou na Malásia e, em muitos lados, vi anónimos Baptistas, Fernandes,
Silvas e Sousas, inscritos na frieza de pedras tumulares. Vi, na sexta feira da Paixão de uma
Páscoa que jamais, jamais esquecerei, milhares e milhares de fieis em procissão
atrás da Confraria da Rainha do Rosário, fundada nos idos de seiscentos, na
Ilha das Flores, da remotíssima Indonésia. Fieis que exigem manter intactos alguns dos nossos ritos, rituais e
costumes e ainda usam hoje, na linguagem corrente da pequena ilha, muitos
vocábulos da nossa língua. Ouvi
suplicar bolsas de estudo para aprender português em Portugal, ouvi de todos os
lados do mundo, pedir livros, receitas de cozinha, letras e músicas do nosso
folclore; perguntarem-me pelo Benfica; escutei alguém em Moçambique a insistir
com urgência na reconstrução da mágica Ilha do mesmo nome. Por todo o lado
deparei com gente a reclamar-se naturalmente de uma herança, um património e um
passado que bem vistas as coisas, só parece afinal embaraçar-nos hoje a nós.
Manifestamente a muitos de nós. Não tem importância, talvez passe. Os Lusíadas
ficam.
As vezes perguntam-me: de que gostou
mais? Devo ter tido outras vidas, já que em África fui africana, no Brasil,
brasileira, e por aí fora, sou de muitas pertenças. Mas finalmente há alguma coisa que perdura e insistentemente
permanece em mim, agora que o tempo sedimentou descobertas e filtrou emoções.
Foi talvez essa ideia de que fomos melhor do que aquilo que pensamos que fomos.
Mas talvez tivesse que ser como S. Tome, “ver para crer”. Eu que já
“acreditava” antes de ver, quando vi, fiquei envolta pelo véu de uma gratidão
sem tamanho. O século XVI foi português, Portugal esteve, para o
bem e para o mal, em todas as lonjuras da carta do mundo. Ter podido
aperceber-me disto, tê-lo visto com os meus próprios olhos em cada solo dessas
lonjuras, constitui sem sombra de dúvida um dos maiores presentes que a vida me
deu.
Foram os meus Lusíadas.
Esta crónica recupera passagens de
uma outra que publiquei neste mesmo jornal, em 2015, a propósito dosseiscentos
anos da conquista de Ceuta
HISTÓRIA CULTURA VIAGENS ESCAPADINHAS LIFESTYLE LITERATURA DESCOBRIMENTOS
COMENTÁRIOS (DE 15)
Carlos Chaves: Obrigado, Maria João Avillez, por partilhar connosco
esse seu grande amor e orgulho, por Portugal, pelo nosso brilhante passado, e
pela marca única e indelével que deixámos neste mundo! Neste tempo actual em
que parecemos andar perdidos, alguns até querem que tenhamos vergonha do nosso
passado, mantenho a esperança de que voltemos a encontrar o nosso caminho,
honrando assim o nosso glorioso passado.
Fernando CE: Lindo, Maria João Avillez. Sou meio goês
meio europeu, nascido em Diu, filho de militar português e goesa descendente, brâmane. Vivi em Diu, Goa, Mocímboa da Praia,
ilha de Moçambique, Maputo (ex-Lourenço Marques) Luanda, Macau, Dili…e
recentemente visitei Malaca e Damão, além de Diu e Goa, onde pude viver e
sentir a presença de Portugal. Esqueceu-se de referir o imponente forte de Diu
e a suas igrejas, onde, numa fui baptizado… Em Damão no largo da câmara
municipal encontrei um homem, nos seus 30 anos, veio ter comigo ao saber-me
Português e disse-me orgulhoso, mostrando o seu cartão de cidadão português,
“sou português”! . Em Malaca no “bairro português” pude ver na varanda térrea
das vivendas modestas imagens de Nossa Senhora de Fátima, e por ser julho no
“largo dos restaurantes” , todo engalanado, onde se festejavam os “ santos
populares”. Ainda existe em Malaca além de ruínas de um forte português, uma
pedra com o brasão de Portugal, uma réplica em madeira e tamanho natural de uma
caravela portuguesa… Os meus
parabéns por esta crónica e o meu orgulho de pertencer à alma portuguesa
celebrada pelo nosso imortal Camões.
Jose Augusto Mira Pires Borges: Que maravilha de crónica! A descrição do orgulho de
ser português, de recordar quem somos e de onde vimos. E comparar esta soberba
descrição, com a ignorância dos que querem "reparar os males perpetrados
pela Nação Lusitana nos Descobrimentos"?
Rui Pessoa: Bela crónica. É sempre impressionante ler estas
crónicas sobre a história e a ousadia e valentia dos portugueses de então.
Quando hoje viajamos com enorme facilidade e rapidez por avião e chegamos
cansados, em viagens a países longínquos, podemos tentar imaginar como foi
possível que “ as cascas de noz, com valentes marinheiros lá tivessem chegado!
José Carvalho: Bela crónica, contando o que alguns não querem
conhecer. Desprezemos esses envergonhados do nosso passado, porque os factos
são o que são, e "para quem não quer, há muito"!
Maria Emília Santos Santos: Parabéns à Maria João pela linda crónica que escreveu! Também tenho orgulho do meu País, e espero que esta
onda de loucura desenfreada esquerdista e revolucionária para a catástrofe,
passe depressa!
Maria Madeira: Mais um belíssimo texto de M. J. Avilez a evocar os
maravilhosos territórios anteriormente
povoados por portugueses. Parabéns.
GateKeeper: Tantas Portuguesas e tantos Portugueses "tão
longe" !... Uma opção certeira para quem tem o tempo e o talento /
capacidade de trabalho a seu favor. É somente uma questão de bom senso e de
realismo objectivos que (n)os leva a partir. Regressar?! Por enquanto, não
consta do menu. Perante a patética e actual "patuleia" tuga [centrão
ps+ps2d oblige] devemos confessar que é com uma boa dose d'orgulho que
partimos. Estas "odes cantadas em Si bemol a um País que, na verdade, não
existe, diverte-nos deixando-nos calmos e seremos, fora do bananal tuga diário.
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