Ou seja, dividir para reinar, na insaciabilidade das ambições e na idiotia das vaidades dos poderes de longo alcance terráqueo. E afinal, para quê (?), na pequenez da condição humana…
A nova guerra dos 100 Anos
O verdadeiro teste para a Europa não será apenas travar esse avanço,
mas fazê-lo sem se dividir, justamente no momento em que a aritmética
estratégica lhe é mais favorável em toda a história moderna.
BERNARDO RIBEIRO DA CUNHA e MATEUS RIBEIRO DA CUNHA , Centro de
Análise D. Maria I
OBSERVADOR, 14 dez. 2025, 00:1113
Um recente artigo do “The Economist” argumenta que, ao ritmo de progressão actual
(de meados de setembro a outubro deste ano), o exército russo levaria cento e três (103) anos para ocupar
toda a Ucrânia. Para
conquistar o restante das quatro regiões reivindicadas por Moscovo – Luhansk,
Donetsk, Kherson e Zaporijia – precisaria de cerca de cinco anos,
pelo que somente em junho de 2030 conseguiria alcançar este objectivo.
O propósito do artigo é evidente:
demonstrar que a Rússia não está a “ganhar a guerra”
em termos clássicos, já que a progressão territorial é demasiado lenta para
tornar viável uma ocupação integral da Ucrânia.
Este raciocínio assenta, porém, num
pressuposto muito forte: o de que a Rússia pretende, de facto, ocupar toda a Ucrânia para, numa fase
ulterior do seu plano expansionista, se
voltar contra os países da NATO, começando
pela Polónia e pelos Estados bálticos.
Há, no entanto, vários elementos que não encaixam nesta narrativa maximalista.
Uma correlação de forças estruturalmente desfavorável
à Rússia
É hoje dado adquirido que os
países europeus da NATO – mesmo sem contar com os EUA e o Canadá – têm
superioridade convencional global em relação à Rússia, quer em termos de base
económica e potencial industrial, quer na qualidade média de meios aéreos e
navais. Essa vantagem torna-se esmagadora quando se inclui o conjunto da
Aliança Atlântica.


Numa frase: mesmo sem o
apoio norte-americano, a Europa da NATO tende a superar a Rússia em capacidade
convencional à medida que o seu rearmamento se consolida; com os Estados Unidos
e o Canadá, a correlação de forças torna-se esmagadoramente favorável à
Aliança. Moscovo tem perfeita consciência desta assimetria e, precisamente por
isso, alterou recentemente a sua Doutrina Nuclear para admitir o emprego de
armas nucleares em resposta a um ataque convencional considerado “esmagador”.
Sinais de contenção
Em paralelo, há outros
dados comportamentais que não são compatíveis com a narrativa de uma guerra
orientada para a conquista total da Ucrânia e subsequente ataque à NATO.
Apesar de Kiev estar, desde o
início do conflito, sob o alcance directo dos mísseis russos, os centros máximos de poder ucranianos –
incluindo o parlamento e o palácio presidencial – não foram destruídos.
Moscovo insistiu, desde fevereiro de 2022, na designação de “Operação Militar Especial” e não de “guerra” em sentido
formal, não apenas por razões internas, mas também como sinal político de um
objectivo limitado no plano declarativo.
Este padrão sugere, ainda que
imperfeitamente, uma analogia com a
Guerra Austro-Prussiana de 1866, conhecida na época como Deutscher Bruderkrieg – a “guerra dos irmãos alemães”.
Chamou-se “guerra de irmãos” porque ambos os lados eram Estados
alemães: a Áustria (Império dos Habsburgos) e a Prússia, apoiadas por vários
reinos e principados de língua e cultura comuns. Para muitos contemporâneos, tratou-se
quase de uma guerra civil dentro do mundo alemão, não de uma guerra
“alemães vs estrangeiros”.
Apesar de dispor de superioridade tecnológica clara – simbolizada
pelo Dreyse Zündnadelgewehr, o fuzil de agulha de retrocarga que permitia uma cadência de tiro
muito superior à dos mosquetes austríacos – Bismarck
recusou ocupar Viena ou desmembrar o Império dos Habsburgos. Usou a
vantagem prussiana de forma limitada e cirúrgica para reconfigurar a arquitectura
de segurança no espaço alemão, expulsando a Áustria da Confederação Germânica e
criando uma nova ordem cujo centro passava por Berlim. O objectivo político foi a exclusão estratégica da
Áustria do núcleo alemão, não a sua destruição.
De modo análogo, a guerra
russo-ucraniana tem sido por vezes descrita como uma espécie de “guerra civil
eslava”, dadas as raízes históricas partilhadas, o lugar simbólico de Kiev na
génese do Estado russo e as extensas interligações humanas e culturais entre os
dois povos.
A analogia não apaga diferenças morais óbvias – a agressão é russa, a violação de fronteiras
reconhecidas é indiscutível – mas ajuda a pensar numa lógica de reconfiguração
de ordem regional, mais do que numa cruzada ilimitada.
E se o objectivo for outro?
A partir daqui, impõem-se uma
série de perguntas incómodas: E
se, afinal, o objectivo estratégico central de Moscovo for apenas manter a
Ucrânia fora da NATO? E
se, afinal, o objectivo for apenas impedir a integração plena da Ucrânia na UE?
E se, afinal, o essencial for evitar que a Ucrânia se transforme no
“porco-espinho de aço” de que Ursula von der Leyen tem falado repetidamente,
isto é, numa plataforma altamente armada da NATO no flanco ocidental russo?
Se estes forem, de facto, os
objectivos centrais do Kremlin, então a narrativa muda por completo.
Da guerra de conquista à guerra de negação
Nesse caso, a guerra deixaria de ser, em primeiro lugar, o prelúdio
plausível para uma marcha sobre Varsóvia ou Berlim e passaria a configurar-se
sobretudo como uma guerra de
negação: uma guerra destinada a impedir que o território
ucraniano se converta numa plataforma avançada de projecção de poder ocidental
sobre a Rússia.
Nesta leitura, o paralelismo
com o Deutscher Bruderkrieg torna-se intelectualmente fecundo. Também
hoje a Rússia pode estar a usar uma combinação de superioridade local (massa de artilharia, reservas humanas
mobilizadas, geografia) e brutalidade
táctica para forçar uma reconfiguração duradoura do estatuto da Ucrânia, sem que isso implique um plano operacional
realista para ocupar todo o país – quanto mais para enfrentar directamente
a NATO, onde a correlação de forças convencionais lhe é estruturalmente
desfavorável.
A “nova guerra dos 100 anos” sugerida pelos números do The Economist não
descreveria, portanto, um projecto coerente de conquista total da Ucrânia, mas
antes o risco de um conflito de desgaste prolongado, travado na fronteira entre
duas ordens de segurança incompatíveis.
Se for este o caso, as perguntas relevantes para a Europa deixam de ser
apenas: “Quando é que a Rússia será capaz de atacar a Polónia ou os Bálticos?”
e passam a incluir, de forma mais
honesta:
Que garantias mínimas de
não-alargamento da NATO para leste Moscovo poderia aceitar em troca de um
cessar-fogo ou de uma paz imperfeita – sem que isso destrua a credibilidade da
Aliança?
Que tipo de Ucrânia armada –
neutra, aliada, semi-aliada – a Europa considera sustentável a longo prazo,
sabendo que cada passo na direcção do “porco-espinho de aço” aumenta, do ponto
de vista russo, a percepção de ameaça e, portanto, o risco de escalada?
Quanto tempo pode a Rússia
manter um esforço de guerra em torno de 7% do PIB antes de o custo interno se
tornar politicamente explosivo – e quanto tempo estão as opiniões públicas
europeias dispostas a suportar um esforço de rearmamento minimamente simétrico
sem fracturas internas graves?
Vista desta forma, a “nova guerra dos 100 anos” não é,
necessariamente, uma guerra de cem anos de trincheiras na Ucrânia, mas uma
guerra de cem anos de orçamentos, indústrias, e doutrinas entre:
Uma Rússia demograficamente em
declínio, mas ainda disposta a aceitar custos materiais e humanos
elevadíssimos; e
Uma Europa/NATO estruturalmente muito
mais forte, mas politicamente fragmentada e hesitante no uso desse poder.
A linha de fratura não é apenas a frente de batalha no Dniepre; é o
confronto entre duas visões de ordem europeia – uma alargada e liberal, outra
organizada em esferas de influência exclusivas – que se chocam sem um mecanismo
estável de acomodação.
A ironia estratégica e o dilema europeu
A grande ironia estratégica é a
seguinte:
Quanto mais a NATO e a UE transformam a Ucrânia no tal “porco-espinho de
aço”, com sistemas avançados, munições em massa e integração operacional, mais
plausível se torna, aos olhos de Moscovo, a narrativa de que esta é uma guerra
existencial e de que um compromisso territorial limitado não basta;
Em simetria, quanto mais a Rússia insiste numa solução maximalista no
terreno e numa retórica de revisão da ordem saída de 1991, mais se consolida,
em Bruxelas e nas capitais europeias, a percepção de que só um reforço maciço e
duradouro das capacidades convencionais – essa nova corrida europeia a tanques,
artilharia, mísseis e defesa aérea – poderá garantir a paz.
A questão central
levantada pelo artigo do The Economist – a
aparente impossibilidade militar de uma conquista total da Ucrânia em prazos
politicamente relevantes – não
é, por isso, a prova de que a Rússia “não está a ganhar a guerra”, mas antes o
indício de que talvez essa nunca tenha sido a guerra que Moscovo pretende
ganhar. Se o objectivo for “apenas” travar a ocidentalização
plena e o armamento ilimitado da Ucrânia, isto é, impedir
que se consolide na fronteira russa o equivalente moderno ao “porco-espinho de
aço” de Ursula von der Leyen, então o
conflito aproxima-se muito mais do velho Deutscher Bruderkrieg: uma guerra entre “irmãos” para decidir quem
dita as regras de segurança no espaço comum, mais do que uma campanha de
conquista sem limites.
Nesta perspectiva, a guerra na Ucrânia só encontrará condições mínimas
para terminar quando forem simultaneamente atenuados os receios europeus e os
receios russos – isto é, quando se conseguir ancorar, em arranjos jurídicos e
militares verificáveis, um estatuto para Kiev que não seja percepcionado como
ameaça existencial por nenhum dos lados. Entre o
maximalismo moral e o minimalismo estratégico, o desafio europeu nesta “nova
guerra dos 100 anos” será precisamente esse: construir uma paz imperfeita, mas suficientemente estável para que a
superioridade estrutural da Europa e da NATO possa ser exercida como dissuasão,
e não testada em campo de batalha.
Entretanto, quanto mais tempo
perdurar a narrativa imperial russa que alimenta os receios estratégicos europeus
– narrativa que não coincide com a visão norte-americana, como se confirma na
recente National Security Strategy dos
EUA, onde a Europa figura em terceira prioridade, após o Hemisfério Ocidental e
a Ásia – mais se
aprofundarão as tensões internas na NATO e melhor posição negocial obterá
Moscovo. Porque, embora lento, o “rolo
compressor” – como tradicionalmente se chamou ao exército russo – continua a avançar alguns metros de
terreno e alguns pontos de pressão política a cada dia que passa.
O verdadeiro teste para a Europa não
será apenas travar esse avanço, mas fazê-lo sem se dividir, justamente no
momento em que a aritmética estratégica lhe é mais favorável em toda a história
moderna.
GUERRA NA UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO RÚSSIA-UCRÂNIA UNIÃO EUROPEIA
COMENTÁRIOS (de 13)
José B Dias; ... a
guerra na Ucrânia só encontrará condições mínimas para terminar quando
forem simultaneamente atenuados os receios europeus e os receios russos – isto é, quando se conseguir
ancorar, em arranjos jurídicos e militares verificáveis, um estatuto para Kiev
que não seja percepcionado como ameaça existencial por nenhum dos lados. Entre o maximalismo moral e o minimalismo estratégico. Mais uma vez algo que reputo de óbvio mas que as
emoções muito primárias, mantidas ao rubro por declarações guerreiras, bravatas
avulso e campanhas maciças de propaganda e manipulação, impedem tantos de ver e
entender. Folgo em ler por aqui
uma análise isenta e com origem em gente que sabe do que fala. Não deverão tardar a por aqui aparecer os
incondicionais da guerra e os usuais insultos e insinuações...
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