segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Bellum, bella


 Ou seja, dividir para reinar, na insaciabilidade das ambições e na idiotia das vaidades dos poderes de longo alcance terráqueo. E afinal, para quê (?), na pequenez da condição humana…

A nova guerra dos 100 Anos

O verdadeiro teste para a Europa não será apenas travar esse avanço, mas fazê-lo sem se dividir, justamente no momento em que a aritmética estratégica lhe é mais favorável em toda a história moderna.

BERNARDO RIBEIRO DA CUNHA  e  MATEUS RIBEIRO DA CUNHA , Centro de Análise D. Maria I

OBSERVADOR, 14 dez. 2025, 00:1113

Um recente artigo do “The Economist” argumenta que, ao ritmo de progressão actual (de meados de setembro a outubro deste ano), o exército russo levaria cento e três (103)  anos para ocupar toda a Ucrânia. Para conquistar o restante das quatro regiões reivindicadas por MoscovoLuhansk, Donetsk, Kherson e Zaporijiaprecisaria de cerca de cinco anos, pelo que somente em junho de 2030 conseguiria alcançar este objectivo.

O propósito do artigo é evidente: demonstrar que a Rússia não está a “ganhar a guerra” em termos clássicos, já que a progressão territorial é demasiado lenta para tornar viável uma ocupação integral da Ucrânia.

Este raciocínio assenta, porém, num pressuposto muito forte: o de que a Rússia pretende, de facto, ocupar toda a Ucrânia para, numa fase ulterior do seu plano expansionista, se voltar contra os países da NATO, começando pela Polónia e pelos Estados bálticos.

Há, no entanto, vários elementos que não encaixam nesta narrativa maximalista.

Uma correlação de forças estruturalmente desfavorável à Rússia

É hoje dado adquirido que os países europeus da NATO – mesmo sem contar com os EUA e o Canadá – têm superioridade convencional global em relação à Rússia, quer em termos de base económica e potencial industrial, quer na qualidade média de meios aéreos e navais. Essa vantagem torna-se esmagadora quando se inclui o conjunto da Aliança Atlântica.

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Numa frase: mesmo sem o apoio norte-americano, a Europa da NATO tende a superar a Rússia em capacidade convencional à medida que o seu rearmamento se consolida; com os Estados Unidos e o Canadá, a correlação de forças torna-se esmagadoramente favorável à Aliança. Moscovo tem perfeita consciência desta assimetria e, precisamente por isso, alterou recentemente a sua Doutrina Nuclear para admitir o emprego de armas nucleares em resposta a um ataque convencional considerado “esmagador”.

Sinais de contenção

Em paralelo, há outros dados comportamentais que não são compatíveis com a narrativa de uma guerra orientada para a conquista total da Ucrânia e subsequente ataque à NATO.

Apesar de Kiev estar, desde o início do conflito, sob o alcance directo dos mísseis russos, os centros máximos de poder ucranianos – incluindo o parlamento e o palácio presidencial – não foram destruídos. Moscovo insistiu, desde fevereiro de 2022, na designação de Operação Militar Especial e não de “guerra” em sentido formal, não apenas por razões internas, mas também como sinal político de um objectivo limitado no plano declarativo.

Este padrão sugere, ainda que imperfeitamente, uma analogia com a Guerra Austro-Prussiana de 1866, conhecida na época como Deutscher Bruderkrieg – a “guerra dos irmãos alemães”. Chamou-se “guerra de irmãos” porque ambos os lados eram Estados alemães: a Áustria (Império dos Habsburgos) e a Prússia, apoiadas por vários reinos e principados de língua e cultura comuns. Para muitos contemporâneos, tratou-se quase de uma guerra civil dentro do mundo alemão, não de uma guerra “alemães vs estrangeiros”.

Apesar de dispor de superioridade tecnológica clara – simbolizada pelo Dreyse Zündnadelgewehr, o fuzil de agulha de retrocarga que permitia uma cadência de tiro muito superior à dos mosquetes austríacosBismarck recusou ocupar Viena ou desmembrar o Império dos Habsburgos. Usou a vantagem prussiana de forma limitada e cirúrgica para reconfigurar a arquitectura de segurança no espaço alemão, expulsando a Áustria da Confederação Germânica e criando uma nova ordem cujo centro passava por Berlim. O objectivo político foi a exclusão estratégica da Áustria do núcleo alemão, não a sua destruição.

De modo análogo, a guerra russo-ucraniana tem sido por vezes descrita como uma espécie de “guerra civil eslava”, dadas as raízes históricas partilhadas, o lugar simbólico de Kiev na génese do Estado russo e as extensas interligações humanas e culturais entre os dois povos. A analogia não apaga diferenças morais óbvias – a agressão é russa, a violação de fronteiras reconhecidas é indiscutível – mas ajuda a pensar numa lógica de reconfiguração de ordem regional, mais do que numa cruzada ilimitada.

E se o objectivo for outro?

A partir daqui, impõem-se uma série de perguntas incómodas: E se, afinal, o objectivo estratégico central de Moscovo for apenas manter a Ucrânia fora da NATO? E se, afinal, o objectivo for apenas impedir a integração plena da Ucrânia na UE? E se, afinal, o essencial for evitar que a Ucrânia se transforme no “porco-espinho de aço” de que Ursula von der Leyen tem falado repetidamente, isto é, numa plataforma altamente armada da NATO no flanco ocidental russo?

Se estes forem, de facto, os objectivos centrais do Kremlin, então a narrativa muda por completo.

Da guerra de conquista à guerra de negação

Nesse caso, a guerra deixaria de ser, em primeiro lugar, o prelúdio plausível para uma marcha sobre Varsóvia ou Berlim e passaria a configurar-se sobretudo como uma guerra de negação: uma guerra destinada a impedir que o território ucraniano se converta numa plataforma avançada de projecção de poder ocidental sobre a Rússia.

Nesta leitura, o paralelismo com o Deutscher Bruderkrieg torna-se intelectualmente fecundo. Também hoje a Rússia pode estar a usar uma combinação de superioridade local (massa de artilharia, reservas humanas mobilizadas, geografia) e brutalidade táctica para forçar uma reconfiguração duradoura do estatuto da Ucrânia, sem que isso implique um plano operacional realista para ocupar todo o país – quanto mais para enfrentar directamente a NATO, onde a correlação de forças convencionais lhe é estruturalmente desfavorável.

A “nova guerra dos 100 anossugerida pelos números do The Economist não descreveria, portanto, um projecto coerente de conquista total da Ucrânia, mas antes o risco de um conflito de desgaste prolongado, travado na fronteira entre duas ordens de segurança incompatíveis.

Se for este o caso, as perguntas relevantes para a Europa deixam de ser apenas: “Quando é que a Rússia será capaz de atacar a Polónia ou os Bálticos?” e passam a incluir, de forma mais honesta:

Que garantias mínimas de não-alargamento da NATO para leste Moscovo poderia aceitar em troca de um cessar-fogo ou de uma paz imperfeita – sem que isso destrua a credibilidade da Aliança?

Que tipo de Ucrânia armada – neutra, aliada, semi-aliada – a Europa considera sustentável a longo prazo, sabendo que cada passo na direcção do “porco-espinho de aço” aumenta, do ponto de vista russo, a percepção de ameaça e, portanto, o risco de escalada?

Quanto tempo pode a Rússia manter um esforço de guerra em torno de 7% do PIB antes de o custo interno se tornar politicamente explosivo – e quanto tempo estão as opiniões públicas europeias dispostas a suportar um esforço de rearmamento minimamente simétrico sem fracturas internas graves?

Vista desta forma, a “nova guerra dos 100 anosnão é, necessariamente, uma guerra de cem anos de trincheiras na Ucrânia, mas uma guerra de cem anos de orçamentos, indústrias, e doutrinas entre:

Uma Rússia demograficamente em declínio, mas ainda disposta a aceitar custos materiais e humanos elevadíssimos; e

Uma Europa/NATO estruturalmente muito mais forte, mas politicamente fragmentada e hesitante no uso desse poder.

A linha de fratura não é apenas a frente de batalha no Dniepre; é o confronto entre duas visões de ordem europeia – uma alargada e liberal, outra organizada em esferas de influência exclusivas – que se chocam sem um mecanismo estável de acomodação.

A ironia estratégica e o dilema europeu

A grande ironia estratégica é a seguinte:

Quanto mais a NATO e a UE transformam a Ucrânia no tal “porco-espinho de aço”, com sistemas avançados, munições em massa e integração operacional, mais plausível se torna, aos olhos de Moscovo, a narrativa de que esta é uma guerra existencial e de que um compromisso territorial limitado não basta;

Em simetria, quanto mais a Rússia insiste numa solução maximalista no terreno e numa retórica de revisão da ordem saída de 1991, mais se consolida, em Bruxelas e nas capitais europeias, a percepção de que só um reforço maciço e duradouro das capacidades convencionais – essa nova corrida europeia a tanques, artilharia, mísseis e defesa aérea – poderá garantir a paz.

A questão central levantada pelo artigo do The Economist – a aparente impossibilidade militar de uma conquista total da Ucrânia em prazos politicamente relevantesnão é, por isso, a prova de que a Rússia “não está a ganhar a guerra”, mas antes o indício de que talvez essa nunca tenha sido a guerra que Moscovo pretende ganhar. Se o objectivo for “apenas” travar a ocidentalização plena e o armamento ilimitado da Ucrânia, isto é, impedir que se consolide na fronteira russa o equivalente moderno ao “porco-espinho de aço” de Ursula von der Leyen, então o conflito aproxima-se muito mais do velho Deutscher Bruderkrieg: uma guerra entre “irmãos” para decidir quem dita as regras de segurança no espaço comum, mais do que uma campanha de conquista sem limites.

Nesta perspectiva, a guerra na Ucrânia só encontrará condições mínimas para terminar quando forem simultaneamente atenuados os receios europeus e os receios russos – isto é, quando se conseguir ancorar, em arranjos jurídicos e militares verificáveis, um estatuto para Kiev que não seja percepcionado como ameaça existencial por nenhum dos lados. Entre o maximalismo moral e o minimalismo estratégico, o desafio europeu nesta “nova guerra dos 100 anos” será precisamente esse: construir uma paz imperfeita, mas suficientemente estável para que a superioridade estrutural da Europa e da NATO possa ser exercida como dissuasão, e não testada em campo de batalha.

Entretanto, quanto mais tempo perdurar a narrativa imperial russa que alimenta os receios estratégicos europeus – narrativa que não coincide com a visão norte-americana, como se confirma na recente National Security Strategy dos EUA, onde a Europa figura em terceira prioridade, após o Hemisfério Ocidental e a Ásia – mais se aprofundarão as tensões internas na NATO e melhor posição negocial obterá Moscovo. Porque, embora lento, o “rolo compressor” – como tradicionalmente se chamou ao exército russo continua a avançar alguns metros de terreno e alguns pontos de pressão política a cada dia que passa.

O verdadeiro teste para a Europa não será apenas travar esse avanço, mas fazê-lo sem se dividir, justamente no momento em que a aritmética estratégica lhe é mais favorável em toda a história moderna.

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COMENTÁRIOS (de 13)

José B Dias; ... a guerra na Ucrânia só encontrará condições mínimas para terminar quando forem simultaneamente atenuados os receios europeus e os receios russosisto é, quando se conseguir ancorar, em arranjos jurídicos e militares verificáveis, um estatuto para Kiev que não seja percepcionado como ameaça existencial por nenhum dos lados. Entre o maximalismo moral e o minimalismo estratégico. Mais uma vez algo que reputo de óbvio mas que as emoções muito primárias, mantidas ao rubro por declarações guerreiras, bravatas avulso e campanhas maciças de propaganda e manipulação, impedem tantos de ver e entender. Folgo em ler por aqui uma análise isenta e com origem em gente que sabe do que fala. Não deverão tardar a por aqui aparecer os incondicionais da guerra e os usuais insultos e insinuações...

 

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