sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Afinal havia outra versão



Um texto recebido por email, com a qualidade de sempre, pelo seu rigor e objectividade, este sobre Maquiavel , exposto por DAVID MARTELO em “A BIGORNA”, que introduz com os seguinte texto:

«Trata-se de procurar desfazer a aparente contradição que faz do celebrado autor de uma obra intitulada O Príncipe um notável defensor do ideal republicano. É que não custa a perceber que, para quem tenha de Maquiavel um conhecimento superficial e tenha sido sensibilizado pelas censuras de tipo moral de que foi alvo, o escritor florentino seja mais depressa conotado com as monarquias absolutas do que com os regimes republicanos de base democrática.

Na parte que me diz respeito - que só lera referências a “O Príncipe por alturas da identificação de absolutismo com a expressão de “os fins que justificam os meios” que responsabilizava “O Príncipe” de Maquiavel pela inspiração dessas ideias em monarcas absolutos, como, entre nós, D. João II matando nobres que reivindicavam os seus próprios privilégios, ou na referência a esse conceito a respeito da tragédia Castro” de António Ferreira e dos avisos dos conselheiros de Afonso IV sobre  a necessidade de matar Inês – este estudo de David Martelo sobre Maquiavel, foi  precioso, na  visão que nos deu – já identificada por Rousseau – de um Maquiavel inspirado nos ideais republicanos dos clássicos gregos e latinos. Um prazer de leitura, que agradeço a  que agradeço a João Sena, que me enviou o email.

MAQUIAVEL E A IDEIA DE REPÚBLICA
«Fingindo dar lições aos reis, deu-as ele, e grandes, aos povos. O Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos.» J.-J. Rousseau (Contrato Social – Livro III - VI)

1. Quando, nas derradeiras linhas da sua A Arte da Guerra, Fabrizio Colonna, o personagem principal, afirma que «esta província» – referindo-se, naturalmente, à região de Florença – «parece ter nascido para ressuscitar as coisas mortas, como se tem visto com a poesia, a pintura e a escultura», como que define toda a atmosfera de inovação em que Maquiavel pretende desenvolver os seus conceitos. De facto, naquele momento alto do Renascimento italiano, tudo converge para o reconhecimento de que um mundo perfeito havia existido na Antiguidade Clássica. Para Maquiavel, então, o reviver desse mundo perfeito não se deve ficar pelas belas artes, prolongando-se, igualmente, no ordenamento social, na política e na forma de fazer a guerra. É neste enquadramento que, através dos seus escritos, poderemos encontrar a revivescência do conceito de República, desiderato para o qual o autor recorre, abundantemente, à citação e análise dos textos de autores clássicos respeitantes às experiências republicanas helénicas e sobretudo romanas. Uma questão prévia merece ser abordada, ainda que de modo abreviado: a de procurar desfazer a aparente contradição que faz do celebrado autor de uma obra intitulada O Príncipe um notável defensor do ideal republicano. É que não custa a perceber que, para quem tenha de Maquiavel um conhecimento superficial e tenha sido sensibilizado pelas censuras de tipo moral de que foi alvo, o escritor florentino seja mais depressa conotado com as monarquias absolutas do que com os regimes republicanos de base democrática. Importa, por conseguinte, recordar aqui as condições muito especiais em que a dita obra foi concebida. Na transição do século XV para o século XVI, a vida política de Florença pode ser dividida em quatro fases distintas: I. 1434 a 1494regime senhorial dos Medici (república de nome) II. 1494 a 1498interregno fundamentalista de Girolamo Savonarola III. 1498 a 1512 – regime republicano IV. 1512 em dianteregresso dos Medici ao poder Foi justamente ao iniciar-se o terceiro período aqui mencionado que Maquiavel encetou a sua carreira política ao serviço do regime republicano então instaurado. Em 14 de Julho de 1498, com apenas 29 anos, foi nomeado, após concurso, Secretário da Segunda Chancelaria da República de Florença. Era um cargo onde se tratavam, em natural convergência, os negócios da Defesa, do Interior e da Diplomacia, e que ocupou, ininterruptamente, até ao final da sua vida política. Em 1512, com o regresso dos Medici ao poder, Maquiavel abandonou as funções públicas e não iria escapar às perseguições políticas resultantes da mudança. Durante um ano, ficou proibido de sair de território florentino, e, em Fevereiro de 1513, suspeito de envolvimento numa conspiração, chegou mesmo a ser encarcerado durante alguns dias e submetido a torturas. No retiro a que se submeteu nos meses seguintes, na casa de campo de Sant’ Andrea in Percussina, mergulhado no sombrio cenário da derrota pessoal e política, escreveu O Príncipe e, provavelmente, as páginas iniciais dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. No que concerne especificamente a O Príncipe, parece certo que o primeiro núcleo da obra foi escrito entre Julho e Dezembro de 1513. Já a dedicatória e o capítulo final parecem indicar que a conclusão, acompanhando a sua aproximação aos Medici, ocorre cerca de 1518. Como era usual naquela época, a obra inicia-se com uma dedicatória para o jovem Lorenzo de Medici, duque de Urbino e senhor de Florença. Parece inegável que ela constituiu uma tentativa, algo 2 lisonjeadora da parte do autor, para cair nas boas graças do poder, procurando, desse modo, melhorar a situação de alguma marginalidade a que se vira sujeito após o regresso dos Medici. É legítimo perguntar até que ponto esse acto de lisonja condicionou o texto. Sobre esta questão haverá, certamente, muitas e desencontradas opiniões, algumas das quais vão mesmo ao ponto de sublinhar a incoerência de um republicano vir pugnar pela via do absolutismo monárquico. Julgo, no entanto, que se não pode acusar Maquiavel de puro oportunismo ou de incoerência ideológica, antes deve ser realçado o seu patriotismo, porque, perante a situação dramática vivida em Itália, abdicou das soluções republicanas da sua preferência, para, através de O Príncipe, acudir a uma emergência. Tratava-se, por conseguinte, de uma situação excepcional, que requeria medidas excepcionais, visando a unidade italiana. Assim sendo, não é de admirar que outra obra, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, constitua um texto de maior envergadura, mais caracterizadamente republicano e de aplicação mais universal do que O Príncipe, precisamente porque, contrariamente a este, não estava direccionado para um objectivo concreto e urgente. E, a intenção de Maquiavel privilegiar os Discursos como texto eminentemente republicano é anunciado expressamente pelo próprio, no início do capítulo II de O Príncipe, quando afirma: «abster-me-ei de falar das repúblicas, porque, noutra ocasião, delas longamente me ocupei». A obra de Tito Lívio e a história de Roma são o pretexto para Maquiavel desenvolver uma teoria abrangente sobre as relações entre Estado e Povo, num regime republicano que identifica assim com as ideias de liberdade e prosperidade: «...de quanta grandeza desfrutou Roma desde que se viu livre dos seus reis. A razão é fácil de entender, porque não é o bem particular, mas o bem comum, que torna as cidades poderosas».(1) Até para justificar a sua rejeição do sistema hereditário das monarquias, o autor não deixa de recorrer à história de Roma, recordando que «...todos os imperadores que sucederam no império por hereditariedade – com a excepção de Tito – foram perversos, enquanto aqueles que o foram por adopção provaram ser todos bons,   como foi o caso dos cinco que vão de Nerva a Marco. E, assim que o império enveredou pela sucessão hereditária sistemática, recomeçou a sua ruína.»(2) Depois, quando se trata de saber a quem é preferível atribuir o encargo da guarda da liberdade, Maquiavel não esconde a sua inclinação popular: «Não há dúvida de que, considerando os propósitos dos nobres e dos plebeus, se verá naqueles um desejo grande de dominar e nestes somente o de não serem dominados e, por conseguinte, maior vontade de viver livres, sendo menos de esperar que a usurpem do que os grandes. Assim sendo, se couber aos populares a guarda da liberdade, é natural que o façam com maior desvelo, porque, não a podendo corromper, não permitem que outros a corrompam.» (3) Se, num puro contexto ideológico, o pensamento de Maquiavel se conforma perfeitamente com a ideia moderna de democracia, não seria razoável esperarmos que discorresse sobre os desvios do exercício do poder que só alguns séculos depois se tornaram, infelizmente, inseparáveis do funcionamento dos regimes democráticos. Ainda assim, podemos assinalar a sua preocupação com a corrupção e o abuso no exercício dos poderes públicos, o que o leva a eleger a justiça como um dos pilares essenciais do estado de direito e a prescrever que aos guardiães da liberdade «não se pode dar autoridade mais útil do que o poder de acusar os cidadãos ao povo ou a qualquer magistrado ou conselho, quando atentarem de algum modo contra o estado livre».4 Fazendo do temor da acção da justiça o sustentáculo da defesa da liberdade, Maquiavel tem a noção perfeita dos perigos de natureza política que decorrem da sua falência, afirmando, no capítulo IX dos Discursos, que «as acusações (judiciais) são tão úteis à república como perniciosas são as calúnias», acabando por sublinhar que «onde esta questão se não encontra bem ordenada, sempre ocorrem grandes conflitos, porque as calúnias abespinham e não punem os cidadãos, enquanto os visados procuram defender-se odiando, mais do que temendo, as coisas que contra eles se dizem.»5 Mas até mesmo em O Príncipe, enquanto procura encontrar uma solução para as carências de unidade existente entre os italianos, Maquiavel se preocupa com a construção de um NOVO ESTADO,

 1 Discursos, L. II – cap. II. 2 Discursos, L. I – cap. X. 3 Discursos, L. I – cap. V. 4 Discursos, L. I – cap. VII. 5 Discursos, L. I – cap. VIII. 3

um Estado que, na sua concepção, começa a aproximar-se da noção do Estado moderno (embora concebido com a robustez adequada à sua missão unificadora). Daí a sua repetida alusão às “boas leis” e ao “exército próprio” – dois pilares do moderno Estado de Direito –, sendo que, no caso específico das armas, sugere, muito claramente, a adopção do seu monopólio por parte do Estado. É verdade que a inclinação republicana e popular do autor dá como inquestionável que os “grandes” permanecem “grandes” e os “populares” permanecem “populares”, sendo no âmbito deste axioma que se expressa o seu peculiar conceito de Liberdade. Maquiavel combina tudo isto com uma profunda desconfiança relativamente à natureza humana. Segundo ele, «os homens nunca fazem nada de bem a não ser por necessidade»(6) e são «ingratos, volúveis, fingidos e dissimulados, fugidios aos perigos, ávidos do ganho.» Por isso, entende que, para um Príncipe, «mais vale ser amado do que temido», porque «os homens sentem menos inibição em ofender alguém que se faça amar do que outro que se faça temer, porque a amizade implica um vínculo de obrigações, o qual, devido à maldade dos homens, em qualquer altura se rompe, conforme as conveniências. O temor, por seu turno, implica o medo de uma punição, que nunca mais se extingue.»(7) Apesar desta visão extremamente negativa, valorizando uma vez mais a ideia do temor, Maquiavel encontra uma fórmula de excelência no seu conceito de virtude, fórmula essa capaz de proporcionar o êxito, mesmo com os homens que assim deprecia. Trata-se, evidentemente, dessa forma de pragmatismo que haveria de lhe concitar não poucas críticas, uma vez que o conceito de virtude por ele defendido se afasta bastante da virtude pregada pelo cristianismo. A virtude de um homem, segundo Maquiavel, parece englobar tudo quanto possa ser incluído na definição das suas capacidades, isto é, no seu mérito pessoal. Trata-se, sem dúvida, de um conceito eminentemente secular, que fica bastante distante do conceito moral da virtude, porque, agindo a política e a moral em esferas distintas, os bons sentimentos não devem constituir obstáculo à obtenção da vitória. Mas o conceito de virtude não se restringe aos comportamentos individuais. Para Maquiavel existe, também, uma forma colectiva de virtudeque hoje designaríamos por civismo –, deixando perceber que considera a república o regime político em que essa faceta lograria atingir a sua expressão ideal. É certo que isto não significa que Maquiavel não reconheça a superioridade moral de umas acções em relação a outras. O constante convite à imitação dos procedimentos seguidos na República Romana é, amiudadas vezes, justificado por razões de superioridade moral. Há, todavia, nesta questão dos valores morais, um aspecto que o autor não se cansa de repisar ao longo das suas obras, incluindo n’O Príncipe, e que demonstram a solidez das suas convicções republicanas. Trata-se das recomendações que, repetidamente, faz ao Príncipe, no sentido de que, ao fazer-se temer, o faça «de modo que, se não conseguir obter a estima, também não concite o ódio». (8) De resto, a indispensabilidade do apoio do povo e a simpatia republicana que Maquiavel lhe dedica aparecem diversas vezes explicitadas no texto, contrastando, quase sempre, com as censuras – de clara índole moral – com que se refere aos poderosos: «não é possível satisfazer os poderosos sem prejuízo de terceiros, mas é-o relativamente ao povo, porque as ambições do povo são mais honestas do que as dos grandes senhores, estes querendo oprimir e aquele desejando não ser oprimido».(9)
2.Maquiavel e a religião
 Não há, em Maquiavel, o mesmo tipo de anticlericalismo que a história regista relativamente à Revolução Francesa, à República de 1910 e a outros processos de transição da monarquia para um regime republicano. No plano estritamente político – exceptuando as críticas que aponta ao poder temporal da Santa Sé, por ser, na sua opinião, o principal obstáculo à unificação italiana –, a atitude do escritor florentino perante a Igreja e a ideia de religião é, uma vez mais, impregnada de um sólido pragmatismo. Não sendo um autor susceptível de ser classificado como pró-religioso ou moralista, percebe-se, todavia, que conta com os efeitos ordenadores e cominatórios da religião, instrumentalizando-a para amparar o Novo Estado que tem em mente. Servindo-se uma vez mais do testemunho de Ovídio,

 6 Discursos, L. I – cap. III. 7 O Príncipe, cap. XVII. 8 O Príncipe, cap. XVII. 9 O Príncipe, cap. IX. 4
recorda que Numa Pompílio foi escolhido pelo Senado de Roma para suceder a Rómulo, com a missão de completar a sua obra. Depois, «encontrando um povo ferocíssimo e pretendendo conduzi-lo à obediência civil de forma pacífica, voltou-se para a religião como coisa de todo necessária para manter um clima de civilidade; e fê-lo de tal modo que, por muitos séculos, não houve, em parte nenhuma, tanto temor de Deus como naquela república.»(10) A indispensabilidade da religião – ou melhor, do ‘temor de Deus’ –, para o sucesso do regime republicano é assumida por Maquiavel de forma peremptória: «Assim como a observância do culto divino é causa da grandeza das repúblicas, o desprezo do culto é causa da sua ruína, porque, onde falta o temor de Deus, ou o estado desaparece ou precisa de ser sustentado pelo temor de um príncipe que supra a falta da religião.»(11) Por tal motivo, vai mesmo ao ponto de recomendar que o príncipe aja de tal modo que pareça, «ser todo piedade, todo fidelidade, todo integridade, todo humanidade e todo religião. E não há coisa que seja mais necessário parecer que se tem do que esta última qualidade.»(12) Todavia, no plano mais marcantemente doutrinário, Maquiavel não deixa de criticar os procedimentos da Igreja Romana no âmbito da acção. Tratando-se de um aspecto sumamente importante do seu pensamento político, expressa o seu desencanto relativamente à escala de mérito por ela praticada, sublinhando que «a nossa religião tem glorificado mais os homens humildes e contemplativos do que os activos»(13), comentário que só se compreende, de facto, num cenário de coabitação dos poderes espiritual e temporal, provavelmente com predominância do último.
3.Maquiavel e a força das armas
O pensamento de Maquiavel perante a problemática da defesa militar de um Estadonas suas vertentes externa e interna – merece que lhe faça aqui um breve apontamento. Neste particular, a sua inclinação republicana é total, e antecipa, em quase três séculos, o exército de cidadãos da república saída da Revolução Francesa. Do texto de A Arte da Guerra emerge, como primeira prioridade, o levantamento de uma milícia nacional, de carácter não permanente, claramente destinada a impedir os desaires, as traições e as venalidades copiosamente verificadas durante as guerras mais recentes travadas em solo italiano. Para se perceber como, naquela época, advogar a existência de um exército nacional era algo de verdadeiramente insólito, é necessário entender que a classe dominante e dominadora ficava aterrorizada perante a hipótese de armar o povo (que maltratava), preferindo, por conseguinte, pagar um exército de mercenários, que tanto devia servir para a guerra como para a manutenção da ordem interna. Anote-se, por mera curiosidade, que no programa da nossa República de 1910, um dos aspectos mais marcantes era, justamente, a reorganização do Exército numa perspectiva miliciana. Embora se tratasse de uma ingenuidade de difícil concretização – como não tardou a ficar claro –, não pode negarse à I República, nesse caso como em muitos outros, uma inatacável coerência ideológica e uma convergência perfeita, ainda que não propositada, com o pensamento do grande pensador florentino. Para concluir este comentário essencialmente político, julgo que podemos comparar a Ideia de República de Maquiavel a um edifício sólido que se constrói sobre quatro pilares fundamentais: Ø Boas leis Ø Justiça Ø Religião Ø Milícia nacional A preocupação do autor no tocante à indispensabilidade da ORDEM – no sentido de ordenamento legal, isto é, o oposto do livre arbítrio –, conjugado com a péssima opinião que tem do ser humano, leva-o a sobrevalorizar o TEMOR como importante guardião da República, para o que conta com a acção convergente da Justiça e da Religião.

10 Discursos, L. I – cap. XI. 11 Discursos, L. I – cap. XI. 12 O Príncipe, cap. XVIII. 13 Discursos, L. II – cap




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