terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Falsa amenidade em discorrer de subtileza



É o caso deste texto de Francisco Assis, assente no seu direito a opinar, depois de brilhante lição de história catalã, de aparente isenção, detectável, todavia, a ausência dela, ao longo do seu excurso. É quando frisa a tese de um seu amigo, Enric Marin, a respeito da “grande fractura na sociedade catalã  que não é a que separa independentistas de unionistas, mas sim aquela que separa os catalães que são favoráveis ao direito a decidir daqueles que se opõem à existência de tal direito. O que a mim me parece é que a primeira parte da questão - pontos de vista díspares entre apoiantes ou não da separação - tem a ver com amor pátrio, ao passo que a balela do direito a decidir, ideal das democracias, abarca, aparentemente, toda a gente, o que é falso, pois que não tem em conta os transgressores de vária ordem, que naturalmente são excluídos desse direito, em toda a sociedade que se preze. F. A. não informa sobre a sua opinião,  no seu excelente irromper pela história do separatismo catalão, mas a subjectividade crítica de alguma adjectivação - (“o infame governo de Vichy”) - mostra  bem o seu conceito favorável a esse, sem ter em conta todo um passado histórico comum a um povo que um nome como o de Cervantes  imortalizaria  na figura ímpar nascida “Em um lugar da Mancha”, de que os verdadeiros catalães jamais quererão prescindir.                                                                                                                                              
ESPANHA: A Catalunha encravada no direito a decidir
O antigo eurodeputado e líder parlamentar do PS Francisco Assis esteve recentemente em Barcelona. Das conversas que manteve com várias figuras da política e da sociedade trouxe uma impressão: o dilema à volta da independência catalã está para durar e tem revelado subtilezas logo esmagadas por radicalismos vários.
FRANCISCO ASSIS  PÚBLICO, 1 DE DEZEMBRO DE 2019
1.13 de Maio de 1932. O Parlamento espanhol está reunido a fim de discutir o projecto de um Estatuto para a Catalunha. Ortega y Gasset, intelectual ilustre e parlamentar ocasional, levanta-se e profere um discurso que contém uma frase destinada a perpetuar-se na História: “Yo sostengo que el problema catalán (…) es un problema que no se puede resolver, que sólo se puede conllevar (…)”. O termo “conllevar” acabava de entrar no léxico da chamada questão catalã. “Conllevar” significa uma forma resignada e negativa de conviver — suportar ou aturar.
Ortega admirava a Catalunha, estimava as suas principais figuras intelectuais, mas não lhe reconhecia uma dimensão nacional, e tão pouco aceitava que se lhe concedesse um estatuto particular no âmbito do Estado espanhol. Não era o único intelectual naquele Parlamento a pensar assim. Unamuno perfilhava a mesma opinião. Contudo, a oposição destes dois vultos maiores do pensamento espanhol não impediu a aprovação do Estatuto da Catalunha.
A Espanha vivia tempos conturbados. No ano anterior havia sido proclamada a Segunda República, na sequência da resignação ao trono de Afonso XIII motivada por uma retumbante vitória republicana numas eleições municipais. A 14 de Abril de 1931 a República foi solenemente proclamada nas Portas do Sol em Madrid. Nesse mesmo dia, com algumas horas de antecedência, Francesc Maciá já havia proclamado a República da Catalunha como Estado integrante da Federação Ibérica. Maciá liderava um partido que se havia constituído nesse mesmo ano, a Esquerda Republicana Catalã (ERC).
Porém, pressionado pelo novo Governo de Madrid acabará por ceder no propósito de constituição de uma República própria conseguindo, ainda assim, obter a garantia de uma ampla autonomia para a Catalunha. Maciá morreu inesperadamente no Natal de 1933 tendo-lhe sucedido Luís Companys, que viria a ter um destino heróico e trágico. Receoso de que a entrada no Governo de Madrid de um partido de direita radical pudesse provocar um retrocesso na autonomia, Companys proclamou em 1934 o Estado Catalão da República Federal de Espanha. A reacção do Governo central foi pronta e violenta — a autonomia foi suspensa e os governantes catalães foram presos. Ocorreram confrontos nas ruas de Barcelona, de que resultaram 70 mortos e o Palácio de Saint Jaume, sede da Generalitat, foi atingido por obuses.Companys foi julgado e condenado a trinta anos de prisão tendo sido, contudo, libertado em 1936 na sequência da vitória da Frente Popular. Em 1939 exilou-se em França. Capturado por agentes da Gestapo foi extraditado para Espanha pelo infame Governo de Vichy. Foi de novo julgado, desta vez em Conselho de Guerra, e sentenciado à morte. Fuzilaram-no em Barcelona a 15 de Outubro de 1940. Este acto bárbaro praticado pelo franquismo nascente revelava até que ponto a “conllevancia” orteguiana poderia ser trágica para o lado catalão.
2. Barcelona numa mediterrânica manhã de Outono, praça da Catalunha, Café Zurich. Numa mesa a um canto tenho diante de mim Joaquim Nadal, um dos grandes nomes da vida cívico-política catalã. Professor catedrático jubilado de História Contemporânea na Universidade de Girona, cidade de que foi o mais marcante alcalde da época democrática, candidato socialista à Presidência do Governo autonómico em 1994, membro proeminente dos governos de Pasquall Maragall e José Montilla, os dois únicos socialistas que até hoje presidiram à Generalitat, aos 71 anos este socialista e catalinista cultiva uma grande independência em relação ao mundo partidário. Saiu do Partido Socialista Catalão (PSC) em 2015 devido a uma divergência insanável — Nadal preconizava que os catalães tinham o direito a decidir o seu futuro, os socialistas defendiam posição contrária. Ainda hoje ele fala com fervor do direito a decidir. Tal posição resulta daquela que é talvez a sua convicção mais profunda — a Catalunha dispõe de todos os atributos necessários para ser considerada um sujeito político próprio e, como tal, tem de ser reconhecida e tratada. No fundo, trata-se de uma questão de soberania.
Joaquim Nadal recusa em absoluto uma concepção étnica ou essencialista do nacionalismo, que remete para o campo das paixões perigosas. Ele é um moderado, adepto do diálogo racional, consciente de que só há um plano onde o tema catalão poderá ser devidamente tratado — o plano político. Não acredita, no entanto, que isso venha a ocorrer nos próximos tempos. Fala com amargura de um duplo impasse trágico — um na Catalunha e outro na Espanha. Antes de sair para ir apanhar o comboio para a sua cidade de Girona ainda tem tempo para ironizar acerca dos actos de insubordinação civil praticados por jovens nas ruas de Barcelona — finalmente, diz com um ligeiro sorriso, os filhos dos anarquistas encontraram-se com os filhos de uma certa burguesia nacionalista e conservadora. Acha que daí não virá grande mal ao mundo. O professor Nadal, político superior, homem sereno, seria provavelmente de uma grande utilidade se as paixões não andassem tão desenfreadamente à solta.
3. No período franquista o catalanismo foi objecto de uma inaudita repressão política e cultural. O nacional-espanholismo de índole ultra-conservadora que constituía a verdadeira ideologia do regime não tolerava qualquer tipo de manifestação dos chamados nacionalismos periféricos. Isso acabou por contribuir fortemente para o reforço da ligação entre o catalanismo cultural e a esquerda social e política catalã. Com a transição democrática abriram-se naturalmente novas perspectivas ao projecto autonomista. As principais forças políticas espanholas compreenderam depressa que tinham de conceber um novo quadro institucional capaz de satisfazer as pretensões das nacionalidades históricas sem pôr em causa o carácter unitário do Estado. Acabaram por engendrar uma solução ardilosa, mas momentaneamente eficaz — o célebre modelo do “café para todos” — que consistiu na criação de múltiplas regiões autónomas diluindo, deste modo, num contexto de ampla descentralização as singularidades da Catalunha, do País Basco e da Galiza. Ao País Basco ainda reconheceram certas peculiaridades, aos catalães nem sequer isso.
Apesar disto, durante quase três décadas tudo parecia correr pelo melhor na relação entre a Catalunha e Madrid. Para isso terão concorrido dois factores do lado catalão: o elevado nível de auto-governo e a consagração da primazia da língua catalã no sistema de ensino daquela região autónoma. Um fenómeno político marcará todo esse período e passará à História sob a designação de “pujolismo”. Jordi Pujol, um catalanista de origem burguesa e de extracção liberal, fundador da célebre Banca Catalana, perseguido e preso pelo franquismo, emergiu logo nas primeiras eleições regionais como a grande figura política da Catalunha. O seu longo consulado ficou inquestionavelmente marcado pelo avanço da autonomia catalã e pelo significativo aumento da influência da Catalunha em toda a política espanhola. Assistia-se, assim, à plena concretização de uma velha aspiração de algumas das elites liberais de Barcelona — a Catalunha tinha-se transformado na força propulsora da modernização de toda a Espanha. Tudo mudou, porém, quando José María Aznar ganhou pela segunda vez as eleições gerais, mas desta vez com maioria absoluta. O primeiro-ministro conservador, contrariamente a Felipe González, tolerava mas não apreciava Pujol. Tão pouco lhe agradavam as autonomias em geral, e provavelmente a catalã em particular. Aznar tinha um novo projecto para Espanha que assentava em grande parte na capitalidade e na centralidade de Madrid. Nuvens negras começavam a pairar de novo sobre a Catalunha. O “pujolismo” estava liquidado, sucedia-lhe uma coligação de esquerda liderada por Pasqual Maragall, o neto do grande poeta e catalanista Joan Maragall.
4. Enric Marín e Joan Tresserras são professores no Departamento de Comunicação da Universidade Autónoma de Barcelona. São ambos militantes da Esquerda Republicana Catalã (ERC) e acabam de publicar em conjunto um livro intitulado Obertura Republicana. Catalunya, después del nacionalismo.
Marín, com quem tive o privilégio de conversar durante algumas horas, preconiza abertamente um independentismo não nacionalista. Define-se a si próprio como um social-democrata ecologista, radicalmente europeísta. É o oposto de um nacionalista metafísico e dogmático. Considera mesmo fundamental a abertura de um espaço de diálogo com a esquerda não independentista da Catalunha. Ao longo da conversa insiste várias vezes num ponto que considera fundamental: a grande fractura na sociedade catalã não é a que separa independentistas de unionistas, mas sim aquela que separa os catalães que são favoráveis ao direito a decidir daqueles que se opõem à existência de tal direito. Este novo enfoque muda substancialmente a perspectiva da realidade. Passa-se de um confronto entre dois blocos de expressão semelhante para uma contraposição onde há uma maioria clara: as sondagens indicam que 70% dos catalães são favoráveis ao direito a decidir. No fundo estamos diante da exigência iguzalmente feita por Joaquim Nadal. Há uma maioria clara e expressiva de catalães que reclama para a Catalunha o estatuto de sujeito político soberano. A questão da independência acaba por ser secundária e não suscita, nem de longe nem de perto, tão amplo entendimento.
Martín perspectiva a prazo uma Catalunha independente, profundamente democrática e europeísta, assente num novo contrato social capaz de garantir uma maior participação de todos os segmentos da sociedade, nomeadamente daqueles que resultam de múltiplas migrações de origem interna e externa. Barcelona teria então condições para se afirmar como a grande capital do Mediterrâneo.
Este professor sabe, contudo, que haverá ainda um longo caminho a percorrer até uma eventual independência da Catalunha. Reconhece, sem qualquer dificuldade, que não se podem dar mais passos precipitados. Fala-me abertamente dos três grandes erros cometidos pelos independentistas: sobrevalorizaram a sua força; não conseguiram passar a mensagem; menosprezaram a capacidade de reacção do Estado espanhol. A lucidez deste republicano de esquerda e socialista talvez venha a ser de grande utilidade, não apenas para a Catalunha, mas também para o futuro imediato de Espanha.
5. La Vanguardia não é só um jornal de referência, é uma verdadeira instituição de uma Catalunha próspera que se pretende ver a si própria como liberal e cosmopolita. Funcionárias afáveis conduzem-me para uma confortável sala envidraçada no décimo sétimo andar do imponente edifício que alberga todo o grupo editorial de que La Vanguardia faz parte. A noite vai caindo sobre Barcelona proporcionando-me belíssimas imagens de uma cidade que denota organização e bem-estar enquanto vou conversando com um outro interlocutor. Trata-se de um alto quadro deste grupo editorial. Em todas as suas palavras há equilíbrio, rigor, ponderação. Uma expressão perfeita do famoso “senny” catalão, essa atitude identificada precisamente por tais características. Fala com amargura da presente situação, não acredita numa solução a breve prazo. A dada altura refere mesmo a célebre afirmação atribuída ao general Baldomero Espartero: “Por el bien de España hay que bombardear Barcelona una vez cada 50 años”. Essa simples citação revela a inquietação que o domina. Sabe que há razões para olhar para o futuro com angústia.
6. Barcelona e a Catalunha vão ficando para trás. Uma recordação vai sobressaindo no meio de todas as demais. Sábado à tarde em plena Gran Via des Corts Catalanes, mesmo junto à praça da Universidade milhares de pessoas erguem bandeiras catalãs, gente de todas as idades e estratos sociais, uma comoção digna vagueia pela atmosfera. No palco uma jovem canta Blowin’ In The Wind, de Bob Dylan. A multidão acompanha. Um misto de épica e de melancolia habita momentaneamente aquele lugar. Acreditarão estas mulheres e estes homens genuinamente na viabilidade da ideia da independência da Catalunha? Não sei. É provável que eles também não saibam. E talvez nem sequer seja determinante conhecer a resposta.
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COMENTÁRIOS
Henrique Duarte,  02.12.2019: Um texto muito elucidativo.
Luís F,  02.12.2019: Muito bom texto. Parabéns por mostrar as nuances do assunto, o que não é nada habitual.
Visitante da Noite, 01.12.2019: O Sr. deputado refere várias vezes o pujolismo evitando uma questão central que explica em parte a activação recente do movimento independentista: a corrupção das elites burguesas catalãs que estão no poder praticamente desde a democracia.
Eu mesmo, 01.12.2019: Está bem, está. Já em Espanha é tudo honesto. A começar pelos recém condenados na Andaluzia.
Visitante da Noite,  01.12.2019: Uma coisa não tira a outra. Um artigo que se pretende falar das "subtilezas" da questão catalã não pode branquear uma personalidade como o Jordi Pujol.
Henrique Duarte, 02.12.2019: O Partido Popular espanhol tem cerca de 1000 membros imputados por corrupção. Mil! Só de má fé se pode usar o caso de um catalão,esquecendo a corrupção gigantesca que existe nas outras regiões de Espanha em geral, para atacar o independentismo catalão.

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