É o caso deste texto de Francisco Assis, assente no seu direito a opinar, depois de brilhante
lição de história catalã, de aparente isenção, detectável, todavia, a ausência
dela, ao longo do seu excurso.
É quando frisa a tese de um seu amigo, Enric Marin, a respeito da “grande fractura na sociedade
catalã que não é a que separa
independentistas de unionistas, mas sim aquela que separa os catalães que são
favoráveis ao direito a decidir daqueles que se opõem à existência de tal
direito. O que a mim me parece é que a primeira parte da questão - pontos de vista
díspares entre apoiantes ou não da separação - tem a ver com amor pátrio, ao
passo que a balela do direito a decidir, ideal das democracias, abarca,
aparentemente, toda a gente, o que é falso, pois que não tem em conta os
transgressores de vária ordem, que naturalmente são excluídos desse direito, em
toda a sociedade que se preze. F. A. não informa sobre a sua opinião, no
seu excelente irromper pela história do separatismo catalão, mas a subjectividade
crítica de alguma adjectivação - (“o infame
governo de Vichy”) - mostra bem o
seu conceito favorável a esse, sem ter em conta todo um passado histórico comum
a um povo que um nome como o de Cervantes imortalizaria na figura ímpar nascida “Em um lugar da
Mancha”, de que os verdadeiros catalães jamais quererão prescindir.
ESPANHA: A Catalunha
encravada no direito a decidir
O antigo eurodeputado e líder parlamentar do PS Francisco Assis esteve
recentemente em Barcelona. Das conversas que manteve com várias figuras da
política e da sociedade trouxe uma impressão: o dilema à volta da
independência catalã está para durar e tem revelado subtilezas logo esmagadas
por radicalismos vários.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 1 DE DEZEMBRO DE 2019
1.13 de Maio de 1932. O Parlamento espanhol está reunido a fim de discutir
o projecto de um Estatuto para a Catalunha. Ortega y Gasset, intelectual ilustre e
parlamentar ocasional, levanta-se e profere um discurso que contém uma frase
destinada a perpetuar-se na História: “Yo sostengo que el problema catalán
(…) es un problema que no se puede resolver, que sólo se puede conllevar (…)”.
O termo “conllevar” acabava de entrar no léxico da chamada questão catalã.
“Conllevar” significa uma forma resignada e negativa de conviver — suportar
ou aturar.
Ortega admirava a Catalunha,
estimava as suas principais figuras intelectuais, mas não lhe reconhecia uma
dimensão nacional, e tão pouco aceitava que se lhe concedesse um estatuto
particular no âmbito do Estado espanhol. Não era o único intelectual
naquele Parlamento a pensar assim. Unamuno perfilhava a mesma opinião. Contudo, a oposição destes dois vultos
maiores do pensamento espanhol não impediu a aprovação do Estatuto da
Catalunha.
A Espanha vivia tempos
conturbados. No ano anterior havia sido proclamada a Segunda República, na sequência da resignação
ao trono de Afonso
XIII motivada por uma retumbante vitória republicana numas eleições
municipais. A 14 de Abril de 1931 a República foi solenemente proclamada nas
Portas do Sol em Madrid. Nesse mesmo dia, com algumas horas de
antecedência, Francesc
Maciá já havia proclamado a República da Catalunha como Estado integrante da
Federação Ibérica. Maciá liderava um partido que se havia constituído nesse mesmo ano, a Esquerda
Republicana Catalã (ERC).
Porém, pressionado pelo novo Governo de Madrid
acabará por ceder no propósito de constituição de uma República própria
conseguindo, ainda assim, obter a garantia de uma ampla autonomia para a
Catalunha. Maciá morreu inesperadamente no Natal de 1933 tendo-lhe sucedido
Luís Companys, que viria a ter um destino
heróico e trágico. Receoso de que a entrada no Governo de Madrid de um partido
de direita radical pudesse provocar um retrocesso na autonomia, Companys
proclamou em 1934 o Estado Catalão da República Federal de Espanha. A
reacção do Governo central foi pronta e violenta — a autonomia foi suspensa
e os governantes catalães foram presos. Ocorreram confrontos nas ruas de
Barcelona, de que resultaram 70 mortos e o Palácio de Saint Jaume, sede da
Generalitat, foi atingido por obuses.Companys foi julgado e condenado a trinta
anos de prisão tendo sido, contudo, libertado em 1936 na sequência da vitória
da Frente Popular. Em 1939 exilou-se em França. Capturado por agentes da
Gestapo foi extraditado para Espanha pelo infame Governo de Vichy. Foi de novo
julgado, desta vez em Conselho de Guerra, e sentenciado à morte. Fuzilaram-no
em Barcelona a 15 de Outubro de 1940. Este acto bárbaro praticado pelo
franquismo nascente revelava até que ponto a “conllevancia” orteguiana poderia
ser trágica para o lado catalão.
2. Barcelona numa mediterrânica manhã de Outono, praça da Catalunha, Café
Zurich. Numa mesa a um canto tenho diante de mim Joaquim Nadal, um dos grandes nomes da vida
cívico-política catalã. Professor catedrático jubilado de História
Contemporânea na Universidade de Girona, cidade de que foi o mais
marcante alcalde da época democrática, candidato socialista à Presidência
do Governo autonómico em 1994, membro proeminente dos governos de Pasquall
Maragall e José Montilla, os dois únicos socialistas que até hoje presidiram à
Generalitat, aos 71 anos este socialista e catalinista cultiva uma grande
independência em relação ao mundo partidário. Saiu do Partido Socialista
Catalão (PSC) em 2015 devido a uma divergência insanável — Nadal preconizava que os catalães
tinham o direito a decidir o seu futuro, os socialistas defendiam posição
contrária. Ainda hoje ele fala com fervor do direito a decidir. Tal posição resulta daquela
que é talvez a sua convicção mais profunda — a Catalunha dispõe de todos os
atributos necessários para ser considerada um sujeito político próprio e, como
tal, tem de ser reconhecida e tratada. No fundo, trata-se de uma questão de
soberania.
Joaquim Nadal recusa em absoluto uma concepção
étnica ou essencialista do nacionalismo, que remete para o campo das paixões
perigosas. Ele é um moderado, adepto do diálogo racional, consciente de que só
há um plano onde o tema catalão poderá ser devidamente tratado — o plano
político. Não acredita, no entanto, que isso venha a ocorrer nos próximos
tempos. Fala com amargura de um duplo impasse trágico — um na Catalunha e outro
na Espanha. Antes de sair para ir apanhar o comboio para a sua cidade de Girona
ainda tem tempo para ironizar acerca dos actos de insubordinação civil
praticados por jovens nas ruas de Barcelona — finalmente, diz com um ligeiro
sorriso, os filhos dos anarquistas encontraram-se com os filhos de uma certa
burguesia nacionalista e conservadora. Acha que daí não virá grande mal ao
mundo. O professor Nadal, político superior, homem sereno, seria
provavelmente de uma grande utilidade se as paixões não andassem tão
desenfreadamente à solta.
3. No período franquista o catalanismo foi objecto de uma inaudita repressão
política e cultural. O nacional-espanholismo de índole ultra-conservadora
que constituía a verdadeira ideologia do regime não tolerava qualquer tipo de
manifestação dos chamados nacionalismos periféricos. Isso acabou por contribuir
fortemente para o reforço da ligação entre o catalanismo cultural e a esquerda
social e política catalã. Com a transição democrática
abriram-se naturalmente novas perspectivas ao projecto autonomista. As principais forças
políticas espanholas compreenderam depressa que tinham de conceber um novo
quadro institucional capaz de satisfazer as pretensões das nacionalidades
históricas sem pôr em causa o carácter unitário do Estado. Acabaram por
engendrar uma solução ardilosa, mas momentaneamente eficaz — o célebre modelo
do “café para todos” — que consistiu na criação de múltiplas regiões
autónomas diluindo, deste modo, num contexto de ampla descentralização as
singularidades da Catalunha, do País Basco e da Galiza. Ao País Basco ainda
reconheceram certas peculiaridades, aos catalães nem sequer isso.
Apesar disto, durante quase três décadas tudo
parecia correr pelo melhor na relação entre a Catalunha e Madrid. Para isso terão concorrido
dois factores do lado catalão: o elevado nível de auto-governo e a consagração
da primazia da língua catalã no sistema de ensino daquela região autónoma. Um fenómeno político marcará
todo esse período e passará à História sob a designação de “pujolismo”. Jordi Pujol, um catalanista de origem burguesa e de
extracção liberal, fundador da célebre Banca Catalana, perseguido e preso
pelo franquismo, emergiu logo nas primeiras eleições regionais como a grande
figura política da Catalunha. O seu longo consulado ficou inquestionavelmente
marcado pelo avanço da autonomia catalã e pelo significativo aumento da
influência da Catalunha em toda a política espanhola. Assistia-se, assim, à
plena concretização de uma velha aspiração de algumas das elites liberais de
Barcelona — a Catalunha tinha-se transformado na força propulsora da
modernização de toda a Espanha. Tudo mudou, porém, quando José María Aznar ganhou pela segunda vez as
eleições gerais, mas desta vez com maioria absoluta. O primeiro-ministro
conservador, contrariamente a Felipe González, tolerava mas não apreciava
Pujol. Tão pouco lhe agradavam as autonomias em geral, e provavelmente a catalã
em particular. Aznar tinha um novo projecto para Espanha que assentava em
grande parte na capitalidade e na centralidade de Madrid. Nuvens negras
começavam a pairar de novo sobre a Catalunha. O “pujolismo” estava liquidado,
sucedia-lhe uma coligação de esquerda liderada por Pasqual Maragall, o neto do grande poeta e
catalanista Joan Maragall.
4. Enric Marín e Joan Tresserras são professores no
Departamento de Comunicação da Universidade Autónoma de Barcelona. São ambos militantes da Esquerda
Republicana Catalã (ERC) e acabam de publicar em conjunto um livro
intitulado Obertura Republicana. Catalunya, después del nacionalismo.
Marín, com quem tive o privilégio de conversar
durante algumas horas, preconiza abertamente um independentismo não
nacionalista. Define-se a si próprio como um social-democrata
ecologista, radicalmente europeísta. É o oposto de um nacionalista metafísico e
dogmático. Considera mesmo fundamental a abertura de um espaço de diálogo com a
esquerda não independentista da Catalunha. Ao longo da conversa insiste
várias vezes num ponto que considera fundamental: a grande fractura na sociedade catalã não é a
que separa independentistas de unionistas, mas sim aquela que separa os
catalães que são favoráveis ao direito a decidir daqueles que se opõem à
existência de tal direito. Este novo enfoque muda substancialmente a
perspectiva da realidade. Passa-se de um confronto entre dois blocos de
expressão semelhante para uma contraposição onde há uma maioria clara: as
sondagens indicam que 70% dos catalães são favoráveis ao direito a decidir.
No fundo estamos diante da exigência iguzalmente feita por Joaquim Nadal. Há uma maioria clara e expressiva de catalães
que reclama para a Catalunha o estatuto de sujeito político soberano. A questão
da independência acaba por ser secundária e não suscita, nem de longe nem de
perto, tão amplo entendimento.
Martín perspectiva a prazo uma Catalunha
independente, profundamente democrática e europeísta, assente num novo contrato
social capaz de garantir uma maior participação de todos os segmentos da
sociedade, nomeadamente daqueles que resultam de múltiplas migrações de origem
interna e externa. Barcelona teria então condições para se afirmar como a
grande capital do Mediterrâneo.
Este professor sabe, contudo, que haverá ainda um
longo caminho a percorrer até uma eventual independência da Catalunha.
Reconhece, sem qualquer dificuldade, que não se podem dar mais passos
precipitados. Fala-me abertamente dos três grandes erros cometidos pelos
independentistas: sobrevalorizaram a sua força; não conseguiram passar a
mensagem; menosprezaram a capacidade de reacção do Estado espanhol. A lucidez deste republicano
de esquerda e socialista talvez venha a ser de grande utilidade, não apenas
para a Catalunha, mas também para o futuro imediato de Espanha.
5. La Vanguardia não é só um jornal de referência, é uma verdadeira
instituição de uma Catalunha próspera que se pretende ver a si própria como
liberal e cosmopolita. Funcionárias afáveis conduzem-me para uma
confortável sala envidraçada no décimo sétimo andar do imponente edifício que
alberga todo o grupo editorial de que La Vanguardia faz parte. A
noite vai caindo sobre Barcelona proporcionando-me belíssimas imagens de uma
cidade que denota organização e bem-estar enquanto vou conversando com um outro
interlocutor. Trata-se de um alto quadro deste grupo editorial. Em todas as
suas palavras há equilíbrio, rigor, ponderação. Uma expressão perfeita do
famoso “senny” catalão, essa atitude identificada precisamente por tais
características. Fala com amargura da presente situação, não acredita numa
solução a breve prazo. A dada altura refere mesmo a célebre afirmação atribuída
ao general Baldomero Espartero: “Por el bien de España hay que bombardear
Barcelona una vez cada 50 años”. Essa simples citação revela a inquietação que
o domina. Sabe que há razões para olhar para o futuro com angústia.
6. Barcelona e a Catalunha vão ficando para trás. Uma recordação vai
sobressaindo no meio de todas as demais. Sábado à tarde em plena Gran Via des
Corts Catalanes, mesmo junto à praça da Universidade milhares de pessoas erguem
bandeiras catalãs, gente de todas as idades e estratos sociais, uma comoção
digna vagueia pela atmosfera. No palco uma jovem canta Blowin’ In The
Wind, de Bob Dylan. A multidão acompanha. Um misto de épica e de melancolia
habita momentaneamente aquele lugar. Acreditarão estas mulheres e estes homens
genuinamente na viabilidade da ideia da independência da Catalunha? Não sei. É
provável que eles também não saibam. E talvez nem sequer seja determinante
conhecer a resposta.
COMENTÁRIOS
Henrique
Duarte, 02.12.2019: Um texto muito elucidativo.
Luís F, 02.12.2019: Muito bom texto. Parabéns por mostrar as nuances do
assunto, o que não é nada habitual.
Visitante da Noite, 01.12.2019: O Sr. deputado refere várias vezes o pujolismo
evitando uma questão central que explica em parte a activação recente do
movimento independentista: a corrupção das elites burguesas catalãs que estão
no poder praticamente desde a democracia.
Eu mesmo, 01.12.2019: Está bem, está. Já em Espanha é tudo honesto. A
começar pelos recém condenados na Andaluzia.
Visitante da Noite, 01.12.2019: Uma coisa não tira a outra. Um artigo que se pretende
falar das "subtilezas" da questão catalã não pode branquear uma personalidade
como o Jordi Pujol.
Henrique Duarte, 02.12.2019: O Partido Popular espanhol tem cerca de 1000 membros
imputados por corrupção. Mil! Só de má fé se pode usar o caso de um
catalão,esquecendo a corrupção gigantesca que existe nas outras regiões de
Espanha em geral, para atacar o independentismo catalão.
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