Acabamos por tudo permitir em termos de liberdade de expressão. O tal Ventura também me pareceu desadequado, querendo sobressair a
todo o custo, arrojando as suas pedradas em pleno auditório, sem nenhum decoro.
Ferro Rodrigues proibiu-o
de continuar, e foi igualmente grosseiro. E nitidamente ditatorial, o que parece
punível em democracia, mas um proceder que Ferro Rodrigues aplica sem esforço. José Pacheco Pereira censura-o, por esse motivo, sem as graças de Alberto
Gonçalves, numa prosa séria e de
elevado nível de registo. Mas fá-lo também para se sair bem na sua moderação,
pois, de facto, deixa escapar insinuações sobre Ventura que o definem, a ele PP, como pessoa profundamente liberal, e isenta de parti
pris, ao parecer defendê-lo. Não sei se pega.
OPINIÃO
O policiamento da linguagem
Muito pior do que a “vergonha” de André Ventura são as palmas
entusiásticas do grupo parlamentar do PS aos propósitos censórios de Ferro
Rodrigues.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 14 deDezembro de
2019,
Uma das consequências de uma doença contemporânea da política em
democracia nos dias de hoje é o cada vez maior policiamento do pensamento, das imagens,
das informações e da linguagem. É um efeito de uma outra tendência dos nossos dias, o incremento do tribalismo que define também as suas
fronteiras pela posse ou recusa de léxico que serve de marca de identidade. São processos muito perigosos para a democracia
porque não se desenvolvem na fronteira entre democracia e ditadura, mas sim
no interior da democracia e dos seus processos de funcionamento. São doenças em
que o agressor não vem de fora, mas de dentro, em que o corpo sadio se destrói a
si próprio.
São doenças que têm a ver com a cultura e a sociedade,
mas que são potenciadas pela existência de ecologias patológicas, a mais
importante das quais são as redes sociais, um
ambiente miasmático tão pernicioso como um lago sulfuroso, em que a primeira coisa
a perder-se é a verdade, ou mesmo a procura da verdade e, logo a seguir, vai a
liberdade. O problema é que a pior resposta a este processo é a censura
e são as proibições, como se o enxofre se fosse embora por se esconder o lago
com tapumes. Pelo contrário, os miasmas do lago reforçam-se com os tapumes e os
fumos tóxicos impedem-nos de ver os problemas reais que estão na origem do
crescimento do ressentimento, da exclusão, do recalcamento, da marginalização,
no interior da democracia. Não vemos, nem queremos ver, depois
tapamos o dique com o dedo e os gases com os tapumes.
A verdade é que se somam todos os dias verdadeiras
proibições de utilização de vocábulos e expressões, com
a constituição de um léxico proibido, dependente de grupos de pressão, e de modismos,
aplicados nas redacções dos órgãos de comunicação social e em redes sociais,
que permitem insultos, insinuações, falsidades, processos de intenção, mas
cortam objectivamente a liberdade de expressão, que – tem que se dizer
isto mil vezes – é feita para proteger o direito de dizer coisas com
que não concordo, que me indignam, e que me enojam, mas que têm o direito de
ser ditas.
Este caminho censório não se limita às palavras e
estende-se às imagens e mesmo às notícias. Já denunciei aqui a prática do
Facebook de fazer cortes daquilo que considera atentar contra as suas regras
comunitárias. Mas, o
mais grave é a completa barreira a qualquer contestação dos seus critérios e a
uma discussão e eventual recurso de decisões arbitrárias, é uma censura por ignorância
e proselitismo. O mal é que este tipo de práticas censórias se estende para o
conjunto da comunicação social, como foi a reveladora resposta a um artigo de Fátima Bonifácio, mas,
mais grave ainda, é a censura noticiosa. Um dos exemplos que já
referi – bastante se não completamente solitário – foi a ausência
de cobertura jornalística às manifestações de apoio a Bolsonaro feitas por elementos da comunidade brasileira em
Portugal, sendo que, no fim, foi a candidatura escondida no silêncio que acabou
por ser vitoriosa em Portugal. Há aqui um falhanço profissional do jornalismo,
mas também uma censura subjectiva ou objectiva, daquilo que não queremos ver,
nem falar, porque o abominamos.
A verdade, por muito que custe, é que a censura à direita radical,
da extrema-direita aos grupos identitários e “étnicos”, vem
da esquerda, sem perceberem que
numa sociedade democrática podem atacá-los politicamente com veemência, mas têm
que lhes dar o direito da liberdade de expressão e organização, até aos limites
constitucionais. E digo
assim, moderando-me, porque eu pessoalmente entendo que a constituição é
iliberal face ao extremismo de direita, e que uma sociedade democrática sadia
suporta bem o extremismo no âmbito da lei, mas é muito mais fragilizada por uma
censura que é difusa, discricionária e dependente das modas.
Tudo isto vem a propósito, como se imagina, da admoestação de Ferro Rodrigues a André Ventura sobre a excessiva utilização da palavra “vergonha”
e “vergonhoso” nas suas intervenções parlamentares. Fez mal, não porque
Ventura se sinta muito incomodado pela “vergonha” do seu país, personificada
nos seus colegas políticos e parlamentares, mas porque o policiamento da
linguagem é um caminho perigoso e sem retorno. Deixem lá o homem falar para
a sua clientela de indignados profissionais nas redes sociais e, se querem
tirar-lhe o terreno à “vergonha”, denunciem antes as “vergonhas” que ele
oculta e que o fazem ser o que é, até porque não vão faltar razões, se
estiverem atentos e tiverem paciência para falarem com razão.
Eu não me sinto muito contente por ter que estar a defender gente que
considero pouco recomendável, mas não deixarei de o fazer se entender que a sua
liberdade de expressão estiver a ser posta em causa. Porque, muito pior do
que a “vergonha” de André Ventura, são as palmas entusiásticas do grupo
parlamentar do PS aos propósitos censórios de Ferro Rodrigues.
Colunista
COMENTÁRIOS
Joao, 14.12.2019 : Concordo
claramente. A censura e a auto-censura são do mais ignóbil, a perseguição e a
punição de quem pensa e diz coisas inconvenientes, o mesmo. Hoje a auto
intitulada democracia não tem vergonha alguma em utilizar a censura
sistemática, preventiva e punitiva, para domar as narrativas e as ideias, para
evitar que o Zé, que corre entre os trabalhos e os centros comerciais, perca
tempo a pensar ... serve-lhe uma "verdade" já aprovada e mastigada e
é só engolir.
José Manuel Martins, 14.12.2019: o pavor do Real
manifesta-se muito a montante das vergonhas e desvergonhas de parlamento: num
dicionário online de Inglês (aliás, excelente), encontra-se, a respeito da
palavra 'foreplay', a seguinte vinheta beige de prevenção, introduzida por
triângulo de sinalização rodoviária de perigo: 'Note: This page may contain
terms or definitions that are offensive or inappropriate for some readers.' O
Poder é aqui exercido na exacta medida em que institui um sujeito ético
fantasmático indeterminado (que, evidentemente, não existe), para poder actuar
fantasmaticamente em seu nome. Juntam-se três fantasmas: a entidade lesável,
o censor que a representa, e o mandato de representação. Esses três fantasmas,
obtidos por subtracção kafkiana, configuram o novo tridente do poder, e seu
modo e estratégia.
correiaramos, 14.12.2019 : JPP exagera. Não
se trata de censura o que se passou no Parlamento. O insulto e a linguagem
banal e grosseira não podem ser proibidos mas podem e devem ser evitados por quem
tem o dever cívico e politico de representar o povo. Assim sendo, um aviso ou
uma admoestação nada tem a ver com censura, mas antes com regras de convivência
e educação.
ramalheira63, 14.12.2019: Caro Pacheco
Pereira não me lembro de alguma fez ter concordado consigo, nem nos tempos em
que foi líder parlamentar do PSD por altura dos Governos de Cavaco Silva. Hoje
estou de acordo consigo!
viana, 14.12.2019: O problema deste
incremento do conflito de opinião não resulta apenas no sofrimento que provoca,
mas também das dinâmicas sociais que gera. Ou seja na mudança de atitudes que
provoca. Em particular, não faz qualquer sentido aceitar que uma ideologia que
despreze a democracia se difunda, ganhe adeptos, infiltre as forças de segurança,
obtenha o poder de Estado, e só depois se combata eficazmente. Será então tarde
demais. Lamento mas não faz qualquer sentido deixar que o inimigo, e é mesmo um
inimigo, ganhe a melhor posição estratégica, e inicie a ofensiva, para depois o
combater. Não vivemos no "reino dos cavaleiros e das fadas".
Lourenço, 14.12.2019: O que não faz
sentido é esse seu comentário. Pacheco Pereira como habitual a recentrar a
questão no que realmente importa.
viana, 14.12.2019: Relativamente a
alguns assuntos, o JPP parece viver numa outra época. "Censura"
sempre houve, em qualquer regime político, em todas as culturas. Simplesmente
porque nunca houve acesso igual aos meios de comunicação. Portanto,
efectivamente, quem não tinha acesso a esses meios via as suas opiniões
"censuradas", na medida em que lhes era negado a sua difusão. Na
prática, um camponês analfabeto via a sua opinião tão "censurada" como
um citadino intelectual que não pudesse divulgar as suas opiniões por interdição
do Poder politico e/ou sócio-económico. Deste ponto de vista, há muito menos
"censura" agora do que havia antes. Um dos resultados foi a ampliação
do leque de opiniões não "censuradas", o que inevitavelmente aumentou
o nível de conflito entre opiniões. (cont.)
laura neves, 14.12.2019: Infelizmente
tenho que lhe dar razão. Teve mais palco, e isso é o que jamais lhe deveriam
dar tal como a joacine. Eles querem é fazer da A R um circo com a comunicação
social a falarem deles.
Conde do Cruzeiro, apenas assinante., 14.12.2019:
Nunca esperei ver o JPP, a defender que
a linguagem na AR se deva de transformar em conversa de tasca ou pior, em
confrontos de comentários de fóruns rascas.
Hjmp, 14.12.2019: O sr ventura deveria saber que a
assembleia da república é um local de respeito, onde não se admitem as boçalidades
às quais ele está habituado, nem está ao nível do seu local apropriado de
opinião.
AndradeQB, 14.12.2019: Ainda bem que há
quem saiba o que é decisivo para a que a liberdade seja preservada, e com ela,
o sempre possível sair dos patamares mais baixos do exercício da politica. Nisto
estou de acordo com JPP, como estou com Manuel Alegre e estaria com Mário
Soares. Haja alguém que saiba o que é verdadeiramente a liberdade.
Ceratioidei,
14.12.2019: Subscrevo na íntegra. Pela primeira vez
vejo-me obrigada a defender o Ventura. Não lhe perdoo (a Ferro Rodrigues) tal
afronta.
Manuel:
Parece haver um padrão pouco
democrático, no ps, de convívio com a liberdade expressão e vozes dissonantes
do politicamente correto. O caso da Manuela Moura Guedes, os telefonemas ameaçadores
do Costa a jornalista, o cancelamento do programa Rtp, etc.
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