Um artigo desinibido de um jovem médico – Nuno Parente - que ataca frontalmente toda
uma hábil exploração das tendências hipocondríacas da sociedade, porque isso se
traduz em lucro, quer para as empresas fabricantes, quer para os meios
mediáticos que assim difundem a ilusão da saúde. Agora até os multibancos
entram no despique! Quanto à hiperactividade das crianças... os próprios cafés
onde nos libertamos, por vezes, da monotonia doméstica, admitem o império dos
meninos, por vezes, numa actividade ruidosa e bulhenta, sem a intervenção dos
pais que, democraticamente, os querem livres de peias, desistindo das normas
educativas, que mais tarde, impotentes, substituem por medicação domável...
"Disease mongering". O culto português que (ainda) nos assombra
Andam a vender-nos doença, de mãos nos bolsos e a assobiar, e nós
compramos barato, satisfeitos por descobrirmos uma suposta enfermidade que não
mudará em nada a nossa vida, mas trará muita ansiedade.
Espero que o vosso Natal seja
rico em afectividade e que todos desejem, como é moda, perto das 23h59 do 31 de
Dezembro, um ano cheio, atulhado, pronto, que rebente pelas costuras de saúde
para aqueles que vos aconchegam o coração e/ou supliciam o juízo.
Vou exactamente iniciar este texto por essa ânsia cega, desmedida,
pseudo-altruísta de bem-estar do próximo, que vigorosamente se impõe depois dos
excessos materiais egocêntricos e até alimentícios do Natal e arredores que são
prósperos e contribuintes para um estado de saúde física e mental completo
nesta altura. O que significa então este superchavão médico —
“disease mongering”? Em termos
mais transparentes que água da nascente da Serra da Estrela traduz-se
basicamente em “comercializar”
a doença através do alargamento dos seus limites com vista a lucro de
prestadores de determinado exame/tratamento. Ora bem, é actualmente um dos tsunamis da
medicina e responsável por transformar pessoas sãs em doentes etiquetados,
desperdiçar recursos em questões vazias e originar dano quer por resultados
limítrofes ou falsos positivos em exames, quer por tratamentos sem indicação
formal e, muitas vezes, com efeitos adversos bem expressivos. Desta forma,
a tendência será a prescrição de exames/medicamentos para doenças de gravidade
cada vez menor até ao ínfimo tutano da simplicidade sana, eclipsando-se o
cenário na sátira de Ray Moynihan do dia 1 de Abril de 2006 em que descreveu,
pela primeira vez, a perturbação de deficiência motivacional, maleita que
poderia afectar 1 em cada 5 empresários e obrigaria à toma de medicamentos
para combater a preguiça aconchegante do sofá.
De facto, nós, os
portugueses, somos dos maiores compradores de doença. Vou dar um exemplo claríssimo. Os
programas da manhã. Desde há
muitos anos que assistimos à inundação do daytime com anúncios de produtos que
fazem maravilhas como o cogumelo do tempo, entre outros qualificados
companheiros. Por outro lado, cada vez é mais rotineiro na consulta a indagação
intempestiva sobre a eficácia deste ou outro suplemento, com relatos de magia
ancestral contra os quais a minha humilde ciência não pode vencer. A questão é:
“vós achais que existe algum estudo que conclua que um homem ou mulher que
tome diariamente cogumelos do tempo, comparando com outro(a) que não os tome,
envelhece menos rapidamente?”. A resposta é um redondíssimo não. Para além desta propaganda do mercado dos
suplementos alimentares, que é realmente lucrativa (atente-se ao caso da
vitamina D que é um dos negócios mais bem sucedidos e vale biliões de dólares
nos Estados Unidos da América), temos sido recompensados com visitas bastante
regulares de diversos médicos nestes programas. Ora médicos de família, ora
pediatras, ora especialistas de especialidades mais específicas.
Será que isto nos ajuda no trabalho? Não me parece, de todo. Devem estar a ponderar se o meu negativismo é
mania-mania ou cepticismo muito ponderado. Sinceramente, se eu me
transfigurasse em vós, ficar-me-ia pelo último. Vou esclarecer-vos com uma
mini-revisão muita prática relacionada com o cancro da próstata. Corria o
Setembro de 2019, com ou sem chuva não vislumbro agora, e no programa da manhã
(penso que no canal no 3) falava-se sobre próstata. Em tom de brincadeira, para
aproximação das classes sociais (na minha opinião claramente hiperbólica já que
estamos a falar de saúde), ditou-se que seria importante o homem realizar, a
partir dos 50 anos, o toque rectal e a medição do PSA (“…uma análise
fundamental para perceber se há cancro na próstata ou não”).
População portuguesa, levantai os braços se me ouvis! Se há rastreio
que ainda não demonstrou qualquer impacto benéfico significativo na mortalidade
é o do cancro da próstata. Nas normas de orientação clínica portuguesas o que
está explanado é que os riscos deste rastreio devem ser discutidos com o doente
(ainda que seja herculeamente trágico transpô-los para linguagem simples) e que
se deve tomar uma decisão partilhada.
A vítima somos nós que estamos de olhos esbugalhados a absorver toda
esta manipulação matreira e dissimulada. Se isto não vos faz soar campainhas é
porque andais desatentos meus caros.
Aliás, o caso é mais negro do que possam pensar. Outro dia, num
supermercado deste país, estava eu pronto para levantar uma ou duas notas e
deparo-me, na fase da pré-marcação de código secreto, com uma publicidade de um
hospital privado que dizia: “Cancro da próstata: 90,9% dos doentes sobrevivem quando o diagnóstico é
precoce”. Portanto, eles andam escondidos nos pingos da chuva e antes de vos
lançardes nessa jangada perigosa, em caudais desconhecidos, falai com o vosso
médico de família.
É sempre engraçado perceber que neste jogo do comércio da doença há
normalmente uma trilogia de sabores — a ciência, a história e a vítima. A ciência é usualmente representada por alguém com suposto
conhecimento científico, superior, que através do caminho da falácia da autoridade
trará mais ou menos respeito e segurança. A história normalmente é contada por uma celebridade que nos diz
muito ou pouco ao coração e nos faz reluzir que a esperança é realmente a
última a morrer, podendo quiçá (in)corrermos contra o tempo como Benjamin
Button. A vítima somos nós que estamos de olhos esbugalhados a
absorver toda esta manipulação matreira e dissimulada. Se isto não vos faz soar campainhas é porque andais
desatentos meus, caros.
Eu sei que é tempo de bacalhau mas isto, com raras
excepções, acopla quase sempre uma pescadinha de rabo na boca. Vós
sois assoberbados com informação inútil, que transpira uma doença que não
sabíeis deter, ides procurar um médico que vos responda às dúvidas
dilacerantes, este médico (se seguir o molde da medicina baseada na evidência
de qualidade) desapontará as vossas expectativas, a insatisfação crescerá
dentro de vós como um mal ardente, abalará os próximos contactos entre os dois
e degenerará a relação médico-doente e procurareis resposta em realidades alternativas
(homeopatia, práticas chinesas, etc) que vos ouvirão com olho sorridente e, através do
além, serão o ponto de partida para novas desinformações ultra-dramáticas que
reiniciarão a vida da pescadinha.
Pensai que nós próprios somos óptimos em promover
doença. Um doente,
assim como aproximadamente 3/4 da população portuguesa, pode sofrer de dor
lombar inespecífica mas, ainda assim, terá uma probabilidade baixíssima de ter
uma patologia grave, do foro cirúrgico ou não. Contudo, enquanto eu disponho do
meu tempo para tentar resolver a sua ambivalência relativamente à importância
do benefício evidente de um estilo de vida mais saudável que inclua, por
exemplo, actividade física regular, moderada a intensa, pelo menos 150 minutos
por semana, o doente está vocacionado para a doença e, sem centralizar o que
eu proferi, grita em sofrimento: “Ró- X!”.
De igual modo, hoje em dia, é também francamente comum a tentativa de
banalização de doenças do foro psiquiátrico em crianças. Respeitosamente, atenção respeitosamente, há muitos
pais que julgam que o filho(a) sofre de uma perturbação de hiperactividade e
défice de atenção, quando na pura e crua da verdade ele(a) sofre é de falta de
educação, ou seja, um rigoroso e meticuloso esquema de regras. A postura cada
vez mais passiva e submissa dos pais faz com que os filhos não desenvolvam os
mecanismos de coping, ou seja, ferramentas que lhes permitam combater
adversidades, e, por isso, é também provável que prossigam com sessões
infindáveis, de meses, de terapia ocupacional só para saber lidar melhor com a frustração.
É premente maior investimento no controlo sobre as matérias de saúde
noticiadas. Em Portugal sítios como Scimed, com maior foco no público, ou
Evidentiamedica, com maior foco nos profissionais médicos, são revoltos em
qualidade, contudo, falta-nos alcançar um equilíbrio nos media. O HealthNewsReview.org nos
Estados Unidos da América só nos primeiros 22 meses de actividade reviu 500
notícias e concluiu que transversalmente se falhou na discussão da qualidade da
evidência científica, alternativas, custos e “peso” absoluto de benefícios e
danos.
Em suma, andam a vender-nos doença, de mãos nos bolsos e a assobiar, e
nós compramos barato, satisfeitos por descobrirmos uma suposta enfermidade que não
alterará em nada a nossa vida futura, mas trará certamente uma ansiedade
efervescente e demoníaca de resolver algo que, em benefício para a saúde, é um
busilhão.
COMENTÁRIOS
Armando Brito de Sá: Um excelente texto, que toca em várias áreas críticas,
hoje bem identificadas, sobre as quais é muito difícil mudar mentalidades e
atitudes. Atenção ao problema da PHDA (perturbação de hiperatividade e défice
de atenção) que encontramos simultaneamente mal diagnosticada e
subdiagnosticada. Temos muito trabalho de esclarecimento à nossa frente.
Martim Cabral: E as patifarias das farmacêuticas??? Todas...
Venezuela Livre > Martim Cabral: Não os tome que ninguém o obriga.
João Valdoleiros: Excelente comentário meu caro jovem colega,
profundamente assertivo quanto ao "clima", que desde sempre rodeou o
trabalho dos profissionais de Medicina, começando pelo modus operandi dos
senhores delegados de informação médica, que utilizam toda a espécie de
"argumentos" para vender tantas vezes uma mera banha de cobra.
Parabéns Nuno Parente, são jovens como você, que me fazem ainda acreditar na
"minha" Medicina em Portugal.
Joaquim Zacarias: SR.Doutor,nem todos os portugueses são
hipocondríacos..E a aversão que demonstra ter com os suplementos
alimentares,vai-lhe passar com o avanço da idade,já que de alimentação,parece
nada saber.
Mike Road: "De igual modo, hoje em dia, é também francamente
comum a tentativa de banalização de doenças do foro psiquiátrico em crianças.
Respeitosamente, atenção respeitosamente, há muitos pais que julgam que o
filho(a) sofre de uma perturbação de hiperactividade e défice de atenção,
quando na pura e crua da verdade ele(a) sofre é de falta de educação, ou seja,
um rigoroso e meticuloso esquema de regras. A postura cada vez mais passiva e
submissa dos pais faz com que os filhos não desenvolvam os mecanismos de coping,
ou seja, ferramentas que lhes permitam combater adversidades, e, por isso, é
também provável que prossigam com sessões infindáveis, de meses, de terapia
ocupacional só para saber lidar melhor com a frustração.". Infelizmente
existem nódoas em todo o lado, o camarada é só apenas mais uma. Além de não ter
direito a opinião (nem formação) na matéria, esclarece a completa ignorância em
relação ao neurodesenvolvimento. Oportunidade de ouro para estar calado, que
deixou escrito. Vergonha.
Carlos Almeida: artigo corajoso capaz de trazer dissabores ao médico
seu autor
victor guerra: Já não há médicos que saibam "mexer" nos
clientes,nem sequer usar estetoscópio,ou seja conhecer o corpo humano,Por isso
defendem-se com exames e diagnósticos, que alimentam a indústria médica Eu, que
já "tive" um cancro da próstata,acho que este sujeito é ignorante
Marina Molares: é exactamente isso .querem que as pessoas pensem que o
corpo tende para a doença quando tende é para o equilibro. e se fosse suposto
andarem a ver-nos constantemente por dentro tínhamos nascido com um periscópio
acoplado.
gostomuito dequeijo: Caro Parente, Pelo nome deves de ser cá de cima e
sabes do que falas. Eu, profissional de saude reformado encho-me de gozo e de
pena quando vejo colegas(?) eu chamar-lhe-ia propagandistas da doença a debitar
bojardas e conselhos em directo na televisão em horas a que esses clínicos
deveriam estar a trabalhar nos seus hospitais e centros de saúde, promovendo a
banha da cobra e que os pseudo doentes gastam balúrdios e depois vêm queixar-se
que os medicamentos estão caros, O negócio esconde por trás um outro não menos
importante que é o dos transportes a utentes quase na totalidade controlada
pelo bombeiral. Outro negócio importante é o dos gases, oxigénio a copo e ao
domicílio, com eventual controle em "rede de malha larga", que rende
muitas "royalties" que são devidamente pagas. Acredito que em 95% dos
casos são absolutamente desnecessárias e por mim falo pois houve quem me
vendesse esse produto (um colega muito diferenciado) e que só uso duas ou três
vezes por ano quando estou constipado, mas a pingadeira funciona criando-se a
noção de "imprescibilidade" do dito tratamento. Sem entrar no SNP
(serviço nacional de psicologia) que todos os dias escoicinham para terem um
naco do bolo, Enfim!
Nuno Vilhena: Também nos vendem esquerdites e direitites ou
centrites. E anda tudo doente. Os senhores dos grandes grupos económicos vendem
tudo. Haja mercado e ovelhas no pasto.
Venezuela Livre > Nuno Vilhena: Méé.
Maria Augusta Martins: parabéns pelo artigo, pois procura pôr a nu aquilo que
poucos vêem e que outros não querem ver. Trata-se da espiral consumidora de
saúde, que não de doença, com que os profissionais desse ramo querem fazer
render o peixe e ganhar mais uns euros, fazendo duma vulgar gripe um sumidouro
de dinheiro ou duma gravidez vulgar um pote de libras, para quem explora, claro
está. Por essas e outras razões e devido ao nosso SNS (tendencialmente gratuito)
para que funcione como os políticos e interessados querem são precisos pelo
menos 250 000 médicos, e 400 000 enfermeiros afora técnicos e peniqueiros, A
saúde está cada vez mais um carrossel em que os profissionais estão mais
interessados em garantir trabalho aos seus pares do que em tratar doentes e
patologias. mas garantido que vai piorar!
Zacarias Bidon: Eu já reparei que no domínio da patologia existem
modas, tal e qual como no domínio do vestuário. Aqui há uns anos o chique era
ser celíaca (falo no feminino porque nunca me cruzei nem ouvi falar de homens
que sofressem dessa maleita). Hoje em dia já é uma doença proletária. Até uns
vizinhos meus, ela educadora de infância e ele desempregado/ biscateiro, têm um
filho celíaco (sei que isto contradiz o que digo acima sobre o facto de a
doença celíaca ser uma doença de mulheres, mas neste caso o doente é demasiado
pequeno para escolher e tenho a certeza de que se curará espontaneamente assim
que atingir a adolescência).
Não estou muito a par das tendências, mas penso que neste momento o chique é ter síndrome de Asperger. Ou era, pois parece que recentemente uma americana publicou um livro em que conta que o senhor que dá o nome à doença era um nazi horroroso...
Não estou muito a par das tendências, mas penso que neste momento o chique é ter síndrome de Asperger. Ou era, pois parece que recentemente uma americana publicou um livro em que conta que o senhor que dá o nome à doença era um nazi horroroso...
Armando Azevedo > Zacarias Bidon : faz mais sentido agora as atitudes da Greta.
Zacarias Bidon: Benza-o Deus, Doutor, assim é que é falar!
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