terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Maleitas sociais


Um artigo desinibido de um jovem médico – Nuno Parente - que ataca frontalmente toda uma hábil exploração das tendências hipocondríacas da sociedade, porque isso se traduz em lucro, quer para as empresas fabricantes, quer para os meios mediáticos que assim difundem a ilusão da saúde. Agora até os multibancos entram no despique! Quanto à hiperactividade das crianças... os próprios cafés onde nos libertamos, por vezes, da monotonia doméstica, admitem o império dos meninos, por vezes, numa actividade ruidosa e bulhenta, sem a intervenção dos pais que, democraticamente, os querem livres de peias, desistindo das normas educativas, que mais tarde, impotentes, substituem por medicação domável...
"Disease mongering". O culto português que (ainda) nos assombra
Andam a vender-nos doença, de mãos nos bolsos e a assobiar, e nós compramos barato, satisfeitos por descobrirmos uma suposta enfermidade que não mudará em nada a nossa vida, mas trará muita ansiedade.
 Espero que o vosso Natal seja rico em afectividade e que todos desejem, como é moda, perto das 23h59 do 31 de Dezembro, um ano cheio, atulhado, pronto, que rebente pelas costuras de saúde para aqueles que vos aconchegam o coração e/ou supliciam o juízo.
Vou exactamente iniciar este texto por essa ânsia cega, desmedida, pseudo-altruísta de bem-estar do próximo, que vigorosamente se impõe depois dos excessos materiais egocêntricos e até alimentícios do Natal e arredores que são prósperos e contribuintes para um estado de saúde física e mental completo nesta altura. O que significa então este superchavão médico — “disease mongering”? Em termos mais transparentes que água da nascente da Serra da Estrela traduz-se basicamente em “comercializar” a doença através do alargamento dos seus limites com vista a lucro de prestadores de determinado exame/tratamento. Ora bem, é actualmente um dos tsunamis da medicina e responsável por transformar pessoas sãs em doentes etiquetados, desperdiçar recursos em questões vazias e originar dano quer por resultados limítrofes ou falsos positivos em exames, quer por tratamentos sem indicação formal e, muitas vezes, com efeitos adversos bem expressivos. Desta forma, a tendência será a prescrição de exames/medicamentos para doenças de gravidade cada vez menor até ao ínfimo tutano da simplicidade sana, eclipsando-se o cenário na sátira de Ray Moynihan do dia 1 de Abril de 2006 em que descreveu, pela primeira vez, a perturbação de deficiência motivacional, maleita que poderia afectar 1 em cada 5 empresários e obrigaria à toma de medicamentos para combater a preguiça aconchegante do sofá.
De facto, nós, os portugueses, somos dos maiores compradores de doença. Vou dar um exemplo claríssimo. Os programas da manhã. Desde há muitos anos que assistimos à inundação do daytime com anúncios de produtos que fazem maravilhas como o cogumelo do tempo, entre outros qualificados companheiros. Por outro lado, cada vez é mais rotineiro na consulta a indagação intempestiva sobre a eficácia deste ou outro suplemento, com relatos de magia ancestral contra os quais a minha humilde ciência não pode vencer. A questão é: “vós achais que existe algum estudo que conclua que um homem ou mulher que tome diariamente cogumelos do tempo, comparando com outro(a) que não os tome, envelhece menos rapidamente?”. A resposta é um redondíssimo não. Para além desta propaganda do mercado dos suplementos alimentares, que é realmente lucrativa (atente-se ao caso da vitamina D que é um dos negócios mais bem sucedidos e vale biliões de dólares nos Estados Unidos da América), temos sido recompensados com visitas bastante regulares de diversos médicos nestes programas. Ora médicos de família, ora pediatras, ora especialistas de especialidades mais específicas.
Será que isto nos ajuda no trabalho? Não me parece, de todo. Devem estar a ponderar se o meu negativismo é mania-mania ou cepticismo muito ponderado. Sinceramente, se eu me transfigurasse em vós, ficar-me-ia pelo último. Vou esclarecer-vos com uma mini-revisão muita prática relacionada com o cancro da próstata. Corria o Setembro de 2019, com ou sem chuva não vislumbro agora, e no programa da manhã (penso que no canal no 3) falava-se sobre próstata. Em tom de brincadeira, para aproximação das classes sociais (na minha opinião claramente hiperbólica já que estamos a falar de saúde), ditou-se que seria importante o homem realizar, a partir dos 50 anos, o toque rectal e a medição do PSA (“…uma análise fundamental para perceber se há cancro na próstata ou não”).
População portuguesa, levantai os braços se me ouvis! Se há rastreio que ainda não demonstrou qualquer impacto benéfico significativo na mortalidade é o do cancro da próstata. Nas normas de orientação clínica portuguesas o que está explanado é que os riscos deste rastreio devem ser discutidos com o doente (ainda que seja herculeamente trágico transpô-los para linguagem simples) e que se deve tomar uma decisão partilhada.
A vítima somos nós que estamos de olhos esbugalhados a absorver toda esta manipulação matreira e dissimulada. Se isto não vos faz soar campainhas é porque andais desatentos meus caros.
Aliás, o caso é mais negro do que possam pensar. Outro dia, num supermercado deste país, estava eu pronto para levantar uma ou duas notas e deparo-me, na fase da pré-marcação de código secreto, com uma publicidade de um hospital privado que dizia: “Cancro da próstata: 90,9% dos doentes sobrevivem quando o diagnóstico é precoce”. Portanto, eles andam escondidos nos pingos da chuva e antes de vos lançardes nessa jangada perigosa, em caudais desconhecidos, falai com o vosso médico de família.
É sempre engraçado perceber que neste jogo do comércio da doença há normalmente uma trilogia de sabores — a ciência, a história e a vítima. A ciência é usualmente representada por alguém com suposto conhecimento científico, superior, que através do caminho da falácia da autoridade trará mais ou menos respeito e segurança. A história normalmente é contada por uma celebridade que nos diz muito ou pouco ao coração e nos faz reluzir que a esperança é realmente a última a morrer, podendo quiçá (in)corrermos contra o tempo como Benjamin Button. A vítima somos nós que estamos de olhos esbugalhados a absorver toda esta manipulação matreira e dissimulada. Se isto não vos faz soar campainhas é porque andais desatentos meus, caros.
Eu sei que é tempo de bacalhau mas isto, com raras excepções, acopla quase sempre uma pescadinha de rabo na boca. Vós sois assoberbados com informação inútil, que transpira uma doença que não sabíeis deter, ides procurar um médico que vos responda às dúvidas dilacerantes, este médico (se seguir o molde da medicina baseada na evidência de qualidade) desapontará as vossas expectativas, a insatisfação crescerá dentro de vós como um mal ardente, abalará os próximos contactos entre os dois e degenerará a relação médico-doente e procurareis resposta em realidades alternativas (homeopatia, práticas chinesas, etc) que vos ouvirão com olho sorridente e, através do além, serão o ponto de partida para novas desinformações ultra-dramáticas que reiniciarão a vida da pescadinha.
Pensai que nós próprios somos óptimos em promover doença. Um doente, assim como aproximadamente 3/4 da população portuguesa, pode sofrer de dor lombar inespecífica mas, ainda assim, terá uma probabilidade baixíssima de ter uma patologia grave, do foro cirúrgico ou não. Contudo, enquanto eu disponho do meu tempo para tentar resolver a sua ambivalência relativamente à importância do benefício evidente de um estilo de vida mais saudável que inclua, por exemplo, actividade física regular, moderada a intensa, pelo menos 150 minutos por semana, o doente está vocacionado para a doença e, sem centralizar o que eu proferi, grita em sofrimento: “Ró- X!”.
De igual modo, hoje em dia, é também francamente comum a tentativa de banalização de doenças do foro psiquiátrico em crianças. Respeitosamente, atenção respeitosamente, há muitos pais que julgam que o filho(a) sofre de uma perturbação de hiperactividade e défice de atenção, quando na pura e crua da verdade ele(a) sofre é de falta de educação, ou seja, um rigoroso e meticuloso esquema de regras. A postura cada vez mais passiva e submissa dos pais faz com que os filhos não desenvolvam os mecanismos de coping, ou seja, ferramentas que lhes permitam combater adversidades, e, por isso, é também provável que prossigam com sessões infindáveis, de meses, de terapia ocupacional só para saber lidar melhor com a frustração.
É premente maior investimento no controlo sobre as matérias de saúde noticiadas. Em Portugal sítios como Scimed, com maior foco no público, ou Evidentiamedica, com maior foco nos profissionais médicos, são revoltos em qualidade, contudo, falta-nos alcançar um equilíbrio nos media. O HealthNewsReview.org nos Estados Unidos da América só nos primeiros 22 meses de actividade reviu 500 notícias e concluiu que transversalmente se falhou na discussão da qualidade da evidência científica, alternativas, custos e “peso” absoluto de benefícios e danos.
Em suma, andam a vender-nos doença, de mãos nos bolsos e a assobiar, e nós compramos barato, satisfeitos por descobrirmos uma suposta enfermidade que não alterará em nada a nossa vida futura, mas trará certamente uma ansiedade efervescente e demoníaca de resolver algo que, em benefício para a saúde, é um busilhão.
COMENTÁRIOS
Armando Brito de Sá: Um excelente texto, que toca em várias áreas críticas, hoje bem identificadas, sobre as quais é muito difícil mudar mentalidades e atitudes. Atenção ao problema da PHDA (perturbação de hiperatividade e défice de atenção) que encontramos simultaneamente mal diagnosticada e subdiagnosticada. Temos muito trabalho de esclarecimento à nossa frente. 
Martim Cabral: E as patifarias das farmacêuticas??? Todas...
Venezuela Livre > Martim Cabral: Não os tome que ninguém o obriga.
João Valdoleiros: Excelente comentário meu caro jovem colega, profundamente assertivo quanto ao "clima", que desde sempre rodeou o trabalho dos profissionais de Medicina, começando pelo modus operandi dos senhores delegados de informação médica, que utilizam toda a espécie de "argumentos" para vender tantas vezes uma mera banha de cobra. Parabéns Nuno Parente, são jovens como você, que me fazem ainda acreditar na "minha" Medicina em Portugal.
Joaquim Zacarias: SR.Doutor,nem todos os portugueses são hipocondríacos..E a aversão que demonstra ter com os suplementos alimentares,vai-lhe passar com o avanço da idade,já que de alimentação,parece nada saber.
Mike Road: "De igual modo, hoje em dia, é também francamente comum a tentativa de banalização de doenças do foro psiquiátrico em crianças. Respeitosamente, atenção respeitosamente, há muitos pais que julgam que o filho(a) sofre de uma perturbação de hiperactividade e défice de atenção, quando na pura e crua da verdade ele(a) sofre é de falta de educação, ou seja, um rigoroso e meticuloso esquema de regras. A postura cada vez mais passiva e submissa dos pais faz com que os filhos não desenvolvam os mecanismos de coping, ou seja, ferramentas que lhes permitam combater adversidades, e, por isso, é também provável que prossigam com sessões infindáveis, de meses, de terapia ocupacional só para saber lidar melhor com a frustração.". Infelizmente existem nódoas em todo o lado, o camarada é só apenas mais uma. Além de não ter direito a opinião (nem formação) na matéria, esclarece a completa ignorância em relação ao neurodesenvolvimento. Oportunidade de ouro para estar calado, que deixou escrito. Vergonha.
Carlos Almeida: artigo corajoso capaz de trazer dissabores ao médico seu autor  
victor guerra: Já não há médicos que saibam "mexer" nos clientes,nem sequer usar estetoscópio,ou seja conhecer o corpo humano,Por isso defendem-se com exames e diagnósticos, que alimentam a indústria médica Eu, que já "tive" um cancro da próstata,acho que este sujeito é ignorante
Marina Molares: é exactamente isso .querem que as pessoas pensem que o corpo tende para a doença quando tende é para o equilibro. e se fosse suposto andarem a ver-nos constantemente por dentro tínhamos nascido com um periscópio acoplado.
gostomuito dequeijo: Caro Parente, Pelo nome deves de ser cá de cima e sabes do que falas. Eu, profissional de saude reformado encho-me de gozo e de pena quando vejo colegas(?) eu chamar-lhe-ia propagandistas da doença a debitar bojardas e conselhos em directo na televisão em horas a que esses clínicos deveriam estar a trabalhar nos seus hospitais e centros de saúde, promovendo a banha da cobra e que os pseudo doentes gastam balúrdios e depois vêm queixar-se que os medicamentos estão caros, O negócio esconde por trás um outro não menos importante que é o dos transportes a utentes quase na totalidade controlada pelo bombeiral. Outro negócio importante é o dos gases, oxigénio a copo e ao domicílio, com eventual controle em "rede de malha larga", que rende muitas "royalties" que são devidamente pagas. Acredito que em 95% dos casos são absolutamente desnecessárias e por mim falo pois houve quem me vendesse esse produto (um colega muito diferenciado) e que só uso duas ou três vezes por ano quando estou constipado, mas a pingadeira funciona criando-se a noção de "imprescibilidade" do dito tratamento. Sem entrar no SNP (serviço nacional de psicologia) que todos os dias escoicinham para terem um naco do bolo, Enfim!
Nuno Vilhena: Também nos vendem esquerdites e direitites ou centrites. E anda tudo doente. Os senhores dos grandes grupos económicos vendem tudo. Haja mercado e ovelhas no pasto.
Venezuela Livre > Nuno Vilhena: Méé.
Maria Augusta Martins: parabéns pelo artigo, pois procura pôr a nu aquilo que poucos vêem e que outros não querem ver. Trata-se da espiral consumidora de saúde, que não de doença, com que os profissionais desse ramo querem fazer render o peixe e ganhar mais uns euros, fazendo duma vulgar gripe um sumidouro de dinheiro ou duma gravidez vulgar um pote de libras, para quem explora, claro está. Por essas e outras razões e devido ao nosso SNS (tendencialmente gratuito) para que funcione como os políticos e interessados querem são precisos pelo menos 250 000 médicos, e 400 000 enfermeiros afora técnicos e peniqueiros, A saúde está cada vez mais um carrossel em que os profissionais estão mais interessados em garantir trabalho aos seus pares do que em tratar doentes e patologias. mas garantido que vai piorar!
Zacarias Bidon: Eu já reparei que no domínio da patologia existem modas, tal e qual como no domínio do vestuário. Aqui há uns anos o chique era ser celíaca (falo no feminino porque nunca me cruzei nem ouvi falar de homens que sofressem dessa maleita). Hoje em dia já é uma doença proletária. Até uns vizinhos meus, ela educadora de infância e ele desempregado/ biscateiro, têm um filho celíaco (sei que isto contradiz o que digo acima sobre o facto de a doença celíaca ser uma doença de mulheres, mas neste caso o doente é demasiado pequeno para escolher e tenho a certeza de que se curará espontaneamente assim que atingir a adolescência).
Não estou muito a par das tendências, mas penso que neste momento o chique é ter síndrome de Asperger. Ou era, pois parece que recentemente uma americana publicou um livro em que conta que o senhor que dá o nome à doença era um nazi horroroso... 
Armando Azevedo > Zacarias Bidon : faz mais sentido agora as atitudes da Greta.
Zacarias Bidon: Benza-o Deus, Doutor, assim é que é falar!

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