terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Um achado para uma memória inapagável


Foi há vinte anos, eu tinha publicado o livro «OS MAIAS de Eça de Queirós” - Síntese comentada”» (Plátano Editora) -, que o reconhecimento por um autor de génio, juntamente com o desejo de favorecer a curiosidade dos alunos pela obra-prima, destacando alguns processos de análise trazidos pela mão de mestres, como Jacinto Prado Coelho, Carlos Reis e outros analistas literários que “dilataram os espaços da compreensão literária” – quando uma noite, escutando um programa de Carlos Cruz, julgo que na RTP, de debate “literário” e outros temas, com escritoras como Helena Sacadura Cabral, Margarida Rebelo Pinto, entre outros participantes, notei com espanto esse meu livro sendo empunhado por Helena Sacadura Cabral que sobre ele explanou alguns “palpites” negativos resumidos a esse de “fazer a papa da Joana”, incitando-a depois a comê-la, único ponto de ferocidade crítica a ser orquestrado, sem que o livro jamais fosse aberto, sequer, para uma exemplificação nessa questão da papa. Margarida acompanhava-a no ataque, contrapondo uma seriedade doutoral ao sorriso também doutoral de Helena, o livro sempre fechado, a batuta do programa empunhada, com deferência sorridente, por Carlos Cruz. Realmente, fiquei indignada com a empáfia “crítica”, mas é certo que esperançada de que essa notoriedade “de capa” trouxesse alguma relevância à obra, no sentido da sua venda, já que a notoriedade mesmo que de babugem, vale mais do que o silêncio generalizado, o qual tem sido apanágio de tudo o que vou publicando, ao longo da vida, o que é descoroçoante para as minhas ambições literárias, confesso, ciente de que não o mereço, o tal silêncio. Em conversa com uma amiga de café, Maria José, já morta, com quem por vezes trocava ideias e a quem ofereci o livro, recebi dela uma carta que me define - e a define como pessoa bem mais arguta do que aqueles que, sem lerem a obra, se fixaram unicamente no vocábulo “síntese” apenso ao título, para a denegrir, sem tomar em conta o epíteto “comentada” que define essa síntese. Essa carta, que guardei como algumas outras, elogiosas, coloco-a no fim deste texto, como resposta distante do meu silêncio indignado em relação ao tal programa. É, simultaneamente, uma homenagem póstuma à memória dessa amiga de confraternização breve, no acaso dos espaços de leituras no café do sr. Aníbal, a qual tão elegantemente me soube reconhecer o valor que eu própria me reconheço, no meio da ferocidade da mudez generalizada.
Vem esta “memória” a propósito de uma notícia que encontrei na revista “Caras” de 21 de Dezembro, no cabeleireiro do meu recurso de “alindamento” natalício, notícia que transcrevo, da cópia que logo ali fiz, enquanto esperava a actuação da tinta encobridora das minhas cãs:

«Helena Sacadura Cabral apresenta as suas escolhas no seu mais recente livro»
«Helena Sacadura Cabral cedo percebeu a importância de fazer as suas próprias opções pessoais e profissionais, confiando em si e nos seus valores. E foi isso que mais uma vez demonstrou na tarde em que apresentou o seu mais recente livro, “AS MINHAS ESCOLHAS”.
«Escolher é sempre correr o risco de perder alguma coisa. E a maioria de nós tem, naturalmente, medo de arrependimento e por isso medo de arriscar. Mas não há nada mais incómodo do que reduzirmos a nossa identidade pessoal para cumprir padrões impostos pela sociedade, pelos amigos ou pelos parentes. Se não fizermos uma escolha consciente de como vamos viver a nossa vida, outras pessoas o farão por nós. E podemos ter a certeza de que as escolhas deles não serão as mais adequadas. Sem sabermos as nossas próprias regras e valores pessoais, é impossível alcançar a felicidade», afirmou a autora com a segurança de quem tem tido a capacidade de viver a vida com tudo o que ela envolve
Manuela Ramalho Eanes foi uma das muitas amigas a aplaudirem as escolhas de Helena nesta tarde de afectos: «Eu e o meu marido somos muito amigos da Helena, temos por ela um grande carinho e considero-a um exemplo de vida, de dignidade, de espírito de família. É uma mulher que tem o dom da alegria e do sorriso», sublinhou.»

A notícia fazia-se acompanhar de uma bonita foto imponente e catedrática de Helena Sacadura Cabral e outras várias do evento, com Manuela Ramalho Eanes entre elas.
E foi o discurso de determinação das escolhas de Helena Sacadura Cabral que me fez compreender o modo como ela as faz, arrogante, predeterminada, mulher com pergaminhos, que olha do cimo o mundo inferior que ela premeia com a sua sabedoria, que analisa pela rama, talvez, - no meu caso foi pela “capa” - outros mundos que não o seu.

Mas passemos à carta de Maria José sobre o episódio televisivo que deu realce à capa do meu livro, por onde o verde sobressai, entre o preto e o branco, e apreciemos – e isso pode ser generalizado, embora, como sempre, vá permanecer ignorado - é uma mulher consciente da sua derrota que o afirma - apreciemos uma qualidade real de competência analítica de quem se não fixou apenas, cobardemente – e preguiçosamente - pela capa do livro:

«Querida Berta: Em primeiro lugar quero agradecer-lhe a oportunidade que me deu de ler as suas obras.
Escrevo-lhe esta carta a propósito daquele assunto de que falámos, sobre “Os Maias”. No fundo limito-me a repetir o que já disse na nossa conversa de outro dia. Achei, no entanto, que valeria a pena pôr por escrito a minha indignação.
Em geral não vejo televisão mas sei que o programa no qual o seu livro foi referido era pura e simplesmente uma “porcaria”. Aliás, na nossa televisão, pouca coisa de interesse (e mesmo decente) se põe ao dispor do público, o que a torna uma referência indigna de ser mencionada a propósito seja do que for.
Quanto à sua obra, raramente aparecem no “mercado livresco” sínteses tão completas e bem escritas além de impecavelmente comentadas.
O que eu admiro mais nesse livro é a correcção e agilidade com que a língua portuguesa é tratada, sobretudo a nível dos comentários.
Pessoas como a Berta “já não existem”!
Quanto ao “estímulo à preguiça” (!) que ele possa proporcionar, se por acaso os “meninos” não lerem “Os Maias” (só o susto que eles apanham com o número de páginas a ler!) e lerem a sua obra já é muito, mas muito bom, visto que não se trata dum mero resumo escrito de qualquer maneira, mas de uma síntese comentada com muito valor. E, infelizmente, tenho que dizer que é muito bom, também, porque já leram qualquer coisa... Ao menos que tomem conhecimento dos nossos bons autores mesmo que seja de forma indirecta. Aliás, assim, ficam a conhecer dois bons autores em vez de um.
Esperemos, no entanto, que esta síntese os estimule a ler Eça e lhes desperte a curiosidade para grandes voos...
Muito mais teria a dizer-lhe, mas terei, com certeza o prazer de lho dizer pessoalmente nas nossas conversas.
Um beijinho da Maria José que agradece a ocasião proporcionada de ler um livro tão precioso.
NOTA: Este livro não só revela uma leitura de “OS MAIAS” cuidadosa e atenta como apresenta ao leitor o estudo de longos anos de uma professora como já não se formam. Pena é que os hábitos de leitura dos portugueses se confinem à “Maria” e à “Hola” e outras coisas congéneres... »

Tenho a consciência de que os que eventualmente me lerem no meu blog poderão referir-se ao artifício que usei de me valorizar com o recurso a opiniões alheias, o que é “politicamente - e cristãmente - incorrecto” e talvez pouco decente, (devemos ser humildes) dentro do aforismo pejorativo do “Gaba-te, cesta rota”. Mas estou como Cesário Verde, que mostra as suas “Contrariedades” com um grito exaltado de revolta orgulhosa, embora a sua visibilidade fosse, é claro, maior que a minha, criador que foi de um estilo inconfundível, simultâneo de sensibilidade e rigor objectivo acima do seu tempo:

«E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras»

Nenhum comentário: