A usar de todos os truques para ver se
repõe a ordem na nossa paspalhice ortográfica, que a todos acobarda, vá-se lá
saber porquê, a ponto de o corrector da Internet me corrigir segundo o modelo
de escrita anterior, e as legendas da televisão seguirem o modelo do acordo90 (para além das suas incorrecções
abundantes que nenhum acordo ratifica, é certo, só mesmo a nossa falta de
escrúpulo mental e profissional que faz escarrapachar erros sucessivos nas
legendas de uma televisão sem corrector.
Mas o texto de Sophia sobre a sua
contestação ao AO90 é bem
pertinente como síntese e merece ser transformado em leitura obrigatória nas
escolas. Só mesmo Nuno Pacheco a não
desistir, mas, como diria o Solnado, somos
nhurros, nada a fazer, já que a corrupção é salvaguardada por cá, com zelo, nos
seus vários níveis. É só mais um caso, este, mas o maior de todos. Porque os
outros são pertença individual, ou, quando muito, de grupo, ao passo que este,
da língua, achincalha genericamente toda uma nação, sem nobreza e sem brio, a
pobrezinha.
OPINIÃO
Sophia, A Menina do Mar e as partidas dos
meninos da terra
Sophia, que era declaradamente contra o Acordo Ortográfico, foi “adaptada”
a ele numa edição recente que não o respeita. Faz isto qualquer sentido?
PÚBLICO, 5 de Dezembro de 2019
Está
a chegar ao fim o ano em que se têm vindo a celebrar os centenários do nascimento de Jorge de Sena (1919-1978)
e Sophia de
Mello Breyner Andresen (1919-2004). E se em Setembro essa celebração os juntou em pelo
menos dois momentos (um colóquio no Brasil, no Rio de Janeiro, e um ciclo na
Cinemateca, dedicados a ambos),
agora é a vez dos Encontros Imaginários criados no grupo de teatro A Barraca darem voz a um “diálogo” entre os dois, com Maria
do Céu Guerra a encarnar Sophia e José Manuel Mendes na pele de
Jorge de Sena. A moderação,
como sempre, cabe ao criador destes encontros, o encenador Helder
Costa. Dia 16 de Dezembro, às 21h30.
Falando
agora apenas de Sophia, este último
trimestre tem sido pródigo em apontamentos sobre a sua vida e
obra. Matosinhos dedicou-lhe um dia, na Biblioteca Municipal Florbela Espanca
(onde agora, de 6 a 8, celebra Sophia e Sena na Festa da Poesia). E o Centro
Cultural Vila Flor, de Guimarães, recebeu a adaptação para teatro e música do
conto A Menina do
Mar, pelo Teatro do Eléctrico, com encenação
de Ricardo Neves-Neves e direcção musical de Martim Sousa Tavares (neto de
Sophia). Agora, anuncia-se para 13 de Dezembro o espectáculo
multimédia O Mundo de Sophia, pela Lisbon Poetry Orchestra, no Auditório
Renato Araújo da Universidade de Aveiro. É o queimar dos últimos cartuchos.
Oxalá não lhes suceda, depois, o silêncio.
Mas
ainda falando de Sophia, foi recém-lançada uma “edição muito
especial” do conto A Menina do Mar, pela Valentim de Carvalho. E o “muito especial” justifica-se por juntar àquele
que foi o primeiro livro infantil de Sophia (de 1958) duas leituras
dramatizadas distintas: a que dele fizeram, em 1961, os actores
Eunice Muñoz, Francisca Maria, António David e Luís Horta, com direcção de Artur Ramos e música de
Fernando Lopes-Graça (aqui incluída em CD);
e o espectáculo estreado em Fevereiro no São Luiz, em Lisboa,
interpretado por Carla Galvão e Filipe Raposo (ao piano) a partir de música de
Bernardo Sassetti (1970-2012), com direcção de Paula Diogo e animações de
Beatriz Bagulho, também chamada a ilustrar o livro (o espectáculo surge aqui em
DVD). Para dar um ar ainda mais “especial”
à edição, pensada e produzida por Rui Portulez, o texto introdutório é de Marcelo Rebelo de Sousa, que sublinha estaremos perante “diferentes leituras,
diferentes gerações e diferentes métodos de revisitar um texto fundador.”
A
única estranheza resulta desta pequena nota incluída na ficha técnica: “Considerando
a sua possível leitura em contexto escolar, este livro respeita as regras do
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assumindo a Porto Editora a
responsabilidade desta adaptação”. É curioso, porque nem a
ficha nem o texto do Presidente da República têm essa preocupação, lendo-se,
neles, palavras “proibidas” como “direcção” ou “espectáculo”. Será porque pensam que estes não serão lidos “em
contexto escolar”? Vamos então conferir o trabalho de adaptação feito no texto
original de Sophia. “Hei-de” passou a “hei de”; “Outono” a
“outono” (3 vezes); “Verão” a “verão”; “Primavera” a “primavera” (2 vezes);
“Inverno” a “inverno”; “projecto” a “projeto”; “vêem” a “veem”. E é só. Dez alterações, ao todo. Justificava o
trabalho? Justificava a nota?
Aqui podem sempre brandir-se dois
argumentos. Um, a favor do Acordo, que dirá: estão a ver, quase não se nota.
Outro, contra, que oporá: se quase não se nota, para quê mexer?
Sobretudo quando se sabe que Sophia foi declaradamente contra o Acordo
Ortográfico? Teve até uma argumentação em dez pontos, em entrevista ao JL,
em 1991. Recordemo-la, na íntegra:
“1. A cultura é
feita de exigência e este acordo é feito de transigência. 2. Vai
alterar, em muitos casos, a dicção oral. 3. Vai desfigurar o carácter emblemático e
a estética da escrita. 4. Vai-nos separar da tradição grega e latina e, assim,
para os estrangeiros que falam línguas românicas, o Português vai-se tornando
mais difícil. 5. Vai destruir a modulação das vogais, tornando algumas
delas surdas. 6. O acordo nada unifica, pois constantemente recorre a
alternativas. 7. A escrita nunca pode coincidir com a fala. 8. A
ortografia pertence ao número de coisas que só raríssimas vezes devem ser modificadas,
pois também na forma gráfica nos reconhecemos. 9. É verdade que as línguas evoluem, mas
evoluem dentro das leis que lhes são próprias e segundo o espírito criador do
tempo. O mesmo é verdade para a escrita que, por isso, não pode ser modificada
por comissões nem por estratégias políticas. 10. A única palavra portuguesa cuja
ortografia precisa de ser mudada é dança que se deve escrever
com ‘s’ como era antes, porque o ‘ç’ é uma letra sentada.”
Tirando esta última sugestão
poética, que os defensores do Acordo costumam usar como caricatura, a
argumentação de Sophia é clara. Corrigi-la postumamente é indefensável, pelo
que o livro, para honrar a sua memória, deveria ser mantido na grafia original
da autora. Porque não são as dez palavrinhas que estão em causa, mas sim uma
questão de princípio. Ou sugerem atirar à fogueira as edições anteriores, não
vão as crianças ter um choque ao lê-las?
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