domingo, 8 de dezembro de 2019

Cagufas



Seguem-se três textos sobre o tema em torno de Greta, excelente de análise filosófica e sociológica o de Paulo Tunhas, no Observador, directo, o de João Miguel Tavares, ao seu modo crítico, bem ponderado, a Carta do Sr. Ministro Matos Fernandes, referida por PT, e por JMT, transcrita por Patrícia Carvalho, no Público - tal  como o  de JMT – uma carta pouco sensata, no seu servilismo e publicidade partidária bem despropositados.

1 - Introdução ao ecopopulismo /premium
O populismo caracteriza-se por amalgamar realidades distintas, fornecendo ao mesmo tempo a aparência de uma explicação única que tudo engloba. O ecopopulismo não é excepção a esta regra geral.
OBSERVADOR, 05 dez 2019
 A ordem das estações e as leis dos elementos que até agora governaram o mundo começam a cair num caos eterno que anuncia o fim do género humano. Assistimos a sinais e prodígios, coisas espantosas e terríveis, aflições diversas mas que se ligam umas às outras. Disformidades monstruosas da natureza anunciam discórdias. Não há já tempos propícios para as sementeiras, por todo o lado há chuvas excessivas, inundações, secas desastrosas, epidemias, fome terrível. Os elementos hostis batalham uns contra os outros, castigando a insubordinação dos homens.
A ciência explica tudo isto, explica que as nações humanas se desviaram do seu curso recto e caminham para o abismo, sob o comando do miserável Donald Trump, que, nos quatro cantos da terra, conta com modernos Gogue e Magogue para perfazer a sua obra de destruição. Os cientistas interpretam de forma clara e evidente todos estes sinais. Só eles têm a capacidade de levar consigo todo o povo humano à perfeição, afastando-o da desavergonhada avidez, da desenfreada cupidez capitalista que faz o sangue cobrir-se de sangue. Os negacionistas, seduzidos pelo espírito enganador, que trabalha insidiosamente para desviar os bons da sua via recta, são os agentes do desânimo e da perversão doutrinal. Membros do corpo científico atingidos por um inominável mal, deverão ser excomungados, para que a podridão que consigo trazem não se propague mais.
O desregramento do universo exorta à penitência. Exigem-se ritos de purgação. As regras de vida que até aqui eram apenas seguidas nos claustros pelos monges, pelos especialistas das macerações e da abstinência, deverão agora ser uso comum. Mas nada disto será em vão. Uma Nova Aliança entre os seres humanos e a terra daí advirá, a acção climática trará consigo uma nova Primavera que porá fim à desordem das estações e ao desenfreado combate dos elementos.
Os três parágrafos anteriores são, quase sem modificação alguma, transcrições de passagens das Histórias escritas pelo monge Raul Glaber na primeira metade do século onze e de comentários que o historiador francês Georges Duby a elas fez no seu livro O Ano Mil, onde analisa algumas atitudes prevalecentes no fim do primeiro milénio. É claro que mudei uma coisa ou outra. Onde estava a Bíblia – nomeadamente o capítulo XX do Apocalipse – está agora “Ciência”. Os “homens de Igreja” são agora os “cientistas”, o demónio é o capitalismo, o Anti-Cristo Trump, os heréticos os “negacionistas”… Mas, tirando estas substituições fáceis de executar, encontram-se no livro de Duby descrições que convêm por inteiro à atitude contemporânea face às chamadas alterações climáticas. Sobretudo à nova conversa de taxista que tomou conta do mundo e a que se poderia chamar ecopopulismo.
O populismo caracteriza-se, entre outras coisas, por amalgamar realidades distintas, fornecendo ao mesmo tempo a aparência de uma explicação única que tudo engloba. O ecopopulismo não é excepção a esta regra geral. Tudo se encontra magicamente ligado. E, como tudo se encontra magicamente ligado, o corte com o presente que reivindica tem de ser radical. Greta Thunberg, a nova sacerdotisa do ecopopulismo – o sumo sacerdote Al Gore já deu o que tinha a dar - recebida entusiasticamente em Lisboa por meia-dúzia de pessoas e uma cobertura mediática nunca vista, exprimiu recentemente, num artigo publicado em conjunto com duas colegas que também faltam às aulas, este aspecto do credo ecopopulista: a “crise climática” foi “criada e alimentada” pelos “sistemas de opressão coloniais, racistas e patriarcais”, “temos de os demolir todos”.
Dir-se-á que comparar as atitudes presentes com os pavores do fim do primeiro milénio é fugir a qualquer discussão séria das questões postas pelos males infligidos pelos seres humanos ao ambiente do planeta, como por exemplo a de Judith A. Curry, em Alterações climáticas. O que sabemos, o que não sabemos, publicada entre nós pela Guerra e Paz. Mas não era disso que falava: falava do ecopopulismo posto em voga pela Igreja Universal da Climatologia, que justamente representa a mais formidável barreira para que a tal discussão séria tenha lugar. Uma barreira tão extraordinária que, para explicar a infantilização do espírito que produz, apetece recorrer a uma conjectura arriscada, como manda a sábia metodologia científica: só as alterações climáticas poderiam efectivamente dar lugar a tal monstruoso efeito regressivo na mente humana. Tal conjectura parece cumprir os requisitos das boas hipóteses: simplicidade, beleza, fecundidade.  Até a “Carta a Greta” do ministro Matos Fernandes se compreende melhor assim.

2 - Matos Fernandes escreve a Greta: “Estamos gratos pelo teu activismo”
O Ministro do Ambiente e da Acção Climática traçou à jovem activista sueca um retrato dos esforços nacionais na redução de gases com efeito de estufa e dos problemas que o país já enfrenta graças às alterações climáticas.
PÚBLICO, 1 de Dezembro de 2019,
“Querida Greta, bem-vinda a Portugal, o primeiro país do mundo a comprometer-se com a neutralidade carbónica em 2050 e que está a apostar toda a sua ambição na década entre 2020 e 2030”, começa por escrever o ministro do Ambiente, apresentando em seguida alguns dados sobre o que já foi conseguido: 54% da electricidade consumida no país já é obtida através de fontes renováveis; há projectos em curso para encerrar as duas centrais termoeléctricas de carvão em 2021 (Pego) e 2023 (Sines); há uma “aposta forte” em redução as emissões do sector dos transportes em 40% em 2030; nesse ano iremos alcançar 50% de redução de emissões de gases com efeito de estufa e 47% de toda a energia consumida no país será proveniente de fontes renováveis, explica Matos Fernandes.
Depois, a jovem sueca de 16 anos (que já leu a missiva, segundo fonte do ministério) pode ficar a conhecer alguns dos efeitos que o país já está a sentir por via das alterações climáticas, com o ministro a escrever que Portugal é mesmo “um dos países europeus que mais sofre as consequências” dessas alterações. “Como resultado da subida do nível do mar nos anos recentes, já perdemos 13 quilómetros quadrados das nossas áreas costeiras. No sul do país, a seca é crónica e ainda precisamos de saber como vamos adaptar o nosso uso de recursos” a esta realidade, escreve Matos Fernandes. Por isso, frisa o governante: “Temos uma estratégia de adaptação nacional à mudança climática muito ambiciosa, que estamos a seguir rigorosamente, uma vez que para Portugal isto já é um problema actual, não um problema de futuro”.

3 - OPINIÃO A minha carta para Greta Thunberg
Gostava que fosses um pouco menos alarmista, e que um dia destes admitisses que o mundo – e o combate às alterações climáticas, já agora – é um pouco mais complicado do que a forma como o retratas.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 3 DE DEZEMBRO DE 2019
Estás a ver aquela carta que o ministro do Ambiente de Portugal te escreveu? Esquece. Não leias. O engenheiro Matos Fernandes até é um homem simpático e com sentido de humor, mas aquilo que ele fez com essa carta foi o que quase todos os adultos fazem quando estão ao pé de ti: usar a tua popularidade para se porem em bicos de pés, fingindo que sonham todas as noites com calotas polares a derreter e que acreditam mesmo que o mundo vai acabar lá para 2050. Lamento, Greta – eles não sonham, nem acreditam. Estão mesmo só a aproveitar-se de ti, para se sentirem menos velhos e parecerem bué sintonizados com as preocupações da juventude.
Já no que me diz respeito, Greta, podes estar descansada, que eu não quero nada de ti. Minto: talvez queira uma pequena coisa. Gostava que fosses um pouco menos alarmista, e que um dia destes admitisses que o mundo – e o combate às alterações climáticas, já agora – é um pouco mais complicado do que a forma como o retratas. Há uma diferença significativa entre diminuir a pegada ecológica e cortar um pé, e temo que tenhas dificuldade em distinguir uma coisa da outra. Seria magnífico que conseguisses olhar para o ser humano como mais uma espécie animal que habita o planeta Terra, e que por isso também tem uma cultura e um modo de vida a preservar. Deu uma trabalheira desgraçada chegar até aqui, e, sim, nos últimos 150 anos os combustíveis fósseis ajudaram bastante.
Conheces aquela frase muito bonita que Isaac Newton escreveu há 350 anos? “Se eu vi mais longe, foi por estar em cima de ombros de gigantes.” Esta ideia de nos apoiarmos no legado de gente extraordinária remete para uma gratidão em relação ao nosso passado, e aos sacrifícios que foram feitos por milhões de homo sapiens que nos precederam, até atingirmos um nível de vida sem paralelo na história da humanidade. Aquilo que me preocupa no teu discurso, nota bem, não são as mais do que legítimas preocupações com o ambiente. Não posso estar mais de acordo contigo quanto dizes que não há um planeta B. Mas, para continuar com o planeta A, convém não regredir até um modo de vida Z, porque nem todos têm o privilégio de navegar pelo planeta em barcos de luxo – feitos, aliás, numa magnífica fibra de carbono.
E é neste ponto que nós discordamos profundamente. Ainda há dias, escreveste um artigo em conjunto com duas outras jovens activistas onde dizias isto: “A crise climática não é apenas sobre o ambiente. É uma crise de direitos humanos, de justiça e de vontade política. Sistemas de opressão coloniais, racistas e patriarcais criaram-na e alimentaram-na. Nós precisamos de os desmantelar a todos.” Aquilo que as pessoas que não concordam com o radicalismo do teu discurso já tinham percebido há algum tempo, é que seria inevitavelmente aqui que as tuas reivindicações iriam desaguar – em vez de pacatamente ambientais, furiosamente políticas.
Essa parte, desculpa, eu não compro. As justificações para as alterações climáticas já não são apenas os automóveis a gasóleo ou as vacas com flatulência – são os tais “sistemas de opressão” que é preciso, a todo o custo, “desmantelar”. Ora, se não te importas, Greta, convém ter algum cuidado com aquilo que se desmantela. Nunca, em tempo algum, houve tão pouca violência no mundo e tantas pessoas a viver acima do limiar da pobreza. Tu, eu, todos nós, temos uma sorte imensa. Ser conservador no ambiente e revolucionário na política é um cocktail explosivo. Ainda és muito nova para o beber.

Nenhum comentário: