Uma leitura arrastada, pela trilogia que
forma a Oresteia de Ésquilo
(EDIÇÔES 70) fez-me desejar guardar, como obra de surpreendente
nobreza, passos dela que o demonstrassem, mas a admiração e o encanto surgindo
a cada passo, alongou o discurso com as transcrições, pelo que me limito à
primeira parte da ORESTEIA: AGAMÉMNON, que me fez
compreender o sentido da expressão “ver-se grego”, pelo penoso das
tais transcrições.
Eis, pois, a história dos filhos de
Atreu – os Atridas Agamémnon e Menelau – e os descendentes do primeiro, os
irmãos: Ifigénia (imolada 10
anos antes), Orestes e Electra. O primeiro Atrida (Agamémnon, rei de Argos) condenado a ser assassinado pela mulher – Clitemnestra – o segundo (Menelau, rei de Esparta), à traição de sua mulher Helena, (irmã de Clitemnestra) a qual, pela sua fuga com Páris, (filho dos reis de Tróia – Anquises e Hécuba – e irmão
de Heitor, Cassandra e outros), fizera, dez anos antes,
despoletar a guerra entre gregos e troianos, que terminara com a destruição de Tróia e, (como é este caso), o encadeamento
das sequelas sobre os heróis regressados à Grécia, dez anos depois (à excepção de Ulisses, que andou mais dez nas suas aventuras
odisseicas).
Trata-se de uma trilogia dramática, de Ésquilo – ORESTEIA – dividida
em AGAMÉMNON, COÉFORAS e EUMÉNIDES – última tragédia de Ésquilo, de 458
a. C,
obra-prima de conceito, emoção e suspense dramático, rigor sequencial, expressivo
não só do vigor dos caracteres humanos – (e até dos representantes míticos divinos
de “EUMÉNIDES”) - que
nele estão implicados, como das grandes questões de responsabilidade moral que
desde sempre, afinal, se impuseram à consciência humana, e que mantêm, pois,
uma actualidade que nos assombra, também no poderoso do seu discurso de pendor tantas
vezes realista.
Cada uma das partes da trilogia se
divide em PRÓLOGO (de
introdução ao tema), PÁRODO
(parte lateral do palco, com o Coro
seguido de estrofes, antístrofes e, por
vezes, epodo, próprios do lirismo), os EPISÓDIOS com os
protagonistas do drama actual alternando com os ESTÁSIMOS, (em forma de odes
cada
uma das quais cantadas pelo CORO, entre dois episódios).
Eis, pois, as três peças, que compõem a
trilogia ORESTEIA, das quais analisaremos apenas, a
primeira:
AGAMÉMNON, com a intriga em torno da morte de Agamémnon (e de Cassandra, filha dos reis de Tróia, com poderes divinatórios,
que ele trouxera de Tróia, como cativa). Estruturalmente composta por 5 episódios, seguidos dos respectivos Estásimos, à excepção do 4º e do 5º Episódios.
COÉFORAS (portadoras
de libações – ao túmulo de Agamémnon,
acompanhando Electra), de tempo cronológico
posterior, em torno da morte de Clitemnestra (que reina
em Argos com Egisto, após a morte
de Agamémnon) por Orestes, criado longe de casa e que sua irmã Electra procura, em progressiva identificação
através de indícios (expostos (por Orestes) no túmulo de Agamémnon) até ao reconhecimento deste (anagnórise) pela irmã, com incitamento desta ao
irmão, para que a morte do pai seja vingada, o que acontecerá, apesar dos
escrúpulos de Orestes, que mata
primeiro Egisto, antes de
matar a mãe, e será
perseguido pelas Erínias
(representantes de um conceito de Justiça penalizador dos que derramaram o seu
próprio sangue (da mãe), Clitemnestra isenta
desse castigo, por Agamémnon, seu
marido, não ser do seu sangue).
EUMÉNIDES, poder-se-á
centrar no julgamento e perdão final de Orestes, as Erínias
apaziguadas, transformadas em “Euménides”, após o
julgamento entre os deuses, e defesa de Orestes, do seu acto
matricida.
AGAMÉMNON
Os dados em torno de Helena, Páris e Menelau - e Ifigénia - são
referidos na primeira parte da trilogia – AGAMÉMNON - no seu Párodo, pelo Coro
(de doze anciãos de Argos) inquieto,
referindo estranhas profecias do adivinho Calcas, sobre os destinos dos Atridas argivos, condenados pelo crime horrendo da morte de Ifigénia, dez
anos antes, por seu pai
Agamémnon, para obter ventos favoráveis para as naus que partiam
para Tróia.
Inicia-se a tragédia, com o PRÓLOGO tendo, como
única personagem, um Vigia que, por
ordem de Clitemnestra, estendido
no telhado do palácio dos Atridas, em Argos, espera o sinal de fogo, anunciador da
queda de Tróia, e convida Clitemnestra, emocionado,
assim que surge o clarão, a erguer-se do leito “o mais
depressa que puder, para erguer no palácio um grito de bom augúrio em honra
deste facho, se, de facto, a cidade de Tróia foi tomada, conforme este archote
parece proclamar”
Segue-se o PÁRODO, com o CORO dos doze Anciãos argivos a referir
as circunstâncias adstritas à guerra troiana, (“tudo
por causa de uma mulher que foi de muitos maridos”) e que se
inicia do seguinte modo narrativo:
“Este
é o décimo ano depois que os grandes adversários legais de Príamo, os reis
Menelau e Agamémnon, par poderoso dos Atridas, honrado por Zeus com um duplo
trono e um duplo ceptro, largaram desta terra com uma frota argiva de mil naus,
para apoiar, com as armas, o seu direito.” Acaba por
apelar para a rainha Clitemnestra para que
informe sobre o significado dos sacrifícios que aquela organizou por toda a
parte, eliminando, desse modo, a ansiedade em que vivem os velhos argivos do Coro, sobre os destinos do rei Agamémnon.
Das várias estrofes e antístrofes seguintes,
entoando
os casos envolvendo a guerra, com a participação de deuses, como responsáveis
pelas intrigas entre os homens, retiro os passos concernentes ao crime de Agamémnon, forçado a sacrificar
a filha Ifigénia, passos de extremo impacto dramático, no contraste entre a dúvida e a decisão
do pai, responsável pelos seus actos - forçado pelos seus deveres de rei
superiorizando-se aos deveres e sentimentos de pai - e no patético da figura da
vítima, sua filha amada, e ainda, na antístrofe
final, o discurso conceituoso sobre o crime e o castigo, de suspense
premonitório, (as Erínias, deusas da
Vingança, já antes referidas pelo Coro, como instrumento castigador do crime de
Páris):
Estrofe 3ª:
«E
ventos vindos do Estrímon (rio da Trácia)
provocavam as funestas demoras, a fome, os ancoradouros difíceis, a vagabundagem
das tripulações, não poupavam as naus e as amarras, tornando duplamente longo o
tempo, e, com o desgaste, consumiam a flor dos Argivos. E quando o profeta,
dando por garante Artemis, proclamou aos chefes outro remédio mais pesado do
que a tempestade amarga, então os Atridas, batendo no solo com os seus ceptros,
não puderam conter as lágrimas.»
Antístrofe 3ª:
«E
o mais velho dos chefes, erguendo a voz, assim falou: “Sorte pesada é não
obedecer, mas pesada também se não dilacerar a minha filha, o ornamento da
minha casa, manchando as minhas mãos de pai nas correntes de sangue duma
donzela imolada junto do altar. Qual destes dois partidos é isento de mal? Como
me hei-de eu tornar um desertor da frota, traindo os meus aliados? Não trairei,
já que é justo desejar com ardor extremo o sacrifício que, para domar os ventos,
fará correr o sangue duma virgem. E oxalá seja para bem!»
Estrofe 4ª
«E
quando, ao sopro da mudança dum vento ímpio, impuro, sacrílego, o seu espírito
se dobrou ao jugo da necessidade, então ele assumiu um pensamento capaz de
todas as audácias. Pois a demência funesta, que é a primeira causa dos nossos males,
inspira aos mortais ousadia com os seus vergonhosos conselhos. Foi assim que
ele teve a coragem de sacrificar a sua filha, como meio de promover uma guerra
destinada a vingar o rapto duma mulher, uma espécie de rito preliminar,
celebrado à partida das naus.»
Antístrofe 4ª:
«As
suas preces, os seus gritos de «Pai!», a sua idade virginal, nada contou para
aqueles chefes amantes da guerra. Feita a oração aos deuses, o pai ordenou aos
servos que, como uma cabra, a sustentassem com vigor por cima do altar, envolta
nos seus vestidos, inclinada para a terra, e que vigiassem a bela proa da sua
boca, de molde a impedi-la de lançar sobre a casa uma voz de maldição.»
Estrofe 5ª:
«Tudo
isto pela violência muda dum freio! Ela, deixando pender para o solo o seu
vestido tinto de açafrão, despertava a piedade, ferindo cada um dos
sacrificadores com o dardo dos seus olhos, semelhantes a uma figura de um
quadro que a todos desejasse, em vão, falar, ela que muitas vezes cantara no
salão dos belos banquetes de seu pai e, virgem, com casta voz, acompanhara,
amorosamente, após a terceira libação, o péan (1) do pai querido.»
(1): O fim do banquete era assinalado por três
libações, a última das quais era frequentemente seguida pelo canto de um péan (composição coral normalmente em
honra de Apolo (Febo)).
A antístrofe 5º, com que termina o PÁRODO, contém expressões sibilinas, de saber
intemporal:
Antístrofe 5ª: O que se segue não vi, não posso dizê-lo, mas as artes
de Calcas não são vãs. Na balança da Justiça, o prato da aprendizagem desce
para os que sofreram. O futuro poderás conhecê-lo depois de acontecido.
Entretanto esquece-o, dado que antecipá-lo é o mesmo que chorar antes de tempo:
ele virá, claro, na madrugada com os seus raios. Mas no que toca ao futuro,
que tudo acabe em bem, como o deseja este baluarte da terra de Ápio (1), sempre
presente, sozinha a montar a guarda.
(1): A terra de Ápio (filho de Apolo) era
Argos.
(As últimas palavras do Coro assinalam o
aparecimento de Clitemnestra à porta do
palácio), assim começando o 1º EPISÓDIO.
Eis
os dados preliminares do enredo dramático do momento presente (dez anos
depois da guerra de Tróia) entre os protagonistas das três partes da
tragédia, que, todavia, vão continuando a reconstituir dados transcorridos nos
anos da guerra troiana.
São 5 os Episódios de AGAMÉMNON:
1º EPISÓDIO:
Diálogo entre
o Corifeu e Clitemnestra que informa aquele, em discurso vivo e de falsa amenidade, sobre a boa nova da
vitória dos gregos, e refere, ao Corifeu
desconfiado,
a forma como obteve essa notícia através dos sucessivos correios de fogo,
iniciados por Hefesto (o deus
ferreiro e dos vulcões – Vulcano latino) do Iva (Monte da Tróade), de ilha em ilha, de monte em monte...: Clitemnestra: «Tais são as normas que fixei aos meus portadores de
archotes, que se revezaram para alcançar o seu objectivo. E tão vencedor é o
primeiro como o que corre em último lugar. Estou a revelar-te uma prova e um
sinal que me foram transmitidos pelo meu esposo de Tróia». Segue-se o relato objectivo e bem realista de Clitemnestra, a pedido do Corifeu, de contraste entre vencedores e
vencidos, e no final, o tom sibilino, de ameaça velada, relato que não
resisto a transcrever:
Clitemnestra: “Os Aqueus são
hoje senhores de Tróia. Imagino gritos que não se fundem, a ecoarem
distintamente na cidade. (…) Separadamente se ouvem, marcadas por diferente
fortuna, as vozes dos vencidos e dos vencedores: os primeiros,
enlaçando os cadáveres dos maridos ou dos irmãos, muitas vezes crianças sobre
os corpos dos velhos avós de que descendem, do fundo duma garganta que deixou
de ser livre choram a morte dos seus entes queridos: os outros,
cansados de errarem na noite depois da batalha, preparam—se, famintos, para
tomar a sua refeição matinal com aquilo que encontram na cidade. Não agem
segundo um plano ou ordem, mas, em face do que cada um extraiu da urna da
sorte, assim se instalam agora nas casas troianas conquistadas, libertos dos
gelos e orvalhos ao ar livre. Com que felicidade eles vão dormir toda a noite
sem necessidade de montar guardas! Cuidem de reverenciar os deuses da cidade e
os seus santuários na terra conquistada e livrar-se-ão, depois de ter tomado a
cidade, de ser, por seu turno, tomados. E que não se abata entretanto sobre
eles o desejo de destruir o que devem respeitar, vencidos pela ânsia do lucro,
porque ainda precisam de regressar, sãos e salvos, a casa, de fazer, dando a
volta, a segunda metade da corrida (o seu regresso)… Se o exército partir sem ter cometido falta contra os deuses, talvez
fique sem consequências o sofrimento causado aos mortos (v. g. Ifigénia), a
menos que sobrevenha algum mal inesperado.
O 1º ESTÁSIMO, com o Coro, e 3 estrofes
e
respectivas antístrofes seguidas do
epodo (parte final da ode), glosam, entre
outros, o caso de Helena e Páris que fez despoletar a guerra e os
sofrimentos que com isso causou nos lares gregos dos que partiram: “Choram-se os guerreiros, louvando-se este como
perito no combate, aquele por ter caído nobremente na batalha assassina por
causa de uma esposa alheia… (estrofe
3ª), a antístrofe 3ª trazendo à baila a vingança das “negras Erínias” que “com
o tempo enfraquecem o que prospera sem justiça, consumindo-lhe por fim a vida
numa mudança de sorte…”. E o
epodo põe em dúvida a notícia propalada das boas novas do
regresso da frota argiva, que o fogo espalhou pela cidade: “Demasiado crédulo, o espírito feminino tem
limites rapidamente transpostos e, por isso, uma notícia saída da boca duma
mulher tem igualmente rápida morte”.
2º EPISÓDIO: O Corifeu expressa o seu regozijo de esperança na
boa nova da vitória sobre os troianos e o Arauto
anuncia com ênfase o seu regresso “ao
pátrio solo da terra argiva” e repondo os dados passados para finalizar com as
exclamações vingativas sobre Páris:
«Nem Páris nem a cidade, com ele, solidária
no crime, podem gloriar-se de que a falta foi superior ao castigo: condenado
por rapto e roubo, ele não só teve de largar a sua presa como ainda ceifou a
casa de seus pais, inteiramente destruída com a própria terra. Os filhos
de Príamo pagaram duplamente os seus próprios
erros.»
Segue-se o diálogo entre ambos, Corifeu e Arauto, com referência aos respectivos sofrimentos – os do Corifeu de medo – pela atmosfera opressiva que
se vivia em Argos (Agamémnon substituído no leito de Clitemnestra por Egisto) – os sofrimentos do Arauto tendo a ver
com os desconfortos de uma guerra cruel, de que descreve, poderosamente, os
horrores, para concluir sobre a felicidade do regresso dos que escaparam com
vida: «Se eu te fosse falar dos
trabalhos e péssimas instalações, dos corredores estreitos dos navios onde
montávamos as incómodas camas… Nenhuma parcela do dia sem motivos para gemer.
Quanto aos trabalhos em terra, era um horror ainda maior: como acampávamos ao
ar livre junto das muralhas dos inimigos, do céu e da terra chuviscavam sobre
nós os orvalhos dos prados, causando-nos um dano constante, enchendo
inclusivamente de bichos os pêlos das nossas vestes…… Mas para quê soltar estes
lamentos? …. Para nós, sobreviventes do exército argivo, é o lucro que
conta, menor que o dele é o peso do sofrimento….»
Entrada de Clitemnestra, mostrando o seu júbilo, perante o Arauto e o Corifeu, em expressões de falsa doçura: «….. Mas agora não precisas de me dizer mais. Saberei a
história toda do próprio rei. Apressar-me-ei a acolher, da melhor maneira, o
meu venerado esposo no seu regresso. Pois, para uma mulher, que luz pode ser
mais agradável do que a do dia em que ela abre as portas ao marido que regressa
da guerra, salvo por um deus? Levai esta mensagem a meu marido e dizei-lhe que
venha o mais depressa possível, o querido do povo. E que, ao chegar, ele
descubra que, na sua casa, se encontra uma esposa fiel, exactamente como a
deixou, cão de guarda da casa, leal a ele e inimiga dos que lhe desejam mal;
impecável em tudo, ela não quebrou um só selo na longa passagem do tempo. De
prazeres adúlteros ou sequer má reputação sei tanto como de temperar o bronze.
Disto me posso vangloriar; e um elogio, assim assente na verdade, pode, sem
vergonha, ser proclamado bem alto por uma mulher nobre.»
Com a saída de cena de Clitemnestra, o Corifeu
e
o Arauto retomam o
diálogo, o primeiro duvidando da sinceridade do discurso de “bela aparência” de Clitemnestra ao Arauto
e
discorrendo ambos sobre os destinos de Menelau no seu regresso de Tróia, que o Arauto
desconhecia.
É ainda sobre Helena e as consequências dos seus actos que se
debruça o 2º ESTÁSIMO, com quatro estrofes e as respectivas antístrofes, um paralelo
surgindo, entre a presença de
Helena em Tróia e a
fábula do leão, criado pelo dono de pequenino e meigo, tornado
agressivo em adulto, este 2º membro da comparação anteposto ao primeiro, na estrofe e antístrofe 2ªs, o primeiro membro – Helena –
posposto, na estrofe 3ª: (…) “Assim
também (como o leãozinho) eu
diria que o que primeiro veio para a cidade de Tróia foi uma disposição de mar
calmo sem vento e um suave ornamento de riqueza, um brando dardo desferido por
uns olhos, uma flor de desejo que morde o coração. Mas de repente Helena revela
o amargo fim das núpcias:
ela é o colono funesto e a funesta companhia que se lança sobre os filhos de Príamo por intercessão de Zeus Hospitaleiro, uma Erínia que
traz lágrimas às noivas».
E a
antístrofe 4ª conclui o 2º EPISÓDIO num discurso
de ameaça, expressivo do clima de tensão próprio da tragédia, a hybris (desafio aos deuses ou ao destino)
merecendo, naturalmente, o castigo: «Mas a Justiça brilha nas casas sujas de fumo e preza a
santidade da vida. Das mansões cobertas de ouro, em que há mãos sórdidas, ela
desvia os olhos, para se aproximar do que é puro, desprezando o poder da
riqueza com a falsa aparência do louvor. E dirige tudo para o seu fim.
3º EPISÓDIO: Em eloquente
discurso, a que não faltou o sentido crítico, pelo envolvimento numa guerra
destruidora por causa de uma mulher adúltera, o Corifeu
dirige-se a Agamémnon, que entra com Cassandra. Mais grandiloquente ainda é o discurso
justificativo de Agamémnon, a que não
falta o tom sentencioso, com gratidão pelos deuses que deram a vitória aos
Aqueus, preferindo as críticas do Corifeu aos elogios dos aduladores, e
lembrando Ulisses como amigo
fiel, de quem desconhecia o paradeiro. Promete ocupar-se da cidade e honrar os
deuses, ao entrar no seu palácio. Entra em cena Clitemnestra
que primeiro se dirige ao Coro - “Homens
desta cidade, venerandos anciãos de Argos aqui presentes” – em confissão
astuciosa de lamento sobre as mágoas sofridas e seguidamente ao marido, de
justificação por actos seus, como o envio de seu filho Orestes para junto de um aliado e amigo comum,
para o proteger em caso de morte do pai em Tróia, receosa de possível revolta
popular. E conclui mostrando o seu regozijo, convidando o marido a descer do
carro para um caminho atapetado de púrpura, que inicialmente Agamémnon repele, com altiva desconfiança:
«Agamémnon: “Descendente de Leda, guarda da minha casa, as tuas
palavras estiveram em proporção com a minha ausência. Mas nota que, para o
louvor se fazer segundo a justiça, convém que a homenagem parta dos outros.
Depois, não me estragues com luxos, como se eu fosse uma mulher, não me recebas
como a um bárbaro, de boca aberta aos gritos, prostrada no solo em adoração,
nem faças que o meu caminho suscite a inveja, juncando-o de púrpura. Os deuses
é que devem ser honrados dessa maneira: eu, mortal que sou, não posso caminhar
sem medo sobre estas belezas bordadas. Entendo que devo ser honrado como um
homem, não como um deus. De resto a minha fama já ressoa sem tapetes para os
pés nem tecidos bordados. Não ser presunçoso é a maior dádiva dos deuses. Só
deve considerar-se feliz aquele que
acabou a vida em calma prosperidade. Actuando nestes moldes, posso viver sem
apreensões.”
Mas uma vez mais é Clitemnestra quem vence a contenda, convencendo o
marido, em discurso sentencioso, v.g. -”Sim,
mas um homem que não é invejado não é invejável” – a fazer o
que outros fariam, em idêntico caso de vitória. Agamémnon, dispõe-se a
entrar, poupado e preocupado também com a destruição de tecidos “comprados a peso de prata”: “Seja! Se é essa a tua vontade, que alguém me desate
rapidamente as sandálias, escravas adaptadas ao meu pé. E quando eu pisar estes
tecidos de púrpura, destinados aos deuses, que nenhum olhar de inveja me
fira!...” Entrega Cassandra
aos cuidados de Clitemnestra: “Tens aqui esta estrangeira, acolhe-a
amavelmente em casa….” E conclui, antes de entrar em casa: “Mas visto que me comprometi a ceder ao teu
desejo, vou entrar no meu palácio, pisando a púrpura”.
Em artificioso discurso altivo e
ambíguo, Clitemnestra mostra a sua
casta de mulher decidida: “---Muitos mais
tecidos eu teria feito o voto de pisar, se isso me tivesse sido proposto em
sedes oraculares, quando eu imaginava meios de alcançar a vida deste homem…” para terminar em expressão comparativa, de duplo
sentido sinistro: “Também nos dias
em que Zeus faz o vinho da uva verde, reina a frescura na casa porque nela se
move o senhor, o homem
acabado.” E, depois de
Agamémnon entrar em
casa, Clitemnestra, antes de o
seguir, pronuncia ainda a frase ambígua: “Zeus,
ó Zeus realizador, realiza a minha prece. Oxalá não descures o que intentas
realizar!
O 3º ESTÁSIMO, seguinte
ao 3º Episódio, compõe-se de duas
estrofes do Coro e respectivas
antístrofes, sobre o «terror que “assedia sem tréguas o meu
coração pressago”( 1ª Estr.) em crescente
clima de tensão e presságio catastrófico, próprio da tragédia, a 1ª Antístrofe contendo
expressões de alegria mas couraçada de receio “porque
não tem minimamente a cara ousadia da esperança”, embora
aspirando a uma contradição: “Mas oxalá as
minhas expectativas não passem de mentira sem hipótese de concretização!”.
A 2ª Estrofe glosa, em tom abstracto, o mesmo tema: «… “Assim, o destino do homem, singrando prosperamente…
choca de súbito com um escolho obscuro”…», embora termine com fé em Zeus, que
providenciará: “... Zeus saberá,
com as dádivas grandes e abundantes das colheitas anuais, conjurar o flagelo da
fome.”. E a Antístrofe 2ª conclui, num sentimento de medo do destino superior
que maneja a vida do Homem: «Mas o sangue
negro de um homem, uma vez derramado, na morte, sobre a terra, quem o poderá
restituir às veias com qualquer espécie de encantamento?» …. «Assim
limita-se a resmungar no escuro, aflito, sem esperanças de dobar a tempo este
novelo, enquanto o meu espírito está em chamas.»
O EPISÓDIO 4º inicia-se por
uma invectiva rígida de Clitemnestra a Cassandra, mandando-a sair do carro, o Corifeu, piedoso, intervindo, a traduzir para Cassandra a ordem da rainha, mas esta sai
zangada, perante a reacção enfurecida de Cassandra, que Clitemnestra considera de “louca”. Segue-se o diálogo entre o compassivo
Corifeu e uma Cassandra gritando e apelando a Apolo, o Corifeu
constatando, em extenso diálogo, os poderes proféticos de Cassandra, que sabe o destino que a espera no
palácio e anuncia igualmente a morte consumada de Agamémnon e a futura de Clitemnestra e de Egisto.
Eis as últimas palavras de Cassandra, antes de entrar no palácio: «Eu quero fazer mais um discurso, espécie de treno sobre
mim própria. Peço ao Sol, frente à sua última luz, que os meus odiados
assassinos paguem aos meus vingadores não apenas a morte do meu senhor, mas a
minha própria morte de escrava, que foi presa fácil.
Ó
condição humana! A felicidade, uma simples sombra basta para a alterar; quando
se é infeliz, uma esponja húmida destrói de um golpe a pintura. E das duas
mudanças esta última é a que me parece mais para lamentar.
E o Corifeu
considera os males
da Fortuna que se abatem sobre os homens, mesmo os mais bem-aventurados,
como “este homem” (Agamémnon): «… quem,
ouvindo isto, poderá vangloriar-se de ter nascido com um destino inacessível ao
mal?»
O 5º EPISÓDIO abre com o grito de Agamémnon (que repetirá, a um segundo golpe): “Ai
de mim, deram-me um golpe mortal”, a que sucederão as propostas de cada um
dos Anciãos do Coro, de extrema
actualidade, (quais parlamentares em mesa redonda tomando decisões políticas), iniciando-se
em exaltações vingativas e, o medo sobrepondo-se, terminando mais
ponderadamente por uma verificação in
loco: Ex: - «1º Ancião “Eu
digo-vos a minha proposta: clamar por auxílio, para que os Cidadãos acorram ao
palácio.” 2º “- E a mim
parece-me melhor forçar o mais depressa possível a entrada no palácio, para
apanhar em flagrante os assassinos, com a espada ainda a escorrer sangue”……12º: ”Estou inteiramente decidido a aprovar a seguinte
proposta: saber exactamente o que se passa com o Atrida»
(Didascália: A porta do palácio abre-se e deixa ver os cadáveres
de Agamémnon e Cassandra. De pé, Clitemnestra empunha uma espada
ensanguentada).
Clitemnestra
inicia
um discurso ao Corifeu, bem
expressivo da sua qualidade de mulher enérgica, orgulhosa, vingativa, sem
escrúpulos nem arrependimentos, assumindo as suas acções, perfeitamente ciente
das suas razões, expressas tantas vezes de forma sentenciosa, defendendo
igualmente a irmã Helena dos ataques
do Corifeu e do Coro indignados e profundamente infelizes pela
morte do seu rei. ( Ex.: CORIFEU: Ah! Ah! Meu
rei, meu rei, como te hei-de chorar? Do fundo do meu peito amigo, que te direi?
Jazes nesta teia de aranha, exalando a vida numa morte ímpia. CORO: «dominado,
ai de mim, neste leito indigno de um homem jivre, por uma mão traiçoeira, que
brandiu uma arma de dois gumes”)…
Alguns passos: Clitemnestra: “Não
me envergonharei de dizer o contrário do muito que antes disse por conveniência.
É evidente que, quando se preparam actos de inimizade contra inimigos, que passam
por ser amigos, não é possível de outro modo armar as redes da desgraça, a uma
altura intransponível ao salto. …… “Sendo assim os factos, venerandos anciãos
de Argos aqui presentes, alegrai-vos, se quereis alegrar-vos, que eu glorio-me
do que fiz”……. “CORO: “Mulher, que alimento maldito, criado pela terra, ou
que beberagem, proveniente do mar sempre em movimento, tu ingeriste, para
ousares tal sacrifício, atraindo assim as maldições populares? Tu lançaste
fora, tu cortaste, e por isso serás banida da cidade, objecto do ódio potente
dos cidadãos.”
….Clitemnestra: Hoje condenas-me ao exílio e votas-me ao ódio dos
cidadãos e às maldições populares. Mas não tomaste então nenhuma atitude contra
este homem, quando ele, despreocupado, como se se tratasse da morte de uma
ovelha, saída da multidão dos seus rebanhos bem penteados, sacrificou a sua
própria filha, a dor mais cara das minhas entranhas, para encantar os ventos da
Trácia. Não era a ele que tu devias ter banido desta terra como castigo dos seus crimes? Mas não senhor, é ao
tomar conhecimento dos meus actos que tu te arvoras em severo juiz……
….Clitemnestra:
Não creio que se possa considerar indigna
a morte deste homem… Efectivamente, não foi pela traição que ele fez a desgraça
cair sobre este palácio? Sofreu o que merecia, por ter dado ao meu rebento,
dele concebido, a minha muito chorada Ifigénia.
O CORO remata o 5º Episódio com os
considerandos sobre as estranhas manipulações da Justiça de crime e castigo
segundo designação do Destino, Zeus impondo essa ordem; «Ultraje responde a ultraje: difícil é julgar. Quem
rouba é roubado, quem mata recebe a sua paga. Enquanto Zeus se mantiver no seu
trono, manter-se-á a lei de que o pecador tem de sofrer: assim está
superiormente determinado. Quem poderá expulsar da casa a semente da maldição?
A raça está soldada à desgraça.»
(Todavia, a 3ª parte da ORESTEIA – EUMÉNIDES – mostrar-nos-á um Orestes não
desafiador dos Deuses, numa hybris
(desafio) que levará ao aniquilamento, como aconteceu com seus pais, mas
cumpridor de uma ordem superior, que leva a um ajuste entre deuses e homens, em
tribunal próprio – Areópago – que
converterão as Erínias vingativas em brandas Euménides, o tribunal ajudando a uma melhor avaliação dos crimes,
tendo por base a própria responsabilidade dos homens pelos seus actos).
Termina a peça com o ÊXODO, em que pela
primeira vez surge Egisto, vangloriando-se de ter sido o autor da
traça vingativa que transformou Clitemnestra,
(além de adúltera), em criminosa assassina do seu marido, por vingança
dele, Egisto, um dos
filhos de Tiestes, escapado
ao banquete em que Atreu, pai de
Agamémnon e de Menelau e irmão daquele, fizera comer a Tiestes os próprios filhos, em falso sacrifício
aos deuses, como também Camões refere no
episódio da “Linda Inês”:
«Bem puderas,
ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos, por mão de Atreu, comia! » (Lus., III, 132)
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos, por mão de Atreu, comia! » (Lus., III, 132)
A raiva e ironia do CORIFEU contra esse Egisto selvagem e ameaçador merecem referência
igualmente, como sintomáticas de uma figura que a raiva e a grosseria dominam
no seu diálogo com o Coro, igualmente ameaçador, trazendo à baila o nome de Orestes, provável vingador, o suspense
continuando sobre a vida dos Átridas, em
continuação de crimes que merecerão – ou não – o perdão dos deuses.
Pertence a Clitemnestra a última palavra, dirigida a Egisto: “Deixa
ladrar à vontade: somos os senhores desta casa, connosco vai entrar tudo na
ordem.
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