Natal na moderna poesia portuguesa, o tema inexistente na poesia antiga,
de outras prioridades íntimas.
Natal
Miguel Torga (in
Diários)
Foi tudo tão pontual
Que fiquei maravilhado.
Caiu neve no telhado
E juntou-se o mesmo gado
No curral.
Nem as palhas da pobreza
Faltaram na manjedoira!
Palhas babadas da toira
Que ruminava a grandeza
Do milagre pressentido.
Os bichos e a natureza
No palco já conhecido.
Mas, afinal, o cenário
Não bastou.
Fiado no calendário,
O homem nem perguntou
Se Deus era necessário...
E Deus não representou.
Que fiquei maravilhado.
Caiu neve no telhado
E juntou-se o mesmo gado
No curral.
Nem as palhas da pobreza
Faltaram na manjedoira!
Palhas babadas da toira
Que ruminava a grandeza
Do milagre pressentido.
Os bichos e a natureza
No palco já conhecido.
Mas, afinal, o cenário
Não bastou.
Fiado no calendário,
O homem nem perguntou
Se Deus era necessário...
E Deus não representou.
Natal... Na província
neva
Fernando Pessoa
Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!
Chove. É Dia de Natal
Fernando Pessoa, in
Cancioneiro
Chove. É dia de
Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
E toda a gente é
contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.
Pois apesar de ser
esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.
Deixo sentir a quem
quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.
Fernando Pessoa,
in Cancioneiro
Natal
Manuel Alegre, in
Antologia Poética
Acontecia. No vento.
Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr
pela música acima.
Uma onda uma festa.
Palavras a saltar.
Eram carpas ou mãos.
Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras.
Ou talvez mar.
E acontecia. No
vento. Na chuva. Acontecia.
Na tua boca. No teu
rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus
ritos.
No teu sono nos teus
gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos
teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios
infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.
Era um sopro. Era um
salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só
tempo: andamento
de poesia. Era um
susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela
chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada
acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada
pelo vento.
Natal Natal (diziam).
E acontecia.
Como se fosse na
palavra a rosa brava
acontecia. E era
Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no
teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa
e a palavra.
Todo o tempo num só
tempo: nascimento de poesia.
Natal Chique
Vitorino Nemésio,in
Antologia Poética
Percorro o dia, que
esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.
Hoje é Natal. Comprei
um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.
Valeu-me um príncipe
esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado…
Só esse pobre me pareceu Cristo.
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado…
Só esse pobre me pareceu Cristo.
David Mourão-Ferreira
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Há-de vir um Natal e
será o primeiro
Em que se veja à mesa
o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
Em que hão-de me
lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
Em que só uma voz me
evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
Em que não viva já
ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
Em que nem vivo
esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
Em que terei o Nada a
sós comigo
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
Em que nem o Natal
terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
Em que o Nada retome
a cor do infinito
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