De Teresa de Sousa,
sobre a década praticamente transcorrida. Amanhã começam os anos 20 do século XXI, e a
incógnita mantém-se sobre os problemas criados nesta que passou e que TS bem
define. Afinal, sempre
assim foi, “le roi est mort, vive le roi”... Novas perspectivas aí virão,
e a sociedade espera, para ver...
OPINIÃO
2019, 2020
Trump ser ou não reeleito em Novembro de 2020 é um dos acontecimentos –
ou, talvez, o acontecimento – que vai definir a próxima década.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 29 de Dezembro de
2019
1. Termina uma década que começou com os efeitos
devastadores da crise que abalou o coração do sistema financeiro mundial,
transformando-se na Grande Recessão, cujos efeitos ainda estamos a sofrer. Nasceu nos Estados Unidos, com a crise do subprime
(2007) e com a queda do Lehman Brothers (2008) e propagou-se em ondas de choque
à escala global, atingindo com mais violência as economias ricas do Ocidente.
Foi isso que a distinguiu de outras, cujo epicentro se situou na
Ásia ou na América Latina. Trouxe com ela uma vaga de desconfiança em relação ao
modelo de desenvolvimento económico ocidental, até então aquele que toda a
gente queria copiar como o caminho mais rápido para o enriquecimento. Abriu as portas à emulação de modelos de tipo
chinês, geridos com mão de ferro pelo Estado ou por uma “tecnocracia
inteligente” que se acha dona da verdade à qual o comum dos mortais não tem
acesso. A crise, que começou por ser financeira, económica e social,
acabou por traduzir-se em pesadas consequências políticas para as democracias
liberais e para o mundo. Na segunda década do século XXI, vimos entrar em cena
novas e velhas correntes populistas e nacionalistas. Já nos habituámos a elas,
mesmo que ainda não tenhamos descoberto a maneira mais eficaz de as derrotar.
Apenas sabemos que são contagiosas.
2. À escala global,
esta foi a década da emergência dos “homens fortes”, que exploram as fraquezas
dos países onde a desigualdade é mais gritante e a corrupção é mais chocante.
São arautos de um discurso fortemente nacionalista, que aponta o dedo a forças externas para
os problemas internos. Putin já era um modelo consagrado. Tem hoje vários seguidores. No
Brasil, nas Filipinas, na Turquia, ou até na Índia. Nos Estados Unidos, que nasceram como República democrática, Donald
Trump sonhou tornar-se um deles, ainda que sem o menor sucesso. Limita-se a
invejá-los. As instituições americanas têm revelado, como era de esperar, uma
enorme endurance perante as investidas autoritárias do actual morador da Casa Branca. Sendo ainda
os Estados Unidos a superpotência mundial, ser ou não reeleito em Novembro de
2020 é um dos acontecimentos — ou, talvez, o acontecimento — que vai definir a
próxima década. Não tanto por
razões internas: a democracia americana continuará a resistir, caso seja
reeleito. Mas pela sua capacidade de destruição da ordem internacional liberal,
a viver a sua mais séria prova de vida. Os Estados Unidos eram o seu principal
garante, através da rede de alianças e das instituições multilaterais que
criaram no pós-guerra. Hoje, numa crescente desordem internacional para a qual
Trump contribuiu, o mundo resvala para a velha rivalidade entre grandes
potências que esteve quase sempre na origem dos conflitos e das guerras — que,
mais uma vez, apenas os EUA ainda estão em condições de travar.
A China passou a
ser a mais directa concorrente ao estatuto de líder mundial. A novidade está na desfaçatez com que exerce o seu
poder, seja na sede da ONU, seja nas mais prestigiados universidades ocidentais
ou quanto à liberdade e imprensa e de expressão fora das suas fronteiras. Tirou a máscara. Já ninguém pode dizer que
ainda não percebeu a verdadeira natureza do poder de Pequim.
A Rússia, com a sua
economia relativamente débil e a sua força militar, incluindo nuclear,
transformou-se numa potência revisionista da ordem estabelecida. Imprevisível
e, portanto, altamente perigosa. Durante
a Guerra Fria, a ameaça soviética traduzia-se em milhares de carros de combate
na fronteira da Alemanha Ocidental. À vista de todos. Como à vista de todos
estavam as suas “quintas colunas” no seio das democracias. Hoje, as armas de
Moscovo são outras: os partidos populistas e de extrema-direita que dependem da
sua pródiga ajuda financeira, e batalhões de hackers capazes de
utilizar as redes sociais e de piratear os sistemas informáticos mais
sofisticados para interferir nas decisões e nas eleições das democracias. Foi
assim nos EUA em 2016. É assim hoje na Europa.
Na Índia, Narendra Modi conseguiu desencadear a maior vaga de protestos da
década com uma lei que apenas garante a cidadania aos não muçulmanos dos países
vizinhos, dando mais um passo na doutrina nacionalista do seu partido: um país
onde apenas os hindus podem ser cidadãos de primeira.
A nossa boa velha Europa, com o seu modelo social único no mundo, com a
sua imensa diversidade cultural, que é, em boa medida, a explicação para o seu
incrível sucesso, não tem conseguido reencontrar o caminho da unidade que lhe
poderia garantir a força de que precisa num mundo que deixou de lhe correr de
feição para passar a andar em sentido contrário. Continua profundamente
dividida — cada vez mais dividida, mesmo que não pareça. No dia 31 de Janeiro
vai perder um dos seus principais bastiões. Mau presságio.
3. Por cá,
neste nosso pequeno recanto, que se considerava imune aos extremos, a paisagem
começa a mudar lentamente. Aquilo que já era visível nas redes sociais salta de
repente para a rua e para o próprio Parlamento. Certamente com muito
dinheiro em caixa, os cartazes do Chega mostram a mesma desfaçatez que os seus adeptos,
conhecidos e desconhecidos, manifestavam nas redes sociais. Não é um movimento
de extrema-direita à deriva. Tem uma ideia e uma estratégia. Não convém
subestimá-lo. A Iniciativa
Liberal não tem a mesma natureza, mas aproxima-se no método: um discurso
igualmente simples mesmo que aparentemente racional, capaz de resolver qualquer
problema do país, incluindo a pobreza ou a Saúde, desde que o Estado seja
reduzido à sua mínima expressão (passámos os anos 1980 e 1990 a ouvir esta
receita infalível, até ao momento em que o Estado teve de salvar os bancos) e o
socialismo desapareça da face da Terra. Tal como o Chega, exibe nas ruas cartazes gigantescos e ganha todos os
dias adeptos nas redes sociais. Já o Livre, com a sua velha cultura de extrema-esquerda
(apesar de não parecer) e a sua pseudodemocracia interna sem líderes e com
“colectivos”, vai-se esvaindo, entrincheirado entre a política identitária da
deputada que conseguiu eleger e uma aparente paz interna que apenas esconde uma
luta fratricida para saber quem fica com os restos.
E depois os portugueses não são os melhores do mundo (à excepção de
Ronaldo) como o Presidente insiste em nos fazer crer. São como os outros povos,
com os seus defeitos e as suas virtudes. Com a sua História, que não tem nada
de transcendente. E com a necessidade urgente de aprender algumas verdades
básicas. Tão básicas como andar apertado nos transportes públicos, de
preferência em pé para caber mais gente (recomenda-se, se possível, uma visita
ao metro de Paris, de Londres ou de Tóquio). Como não culpar o Estado por tudo
o que de mal lhe acontece, sem nunca se culpar a si próprio (um pouco do
espírito individualista americano seria bastante útil). Mas também exigir
melhor informação, para saber, por exemplo, que há manchetes na imprensa
francesa ou britânica sobre os hospitais públicos e os respectivos serviços
nacionais de saúde exactamente iguais às dos jornais portugueses. Ou que a
melhor forma de combater a corrupção é através de uma cultura de
responsabilidade, geral e não apenas dos políticos ou dos grandes interesses
económicos. E não através do justicialismo de um sistema de Justiça muito pouco
transparente ou dos “arcanjos vingadores” que querem ser os novos heróis
dos media.
4. 2019
foi também o ano de todos os protestos. Do Chile a Hong Kong, passando pela Índia, Bolívia,
Colômbia, Venezuela, Espanha, França, Rússia, Argélia, Iraque, Sudão, Líbano ou
Irão. As razões são muito
distintas. Em Hong Kong ou em Moscovo luta-se pela democracia. No Iraque, no
Líbano ou até no Irão luta-se contra as injustiças sociais e já não contra o
Grande Satã americano. Na Argélia ou no Sudão derrubam-se ditadores que se
consideravam eternos. Nos EUA ou na Europa, luta-se pela defesa do planeta ou
pelos direitos das mulheres. Em Paris, enchem-se as ruas para defender direitos
adquiridos. Podemos ter apreciações diferentes sobre a sua justeza, mas elas
revelam uma sociedade vibrante e activa, disposta a lutar contra os ditadores,
contra as tentações autoritárias, mas também por mais justiça social, por mais
direitos, por mais liberdade. São também fruto das redes sociais e de um mundo
que os media tornam cada vez mais próximo. A
política globaliza-se, enquanto a globalização económica regride.
Bom ano!
COMENTÁRIOS
Carlos Costa. Brilhante TdS.
vinha2100, 29.12.2019: Mais um artigo de notável qualidade da Teresa de
Sousa. Um dos melhores colunistas deste jornal de referência, com uma qualidade
intelectual e um convite ao debate inteligente exemplares.
francisco tavares, 29.12.2019: O avanço da democracia e a escolha dos
políticos/governos através do voto põe o ónus da responsabilidade nos
eleitores. Serão os eleitores independentes ou estarão a ser presa fácil dos
demagogos e populistas que prometem muito, mas, no fim de contas, pouco ou nada
dão e podem tirar muito? Estarão, por exemplo, os eleitores americanos
conscientes dos efeitos perniciosos que causarão à política internacional, e
interna, se o actual inquilino da Casa Branca for reeleito em Novembro de 2020?
É evidente que os europeus devem assumir financeiramente a sua defesa. Mas é
sensato sepultar uma aliança de décadas, como a NATO? Os políticos responsáveis
devem exercer uma ação pedagógica forte no sentido de esclarecer os eleitores.
E apontar as suas responsabilidades na hora de votarem.
JonasAlmeida: Caro Francisco, a desqualificação do voto por ser
influenciado pelos púlpitos do que quer que seja tem como único efeito a
culpabilização (e eventualmente a punição) colectiva. Talvez mais produtivo
perceber as motivações para a falta de vontade dos outros sustentarem o
mercantilismo dos mínimos denominadores comuns. Repito a ref em
baixo - ver CNBC "During the NATO summit, the US needs the EU to focus on
trade, not just defense spending".
Vermont76: 29.12.2019 4: Mais uma vez está de parabéns TdS pela sua perspectiva
é à qual concordo plenamente. Cumprimentos e bom ano!
Armando Heleno, 29.12.2019: Não preciso comentar. Corroboro totalmente.
JonasAlmeida, 29.12.2019: Vamos lá ver se este sobrevive sem ser conspurcado:
votos de um bom ano para si também!
Estes artigos de TdS são pregos a que nenhuma realidade
parece virar o bico.
Vejamos. Os americanos não estão mais interessados na ordem mundial que
sustentaram até aqui. As elites que comandam essa ordem, e beneficiam dela de
formas crescentemente criminosas, também não estão interessadas nos americanos.
Parece um divórcio bem democrático. Qual é a espiga? Sobre a "boa velha
Europa" criada para avançar o mesmo modelo social que afinal a UE saqueia
e esventra já nem vale a pena tentar. Os números que é pelo contrário fora da
zona euro, e em vários casos fora da geografia europeia, que esse excelente
modelo prospera, não contam, são "populismo".
Não fui completamente justo - mesmo no meio de geoestratégias
convoluídas, Teresa de Sousa não tem dificuldade e destrinçar as semelhanças na
metodologia demagógica entre a Iniciativa Liberal e o Chega (no #3). Uma vénia
aqui pelo tiro certeiro :-D. Um bom ano Novo!
PRO, 29.12.2019: Claro que o ditador do Jonas Americano tinha de vir
criticar os Liberais! Quais são os países fora do euro e da UE onde ele
próspera? Será a Noruega ou Suiça ou Canadá? Esse sempre foram! Na verdade é a
UE que está a ajudar a construir esse modelo nos países de Leste. Você nunca
andou nas Balkans pois não?, Já alguma vez visitou a Roménia ou a Bulgária ou a
Macedónia? Não fale do que não sabe Jonas! E na verdade o Brexit vai é
destruir o resto que existe de estado social no RU!
JonasAlmeida, 29.12.2019 : A nota sobre as semelhanças na metodologia demagógica
entre a Iniciativa Liberal e o Chega são citações do artigo de TdS, no #3. Acalea-se
e leia o que critica.
PRO, 29.12.2019: São citações de que eu discordo! A IL em nada se
assemelha ao Chega e TdS nao está sempre certa pois nao?
francisco tavares, 29.12.2019 : Aceita-se que os americanos não queiram pagar a defesa
da Europa. Não se aceita é que Trump se alie a Putin. Porque aliar-se a um
personagem do calibre de Putin é estar a tramar a Europa e também a América. Pretender terminar uma aliança como a NATO, de um dia
para o outro, é tramar a Europa. A componente política da NATO é útil e
importante para os europeus e americanos. Porque têm, ou tinham, uma visão
semelhante sobre as grandes questões das sociedades modernas: a democracia, os
direitos humanos, a luta contra a pobreza, as questões ambientais (a salvação
do planeta), entre outras coisas. Recentemente, o impeachment veio juntar mais
uma razão porque os americanos se devem desfazer de Trump. Será que para os
americanos, a Europa se tornou no inimigo público número um? Às vezes parece.
PRO: Francisco não tornou! Apenas para o Americano Jonas! Uma sondagem de
setembro do pew institute revelou que uma maioria de Americanos é a favor da
UE!
JonasAlmeida. Francisco, vou repetir via ref o argumento que aqui
circula e deixo-o pensar sobre o tema da sua pergunta: ver artigo CNBC de 3
Dezembro "During the NATO summit, the US needs the EU to focus on trade,
not just defense spending". Sobre a Rússia, lembre-se que os americanos
dão a guerra fria como concluída. Não ficaram amigos, mas tb não são inimigos.
Tirando as tais elites que o eleitorado não mais suporta, não há muita gente
interessada na conversa do urso mau da estepe, ou da Crimeia não ser russa etc
etc.
Pedro Matias: 29.12.2019 Excelente perspectiva! Que mundo paradoxal.
PRO 29.12.2019 Não vai definir a próxima década diria eu. Vai definir
os 4 anos de Presidência. Porque por essa ordem de ideias a eleição de Trump em
2016 já definiu esta década. Se há coisa que devíamos ter aprendido é que nada
é definido. Basta olhar para o embrolio do Brexit.
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