sábado, 28 de dezembro de 2019

Uma lição magistral



Que analisa um problema social a partir das suas raízes filosóficas e literárias mais próximas, que retomam em força, ao que se vê, como torrente de rio que ora seca ora explode em exuberância que tudo destrói. O certo é que Rousseau influenciou os séculos vindouros, mesmo na psicanálise, e, apesar das maldades que lhe imputam – sobretudo na questão dos filhos, que enviou para a “Assistência Pública” – é apreciado como génio criador que foi, de teorias sociais de vasta repercussão. O certo é que o seu espírito de ânsia conquistadora, contraposta a uma consciência rancorosa de proscrito social, são fenómenos que o levaram a uma originalidade criadora em vários domínios, mesmo no pedagógico, e a crónica da professora universitária Patrícia Fernandes é bem vinda, por retomar a questão do individualismo hodierno, de justificação literário-filosófica, aspecto que os seus comentadores igualmente apreciaram.
A epistemologia do eu
Amadurecer é encontrar um equilíbrio entre os desejos pessoais (a condição de infância, em que queremos tudo e já) e as regras sociais. Mas hoje parecemos presos a uma sociedade de eterna adolescência
OBSERVADOR, 27 DEZ 2019
«What you are suggesting is unthinkable. The order of succession to the throne is determined by the Act of Settlement of 1701, not the wild and irresponsible whims of young princesses. The principle of undisturbed hereditary descent is a pillar of stability and perpetuity for the nation. (…) I would urge you to accept your position in life and to dismiss forthwith any childish notions about rewriting the rule books that it might better suit your character. We all have a role to play.» The Crown

Uma das tentações mais perigosas da reflexão política é a da simplificação. O seu poder hipnótico passa por, apresentando causas e efeitos lineares, criar a ilusão de controlo, a ilusão de que podemos não só compreender, mas também condicionar tudo o que vai acontecendo à nossa volta. É este, por exemplo, o poder das ideologias. Enquanto narrativas simplificadas de termos e relações causais, elas parecem tornar o mundo mais inteligível. Trata-se, contudo, de uma fantasia, e a compreensão de um mundo cada vez mais complexo implica o esforço de, periodicamente, darmos um passo atrás e ganharmos distanciamento sobre os acontecimentos. Uma boa estratégia passa por revisitar os autores que ainda hoje influenciam o nosso modo de pensar e entender como os seus legados, muitas vezes contraditórios, se mantêm como discursos hegemónicos ou de resistência, ou como aparentes derrotados que vingam muito tempo depois.
Esta perspetiva permite, nomeadamente, iluminar os legados de John Locke e Jean-Jacques Rousseau. A vitória da democracia liberal significou a vitória de Locke e de um vocabulário centrado em direitos naturais, limitação do poder político, consentimento, representação, direito de resistência. E tal significou a derrota do modelo rousseauniano de participação, comunitarismo e poder político não limitado. Mas a segunda metade do século XX viu regressar o espírito de Rousseau, radicalizando o individualismo que caracteriza a modernidade e dando forma a fenómenos políticos radicados naquilo que podemos designar como a epistemologia do eu.
A epistemologia do eu resulta do legado de Rousseau que assenta no espírito de rebeldia de um eu interior que vive em permanente confronto com a sociedade exterior. Para o genebrino, o estado de absoluta liberdade e igualdade do ser humano – em linguagem contratualista, o estado de natureza – é o estado em que, vivendo sozinhos, somos autores das próprias leis e não dependemos dos outros. É quando passamos a viver em sociedade que perdemos, progressivamente, liberdade e igualdade naturais: não só deixamos de determinar as regras, como a vivência com o outro nos corrompe, destruindo a natureza do bom selvagem.
Há, nesse sentido, em Rousseau uma luta constante com a sociedade e com os outros – e a sua biografia pessoal, retratada nas deliciosas Confissões, revela precisamente esta luta, num confronto permanente com a sociedade que o rodeia, com amigos de sempre que deixam de o ser, com um mundo que conspira constantemente contra ele. Mas o sentimento de atracção que a sua leitura provoca é proporcional à sensação de desconforto que resulta do facto de Rousseau parecer um eterno adolescente, procurando a sua identidade na oposição constante aos outros. Permanecendo neste estado, nunca cresce, nunca amadurece, nunca aprende a viver num mundo que o antecede e que permanecerá após a sua morte.
É por esta razão que Rousseau é tão sedutor para aqueles que sentem desconforto com o mundo que os rodeia. E é este espírito rousseauniano que marca muito da política atual: a vontade de mudar o mundo de acordo com desejos pessoais, recuperando uma liberdade inicial à custa de impor aos outros uma vontade individual. A legitimidade dessa imposição residiria na experiência pessoal e individual que é superior à experiência colectiva – a epistemologia do eu prevaleceria sobre a epistemologia do nós.
Este modo de ver o mundo e a política apresenta, contudo, um sério problema: é que, ao centrar-se na ideia de que existe um eu interior que é puro e que se opõe a uma sociedade que deve ser alterada para servir as necessidades desse eu, leva-nos a desvalorizar as instituições, as regras, os consensos que nos antecedem. Se o mundo não respeita os nossos desejos interiores, então pior para o mundo, que se crie um mundo novo. Mas há algo de profundamente perverso na ideia de que as nossas vontades são moralmente superiores ou politicamente mais válidas do que instituições que sobreviveram durante séculos e que cumpriram, em sentido burkiano, a sua função. Há algo de perverso e infantil – mas também perigoso, porque nos impede de dar um sentido coletivo às decisões políticas, curiosamente em contradição com as próprias ideias de Rousseau. A vertigem do eu impede a prossecução de consensos em torno do nós.
Talvez faça sentido, por essa razão, recordar uma antiga lição: amadurecer significa encontrar um equilíbrio entre os nossos desejos pessoais (que marcam a condição de infância, em que queremos tudo e já) e as regras sociais. Mas hoje parecemos condenados a uma sociedade de eterna adolescência, centrada em dinâmicas de vitimização que procuram mudar o mundo e as suas regras para que se adaptem ao eu de cada um. Mas lembremo-nos de que Rousseau morreu sozinho, revoltado com o mundo e enlouquecido pela ideia de que todos lhe queriam mal – uma experiência que, pessoal e coletivamente, talvez não queiramos repetir.
Professora da Universidade da Beira Interior
COMENTÁRIOS
Pedro Ferreira: Excelente reflexão, Dra Patrícia. Precisamos de doutrina como este pequeno excerto, e faltou referir que a teoria de Rousseau inspirou o Marx e as bases do comunismo. Não sei se foi por acaso, mas as biografias de Marx e Rousseau têm um ponto em comum, um total desprezo pela família, os filhso de Rousseau foram todos para a roda e os de Marx passavam muita fome, além de ser um bêbado.
David Inácio: Excelente reflexão, gostei muito de a ler.
Jay Pi: Meter os filhos num orfanato e para sempre anulá-los da sua vida para poder andar nos salões da alta roda da sociedade, entre festas, banquetes e concertos, para ter animadas conversas sobre filosofia e política, diz muito do carácter delirante e incoerente de Rousseau. Mais umas décadas e teríamos o menino Marx na mesma linha abjecta de vida pessoal absurda e imoral a pregar contra as modas. 
Lourenço Marques > Jay Pi: : J.J. Rousseau era paranóico e mitómano, além de ser um imoralista convicto. Sabia-se que era maluco e indigno de confiança, mas como os seus livros faziam um sucesso de escândalo e provocavam a ira das autoridades, a sociedade elegante gostava de o convidar para o exibir nos seus salons como um bicho raro ou uma curiosidade exótica. Provou-se que a maior parte das suas Confissões são uma invenção pura e simples. Huizinga chamou-lhe "psicopata de génio".
Jay Pi: Relativamente a Rousseau, basta ter em conta como tratou os próprios filhos para ter a noção de como era um biltre e um poço de incoerência, frieza, egoísmo, maldade e imoralidade. 
Maria Mateus: Concordo. O “eu” puro (julga o dito “eu”) é que sabe e por isso a sociedade tem que se conformar a mim e às minhas convicções. Exemplo? A Gretinha que nada sabe mas está convencida de que só ela é que sabe. Loucos são os adultos que lhe dão ouvidos.
Miguel Cabral: Interessante, mas também não concordo. Há ideias consideradas aqui como opostas e contraditorias que podem viver juntas ou em sequência. 
Pérolas a porcos: Estás enganada, querida. Amadurecer não é "encontrar um equilíbrio entre os desejos pessoais (a condição de infância, em que queremos tudo e já) e as regras sociais". É já não querer tudo, nem já, nem mesmo as regras sociais. É perceber que os limites existem porque são necessários, e termos nós mesmos cosnciência disso, sem necessidade de seguir as "regras sociais" para saber onde eles estão (os limites). Essas regras existem para os jovens e para os idiotas que ainda não compreenderam que a única regra é saber onde estão, precisamente, os limites...
José Esteves-Pereira > Pérolas a porcos: Não percebo. Você afirma que amadurecer será "(...) perceber que os limites existem porque são necessários, e termos nós mesmos cosnciência disso, sem necessidade de seguir as "regras sociais" para saber onde eles estão (os limites).". De onde provirão então esses tais limites? Não serão exactamente as "regras sociais", que os definem?
pepe o azeri > José Esteves-Pereira: Penso que a ideia do Pérolas a porcos é que constatação ou consciência desses limites deve vir da própria experiência pessoal e não de regras impostas. E convenhamos, é mais eficiente aquilo que aprendemos do que aquilo que nos é imposto. As regras sociais existem para nos proteger daqueles que não conseguem chegar lá pela própria experiência.
José Esteves-Pereira > pepe o azeri: A sua resposta levanta mais problemas que soluções.Primeiro, a "experiência pessoal" não vive num limbo a-social pois é de todo a modo fruto do que o indivíduo é em cada momento num contexto social. Ou seja, dificilmente se poderá distinguir o que, numa "experiência pessoal" há de radicalmente pessoal e o que há de socialmente sobredeterminado.Segundo, você parte do princípio de que as regras são "impostas" no sentido de "forçado"; ignora o que em sociologia se designa por socialização.Terceiro, como aprendemos? A não ser que vivamos sós numa "ilha deserta" estamos sempre mergulhados na sociedade, suas regas, etc. Então toda a aprendizagem é ela também socialmente sobredeterminada. O conceito de "imposição" implica uma situação de conflito declarado e assumido entre o que no indivíduo ele se apercebe ser "exterior" e aquilo que acredita ser "interior". Mas nem sempre existe tal conflito. Diria mesmo, só ramente tal conflito se verifica mesmo no indivíduo "que consegue chegar lá pela própria experiência". Quarto: uma posição arrogante. Explico: alguns individuos teriam a capacidade superior de não necessitarem de se submeter a regras sociais pois a sua experiência bastaria para descobrirem os limites aos quais se devem voluntariamente submeter e que sejam definidos por si (esta é a ideia básica de J.J. Rousseau).
Pérolas a porcos > pepe o azeri: É exactamente isso.

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