segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Mais do mesmo



Um texto de Francisco Assis, sobre um casus belli do nosso far niente de tanta incúria e provocação, nada de muito importante, charlatães que somos, mais do que trabalhadores virados para o bem comum, caso das gotas de chuva que caem dos beirais, unidas, a significar qualquer coisa de funcional, ou apenas servindo de pura imagem a que queremos atribuir um sentido animista de sentido positivo. Mas não me parece que a imagem resulte, puras gotas que não impressionam ninguém, pois até gostamos de todos os tipos de chuva, sobretudo da que nos faz dançar... à chuva como o Gene Kelly. O pior mesmo é se forma enxurrada.
OPINIÃO
André Ventura – a vergonha e o charlatão
O discurso de André Ventura, no estrito plano da boçalidade retórica, em nada se distingue de um certo tipo de discurso que a extrema-esquerda há muito tempo introduziu no debate parlamentar.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO,  14 de Dezembro de 2019
O charlatão e o profeta tornaram-se duas figuras referenciais dos tempos que atravessamos. O charlatão é um cínico que cultiva a pretensão de ser levado a sério. O profeta idolatra convicções e teme ser objecto de qualquer tipo de dúvida. Um e outro são perigosos. Ambos desvalorizam o campo da argumentação racional, do debate aberto e livre, da contraposição plural de opiniões e pontos de vista. Para o charlatão as ideias, os projectos e as aparentes certezas são meros instrumentos descartáveis, destituídos de peso e de densidade. Para o profeta a ambiguidade, a indeterminação, a incerteza são sinais de uma fraqueza originada por motivações moralmente duvidosas. Na sua oposição, charlatães e profetas convergem num ponto fundamental: o debate democrático é-lhes igualmente estranho.
O charlatanismo político está presente em quase todas as correntes doutrinárias e representa uma das maiores ameaças à credibilização pública dos regimes democráticos. Há, porém, quem se esmere no zelo com que o pratica a ponto de conseguir, assim, singularizar-se no contexto político em que opera. Nas últimas semanas assistimos em Portugal a um exercício prático revelador de quão irreprimível parece ser a vertigem pró-charlatanista de alguns eleitos políticos. Refiro-me a André Ventura, o solitário representante do partido mais à direita existente no Parlamento português. Com impressionante desfaçatez o novel deputado presta-se amiúde à peculiar tarefa de afirmar tudo e o seu contrário. Elevou mesmo esta inclinação até patamares quase demenciais. A enunciação de um antagonismo entre um discurso académico dotado de uma suposta validade científica e um discurso político de natureza mais livre, e como tal mais autêntica, remete para o domínio de uma patológica inconsistência. Imaginemos um físico que se desdobrasse num Dr. Jekyll empenhado em demonstrar a veracidade científica da lei da gravidade e num Mr. Hyde apostado em convencer os seus amigos e familiares a atirarem-se tranquilamente de um décimo primeiro andar para a rua.
Reconhecendo que há obviamente uma diferença entre o mundo do conhecimento e o mundo da opinião, e admitindo mesmo que esses dois mundos se estruturam segundo regras metodológicas diversas, afigura-se implausível, contudo, que um mesmo sujeito possa formular nesses dois campos posições absolutamente antagónicas. Quem assim procede age de um modo tão radicalmente atentatório dos mais elementares princípios de verosimilhança que não pode senão merecer o epíteto de um praticante do charlatanismo político.
Há, contudo, que afirmar, em nome do rigor que o próprio charlatanismo visa constantemente ofender, que até agora nada no discurso político de André Ventura aponta para uma adesão a uma doutrina fascista, tal como ela se configurou historicamente. Dada a natureza da personagem não é impossível que possa evoluir nesse sentido, mas o que é facto é que até hoje não o fez. Não se vislumbra nenhuma vantagem em atacá-lo por aquilo que ele não é ou, noutra perspectiva, ainda não é e não é legítimo afirmar que inevitavelmente venha a ser. Ventura é um demagogo sem escrúpulos e isso já é suficiente para ser devidamente contestado num debate sério e frontal. É isso que se espera que ocorra, semana após semana, na Assembleia da República.
Presidente da AR, político sério e experiente, entendeu censurar o deputado do Chega pela excessiva utilização da palavra vergonha numa intervenção proferida por este no Parlamento. Tal censura tem motivado ampla discussão pública. Essa discussão tem sentido e pode ser útil. Ferro Rodrigues verberou uma retórica de carroceiro que considerou indigna do debate parlamentar. Embora questionável este gesto não é destituído de sentido. O verdadeiro problema, porém, é outro: o discurso de André Ventura, no estrito plano da boçalidade retórica, em nada se distingue de um certo tipo de discurso que a extrema-esquerda há muito tempo introduziu no debate parlamentar. É certo que nos últimos tempos se tem auto-domesticado mas todos facilmente nos recordaremos da forma imprópria como durante anos tratou os seus adversários parlamentares, incluindo o próprio PS. Na época da troika, quando governava Passos Coelho, a extrema-esquerda instrumentalizava as próprias galerias da Assembleia numa clara manifestação de desconsideração pela instituição parlamentar.
Sendo assimFerro Rodrigues pode ser atacado por usar dois pesos e duas medidas. Essa contestação tem fundamento e, aliás, extravasa largamente o campo de acção do Presidente da Assembleia da República. Nos tempos que correm tende-se a ignorar com impressionante facilidade os desmandos dogmáticos, autoritários e sectários praticados pelos extremistas de esquerda, como se estes pudessem beneficiar de uma inimputabilidade política originada pela suposta bondade das suas intenções. A verdade é que não podem. A circunstância de se colocarem num pretenso lugar profético não lhes confere nenhuma legitimidade de tipo especial. Na prática, tal como referi inicialmente, a distância entre o charlatão e o profeta é bem menor do que aquela que separa ambos dos defensores das democracias liberais.
Comentários:
Eu Sou Portugal,  15.12.2019:  Ferro Rodrigues : Politico sério. ahahahahahah que risada!!
FS, 15.12.2019:   O que eu acho estranho é que o mesmo Sr. Rodrigues que nunca tenha admoestado nenhum das dezenas de deputados que aldrabavam a morada para receber subsídios de deslocação, fiquei agora muito chocado com a palavra vergonha, pronunciada pelo oportunista Ventura. Coerências...
Victor Nogueira, 14.12.2019: Para Assis e não só a extrema esquerda são o PCP e o Bloco. Assis sempre lutou por acordos do PS com a direita. Ventura é apenas pretexto para dizer: «O verdadeiro problema, porém, é outro: o discurso de André Ventura, no estrito plano da boçalidade retórica, em nada se distingue de um certo tipo de discurso que a extrema-esquerda há muito tempo introduziu no debate parlamentar.» O que dói a Assis é outra coisa, quando afirma: «Na época da troika, quando governava Passos Coelho, a extrema-esquerda instrumentalizava as próprias galerias da Assembleia numa clara manifestação de desconsideração pela instituição parlamentar.» Não sendo Assis nem demagogo, nem boçal, nem charlatão, que faz Assis?
Dr. Severino, 14.12.2019: Seria de esperar que Assis pusesse a extrema esquerda à beira dum ataque de nervos.
Gabriel Moreira,  14.12.2019: Bravo. É isso mesmo. Se a" vergonha" fosse da esquerda, passava.
luis pires, 14.12.2019: Mas afinal qual foi a malvadez cometida pelo deputado Ventura? Será que a palavra "vergonha" passou, com o acordo ortográfico, a ser um palavrão insultuoso? Claro que não! Apenas algumas elites arvoradas de uma censurável superioridade moral (Ferro, Assis, Pacheco Pereira e outros que tais) não conseguem suportar este deputado...mas, têm que relaxar porque, talvez na próxima legislatura, tenham que suportar múltiplos Venturas .... e depois podem ter muitos ataques de urticaria!!! VIVA A LIBERDADE DE EXPRESSÃO.... VIVA O NOSSO POVO!!!
Antonio Leitao, 14.12.2019:  Assis tem toda a legitimidade, e nalguns casos terá razão, em comparar os extremos. Mas no ponto da demagogia, a falsa equivalência que aqui tenta defender é uma miragem: tão grande quanto a falta de exemplos com que ilustra a sua tese. Finalmente, não deixa de ser irónico que pareça afastar o PS - esse bastião impoluto da seriedade parlamentar e política - do problema do crescimento da extrema direita anti democrática. Nesse ponto, o PS não tem nada para ensinar de bom aos que estão a sua esquerda na AR.
OzLuso, 14.12.2019:  Quando O Francisco Assis se confessa ser de esquerda, a mesma esquerda que sempre recusou a opiniao alheia a partir do momento que esta nao encaixa seja a que nivel for, no seu entendimento de discurso pretensamente democratico, a sua opiniao passa a pertencer ao mesmo nivel de charlatanismo que pretende denunciar. Relembro ao F Assis que essa sua esquerda democratica, no mundo atual foi responsavel por iniciar 2 guerras mundiais, as mais repressivas ditaduras ainda existentes no mundo comunista e socialista, a devastacao economica da maioria das nacoes Africanas pos independencia, os paises mais pobres do continente Americano e tem a lata de apelidar de extrema direita aos poucos conservadores nacionalistas que ainda rejeitam a tentativa da esquerda de criar uma ditadura mundial. Latosa?
PdellaF, 14.12.2019:  Claro como a água: Assis lembra muito bem que a prática anti-parlamentar já vem de longe, só que agora se equilibra entre a chamada esquerda, que a exerce impunemente há bastante tempo, e a denominada direita. Muito bem.
AndradeQB,  14.12.2019: Passando ao lado do facto do artigo deixar pensar que no centro a discussão é mais séria, a denúncia da duplicidade com que é encarado o termo "vergonha" vindo do BE e vindo do Chega faz-me fã de Francisco Assis. Eu aguento tudo, até porque posso estar errado, mas a doença que parece contaminar de forma galopante o mainstream de ter dois pesos e duas medidas, dá-me verdadeira alergia. Felizmente que ainda existe quem considere sua obrigação quando julga, usar de critério único.
José Manuel Martins, 14.12.2019: há uma espécie de hiper-charlatanismo que consiste em distinguir os dois indiscerníveis que são o bom político que discorre honestamente e o charlatão da 'extrema', que, por oposição ao primeiro, não resistiria a mentir, sofismar, distorcer, despedaçar a razão e o discurso argumentativo. É de rebentar a rir à gargalhada: em que é que um lunático de 'extrema' se distingue de um troca-tintas consumado da governação ou do parlapatamentarismo? E nem sequer podemos dizer que este terceiro tipo de charlatanismo ocupa um grau superior aos dois que assim distingue: na verdade, trata-se de um travestismo recíproco, tudo no mesmo plano.
Jose Bernardes, 14.12.2019:  Artigo lúcido e sereno. Abomino Ventura e tudo o que representa mas o paternalismo (inédito?) e a pretensa superioridade moral de Ferro Rodrigues pareceram-me despropositados. Parece que o desprestígio do Parlamento português "nasceu" com esta "figurinha". A linguagem já desceu de nível há muito e "vergonha" é, certamente, o menor dos "palavrões" que lá têm sido ditos. Voltando a Ventura, o que Francisco de Assis diz, e bem, é que ele tem de ser "atacado"/criticado pelo que defende ou diz, não deve ser atacado pelo que não defende nem diz, como por exemplo defender qualquer doutrina fascista. Por muito que custe a alguns, não podemos aplicar a Ventura o preconceito que o acusamos de ter contra uma parte da sociedade; a democracia é isso e essa deve ser a regra do jogo.
fernando jose silva, 14.12.2019: Estes e outros são a própria democracia....ou haverá modo melhor de a fazer num país desiludido ? Todo o circo tem os seus fazedores de riso. Não lhes chamo outro nome por respeito ao lugar e às idades , mas uns exagerem pelo tacho a mais que os faz donos, e outros pela insustentável leveza do seu ser. Tem ambos o mesmo direito, quer de falar, quer de estar calados....mas estão ali para gerir um país e não para discutir a semantica de cada um!!
Vitor Prata, 14.12.2019:  Para esta esquerda, ps inclusive, a luta pela liberdade onde se inclui a de expressao e opiniao, só é respeitavel quando se trata da "sua liberdade". Quando a liberdade é a dos outros e a de ser contra a sua opinião, então esta esquerda (ps incluido) é apologista dos censores mestres-de-escola e ate os aplaudem... vergonhosamente. Aqueles que aplaudem actos de censura de um presidente mal formado, que julga que o seu cargo abrange o poder autoritário de impor o léxico por si autorizado, mais não fazem que legitimar este presidente mal formado de silenciar as patifarias que os membros deste órgão de soberania têm praticado ao longo dos anos. Se isto é serem democratas, o maior democrata desta "democracia" é mesmo o andré ventura.
gualter.cabral, 14.12.2019:  Olha que "peça"! O Sr. Assis que tem andado a denegrir os seus camaradas, e larga "bojardas" a torto e a direito, sente-se no direito de defender a "honra e dignidade da sua Dama". Provavelmente, sente o seu lugar de charlatão ameaçado e, por isso, chama a este um principiante. Contudo, este meu "desabafo" serve para apoiar um ao outro. Mas, no mínimo, esta disputa entre "galinhas" toma formas hilariantes. Assim vai a nossa política, que no dizer de Eça ( referindo-se à AR) diz: " se lhe pusessem lampiões vermelhos era um lupanar"
Zé Goes, 14.12.2019:  O ACosta vai governar mais 4 anos e o homem já está cansado de purgatório. Está a perceber?
gualter.cabral,  14.12.2019: Zé Goes - Eu percebo, e toda a gente percebe que palavras leva-as o vento, o que conta é a praxis. Infelizmente "nem com uma candeia acesa durante o dia", como fez Diógenes, se encontra um Homem. E, olha, o "purgatório" é o que nós todos estamos a passar, Estes senhores vivem, à nossa conta, e vergonha é coisa que não sentem.
Manuel Pessoa, 14.12.2019: Não simpatizo com extremistas por considerar que facilmente se colocam em situações que não resistem a uma análise racional. Não posso, contudo, deixar de alertar os críticos de Ventura acusando-o especialmente de demagogia e populismo que a sua missão carece de o fazerem contestando as inverdades que propaga. Doutro modo, não vão (vamos) lá.


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