Histórias, não de encantar, mas com
encanto próprio, de história bem contada, mau grado a perversidade das
frustrações vividas (e mau grado o artificioso da abundância de pormenor inútil
sobre andanças mais recentes… Noblesse
oblige). Os tempos mais actuais contados com certa ironia sensaborona, bem à la page naquele tempo que também testemunhei
- distraidamente, todavia, tempo de afazeres…
▲D. Manuel II com a mulher, Augusta
Vitória, no Castelo de Sigmaren, cenário alemão do enlace do casal, em 1913.
ULLSTEIN BILD VIA GETTY IMAGES
Um amor no exílio, o príncipe que
Salazar "roubou" e a enchente nos Jerónimos. Três bodas reais em
tempo de República
Entre Alemanha e Portugal, e ainda no
Brasil, de D. Manuel II a D. Duarte Pio,
recordamos três casamentos históricos em vésperas da festa em Mafra.
OBSERVADOR, 06 out. 2023, 23:03
Índice
1913,
Sigmarigen — D. Manuel II e Augusta Vitória
1942,
Petrópolis — D. Duarte Nuno de Bragança e Maria Francisca
1995, Lisboa
— D. Duarte Pio e Isabel de Herédia
“Hoje
escrevo só para tratar um assunto sério e bem importante. O meu casamento. Como
lhe mandei dizer vou a Sigmarigen.”
1913, Sigmarigen — D. Manuel II e
Augusta Vitória
É através da correspondência trocada
que mãe e filho tratam “do assunto” e de caminho abordam as questões ligadas a
uma possível restauração monárquica em Portugal. Em fevereiro
de 1911, para elevar os ânimos nesse primeiro ano de exílio em Inglaterra, D. Amélia
decide relançar o casamento de D. Manuel, tema que adquire especial urgência a partir de 5 de
outubro de 1910, e põe–se
“novamente em campo para obter informações” que possam interessar ao futuro do
jovem de 21 anos. A mãe sonda as relações familiares e conhecimentos
que domina em quase todas as casas reais europeias, mas é o filho, monarca privado dos anteriores vínculos diplomáticos,
quem acaba por efectuar as diligências certeiras. Consciente da
importância política deste passo, D. Manuel tem também a percepção de que não
pode haver um enlace “sem menor atracção e afinidade”, lê-se em A Rainha Mal Amada (Temas e Debates), obra na
qual Margarida Durães reserva todo um capítulo às movimentações rumo à desejada
boda.
Como estabelecido, o rei que nunca abdicou do seu trono
viaja, a 29 de maio daquele ano, até esse castelo alemão
que evoca as saudosas “Sintra e a Pena”. É no reduto do primo Guilherme de Hohenzollern-Sigmaringen que
conhece a princesa
Augusta Vitória
(1890-1966), “bonita, muito fina, e elegante”, uma das noivas apontadas, com o
prudente D. Manuel a querer aguardar até conhecer outras pretendentes. Se o magro dote da jovem condicionava os
avanços, facto é que uma aliança com os Hohenzollern afigura-se sempre mais
promissora, e inofensiva, do que um matrimónio com uma princesa austríaca, à
mercê de manobras miguelistas. É assim que o rei se decide, conforme
carta enviada à mãe em que pede explicitamente que veja se “há possibilidade de arranjar o casamento com
a filha do príncipe Guilherme”. O pedido oficial só será consolidado em
abril de 1913, em nova viagem pela
Europa. “Tudo está arranjado”, comunica a D. Amélia três dias depois. “Mãe da minha alma estou felicíssimo!
Radiante!”
O
entusiasmo pessoal não é para menos. O anúncio do noivado com a
neta de D. Antónia, princesa portuguesa e filha da rainha D. Maria II, que se
casara em Sigmarigen, reabilita os humores monárquicos entre os resistentes
exilados, dispersos por Espanha, sul de França e Inglaterra.
Gravura alusiva ao casamento
de D. Manuel com Augusta Vitória de Hohenzollern, em 1913
Para
conhecer melhor a noiva, D. Manuel permanece na Alemanha durante algum tempo e
apressa-se nos preparativos e elaboração da lista de convidados régios. O
rei de Espanha e o tio Afonso perfilam-se para padrinhos. E para que Augusta
Vitória possa ser
apresentada à colónia portuguesa exilada em Inglaterra, Abercon House, em Richmond, assiste a uma garden party oferecida pelos anfitriões D. Manuel e D.
Amélia.
Em
4 de setembro realiza-se por fim a aguardada cerimónia religiosa, um dia depois
de a revista Mayfar, cita Margarida Durães, ter dedicado todo o seu número à
grande boda, espelho da ligação portuguesa a todas as casas reais europeias,
que enviam os seus representantes para o casamento. Por aqui desfilariam nomes
como Eduardo, príncipe de Gales, ou Eitel Friedrich, filho do imperador alemão
Guilherme II.
Durante
a missa na manhã do enlace, na capela do Castelo de Sigmaringen, o noivo
assiste de pé, ostentando a prestigiada Ordem da Jarreteira e o Grande cordão
da Banda das Três Ordens, sobre um simbólico caixote cheio de terra
portuguesa. A cerimónia
é presidida por José
Sebastião de Almeida Neto, cardeal-patriarca de Lisboa, à altura exilado em
Sevilha, e que já havia baptizado D. Manuel.
Quanto a presentes, D. Amélia não
deixa os créditos de rainha-mãe por mãos alheias e manda montar um colar de diamantes
e rubis na casa Cartier para oferecer à noiva. Do marido, Augusta Vitória
recebe ainda um diadema de platina dos joalheiros Leitão, com dois mil
diamantes e esmeraldas incrustados. Em Lisboa, os monárquicos fazem uma
subscrição, liderada por Monteiro Milhões, para poderem oferecer algo ao novo
casal.
Três dias de festejos depois, o mel rapidamente dá lugar ao fel. Os noivos rumam a Munique para uns dias mas Augusta,
ou Mimi, como carinhosamente é tratada pelo marido, adoece ao ponto de ser
internada, assolada por uma “febre infecciosa”, como relata D. Manuel à mãe,
detalhando que o mal-estar começara logo após o casamento, de forma a afastar
os rumores entretanto surgidos de que o casal estaria próximo da ruptura.
Suspeitas de influenza, febre gástrica e, por fim, o diagnóstico de
tifo adiam a alta médica, concedida apenas no
início de novembro. Depois da convalescença em Sigmarigen, o par fixa-se na
mansão Fulwell Park, em Twickenham, a um passo de Abercorn House, onde D.
Amélia reside agora, sozinha. Nesse Natal, e sem olhar a gastos, a matriarca
oferece ao casal uma biblioteca giratória. E a si própria um Renault 22 H5
descapotável.
▲ Os noivos, uma imagem da cerimónia religiosa,
um dos grupos que animou a festa e a mãe do noivo, D. Amélia de Orleans, entre
os convidados
É
nos cerca de 20 hectares de Twickenham, nos arredores de Londres, que D. Manuel
tenta recriar um ambiente português, entre a nostalgia da pátria e o empenho na
dinâmica da esfera britânica que o adoptou. Para aqui seguem os seus bens
particulares depois da proclamação da República e por aqui se mantém activo na
comunidade enquanto assiste aos sucessivos fracassos das tentativas de
restauração monárquica no seu país. Bombardeado
o Palácio das Necessidades, residência
oficial do monarca, para
trás ficariam a última noite passada em Portugal, no Palácio Nacional de Mafra, seguida do embarque na Ericeira no iate
Amélia, rumo ao Porto, a escala, afinal, em Gibraltar e por fim a chegada ao
Reino Unido, com o clã real a ser recebido pelo rei Jorge V.
Segundo
filho do rei D. Carlos e da princesa Amélia de Orléans, D. Manuel II ascendera
ao trono após o assassinato do seu pai e do irmão mais velho D. Luís Filipe,
Príncipe Real. A passagem por solo britânico do “Patriota”, o cognome
granjeado, revela-se
ainda hoje em topónimos como “Manuel Road”, “Lisbon Avenue” e “Portugal
Gardens”.
Filha
do príncipe Guilherme de Hohenzollern-Sigmaringen e da princesa Maria Teresa de
Bourbon-Duas Sicílias, Augusta Vitória
tem 22 anos quando se casa com aquele que é também seu primo em segundo grau. Como o rei estava exilado na Inglaterra e como a
monarquia havia sido formalmente abolida em Portugal, Augusta nunca recebe
oficialmente o título de rainha, embora, mesmo durante o exílio em Inglaterra,
seja assim tratada pelos monárquicos. “É uma figura
enternecedora, que continua a comover-me na sua fragilidade, nas linhas
delicadas do seu corpo, na sua cabeça de menina loura. Hohenzollern pura no
desenho do rosto, verdadeira princesinha austríaca na cor da epiderme, dos
cabelos, na luz dos seus olhos — há, porém, na sua sensibilidade transparente,
à flor da pele, algo de português”, descreve António Ferro sobre a “figura
fugidia de Augusta Vitória“. Ferro
acompanharia a cerimónia do adeus ao antigo monarca em solo britânico, anos
depois de o assumido republicano o ter visitado, em dezembro de 1930, para
entrevistar “um português dos quatro costados”, lê-se em D.
Manuel II, a
biografia do último rei de Portugal, do historiador João
Miguel Almeida (Manuscrito).
▲ O
rei D. Manuel II e sua mulher Augusta Vitória
Não
só as referências nacionais, como o azulejo, tornam famosa a morada do casal,
cujas garden parties contagiam a vida na região, onde o antigo rei apoia a
Hampton Garden Society, e onde se tornara primeiro presidente da Twickenham
Piscatorial Society, segundo o museu local. Em 1914, aliás, Fullwell Park
receberia, para uma das suas festas, a rainha Alexandra, a princesa Vitória e a
imperatriz Maria da Rússia.
Fervoroso
da modalidade do ténis e presença assídua no torneio de Wimbledon, é numa
sexta-feira, 1 de julho de 1932, que D. Manuel sente uma “dor aguda na garganta
à saída do estádio”. “D. Afonso
XIII, outro rei exilado, que assistira a seu lado ao torneio, convidara-o para
um almoço no dia seguinte. D. Manuel
declinara o convite, pois queria honrar o compromisso que assumira com o seu
servidor António Pereira: ser padrinho de casamento de sua filha”, escreve João Miguel Almeida. Mas no dia seguinte, aquilo
que seria mais uma dor de garganta com nada de inédito, revela-se fatal.
No
dia da notícia, o rei Jorge V e a rainha Mary abandonam a tribuna do torneio
mal se inteiram dos factos. No clube de ténis, do qual era sócio, “desceu-se o
pavilhão real e a bandeira do clube foi içada a meia haste”, lê-se na biografia
de D. Amélia. É Vitória
quem envia o telegrama a D. Amélia dando conta da morte do marido. Surpresa para muitos, a correspondência materna
revela no entanto que o antigo soberano não gozava de grande saúde e que desde
muito cedo a sua glote acusava problemas. Lancetado com frequência, queixava-se
de astenia e frequentava as termas das Caldas desde tenra idade, mais tarde
estâncias como a de Harrogate.
Depois
de uma missa na catedral de Westminster, a procissão fúnebre segue pelas ruas
de Twickenham, rumo à igreja de St. Charles Borremec em Weybridge. Aí
permanece até ser trasladado para Portugal, para o mausoléu dos Bragança. D.
Manuel morre poucos dias depois de Salazar ter formado governo em Portugal.
“A sua atitude relativamente à morte do último rei português marcou a
forma como, ao longo das décadas seguintes, iria gerir as tensões e até os
conflitos entre republicanos e monárquicos, dois lobbies de enorme
preponderância no Estado Novo”, enquadra ainda a referida biografia de D.
Manuel II.
▲O casal por
volta de 1920 ROGER VIOLLET VIA GETTY IMAGES
Para
desapontamento pessoal e dos monárquicos, o
casamento de D. Manuel não gera descendentes. Vitória, que enviúva em 1932, volta a casar aos 48
anos, em 23 de abril de 1939, com o conde Karl Robert Douglas-Langenstein e de
novo fica viúva em 1955. Augusta Vitória morre aos 76 anos em Münchhof, em
Eigeltingen, e é sepultada no castelo de Langenstein, propriedade da família
Douglas em Hegau.
Fulwell Park é vendida em 1934, dando
origem a habitação para a classe média. Um relíquia sobreviveu: o pesadíssimo
cofre onde se guardavam as joias da família, que se encontra hoje na igreja de
St Mary, em Hampton, que o casal frequentava.
1942, Petrópolis — D. Duarte Nuno de Bragança e Maria
Francisca
D.
Manuel II reconhecera que, no caso de morrer sem herdeiros, D. Duarte Nuno seria o herdeiro do trono português. Nascido no exílio da família em Seebenstem,
na Áustria, em terra diplomática portuguesa, a 23 de setembro de 1907, não fora
rei, nascera e crescera no estrangeiro, “longe do poder e sonhando com
Portugal”. Foi,
aliás, de forma clandestina que veio à terra dos avós pela primeira vez, em 1929, na companhia de Pequito Rebelo, e em segredo visitou
o Palácio de Queluz, de acordo com a biografia assinada por João
Miguel Almeida.
Por renúncia de seu pai, D. Miguel
II, recebe a representação dos direitos políticos e dinásticos do ramo
legitimista em 1920, com apenas 13 anos, com a sua tia, a duquesa de Guimarães,
a desempenhar as funções de tutora política. D. Duarte é reconhecido e
aclamado pela Causa Monárquica em
1932. Torna-se duque de Bragança e,
em 1933, ano em que é criada a Fundação da Casa de Bragança, perde
os bens por decreto.
Dez
anos depois da morte do rei que terminou os seus dias no exílio, o
casamento do neto de D. Miguel com a bisneta de D. Pedro II, imperador do
Brasil e representante do ramo liberal dos Bragança, “viria a abrir uma nova
página na história dos conflitos e entendimentos entre monárquicos de
diferentes tradições políticas”, reza a já referida obra. Uma combinação que
começou a ser gizada ainda em finais da década de 30, e a que não escapou uma
interferência muito particular.
Em plena II Guerra Mundial,
perante a perspetiva de enlace entre D. Duarte Nuno e uma representante da Casa
Imperial Brasileira, “os monárquicos portugueses resolveram pedir a Salazar o
apoio do Estado português. E este, depois de algumas dúvidas e hesitações,
decidiu satisfazer o pedido e patrocinar a união dos dois ramos da Casa de
Bragança”, escreve João Amaral
em O Roubo do Príncipe. Salazar e
o Casamento do Duque de Bragança. (Tribuna da História). “Ao
patrocinar o matrimónio do duque de Bragança, furtara-o aos seus partidários,
apropriando-se dele para os fins políticos. Depois deste ‘roubo do príncipe’,
Salazar nunca mais pensou na restauração da monarquia em Portugal”, acrescenta
ainda o autor, situando o pensamento estratégico do líder.
Com efeito, a associação de D. Duarte
ao outro lado do Atlântico, veiculada pela imprensa brasileira, remonta a 1936. Por essa altura, a candidata na calha é D. Pia Maria (1913-2000), irmã de D. Pedro Henrique, o pretendente do ramo de Vassouras.
“As primeiras diligências foram levadas a efeito em 1939 pelo 2.º visconde do
Torrão, encarregado por João de Azevedo Coutinho, lugar-tenente de D. Duarte
Nuno, mas algo aconteceu que levou ao adiamento do projecto”, escreve Paulo
Drumond Braga na obra Nas
Teias de Salazar – D. Duarte Nuno, entre a Esperança e a Desilusão.
É
nesse mesmo ano que o chefe do Governo português é chamado a intervir no
delicado tema. Consultado por Azevedo Coutinho, inclina-se para a escolha de
uma “irmã da actual condessa de Paris”, provavelmente D. Teresa Teodora. E,
por motivos políticos, Salazar desaconselha a viagem de D. Duarte Nuno ao
Brasil. “A ocasião para voltar a tratar do assunto foi propiciada em agosto de
1941, quando o monárquico João do Amaral – deputado e antigo diretor do
Diário de Notícias –, integrando uma “embaixada intelectual” enviada por
Salazar ao Brasil, foi incumbido por Azevedo Coutinho, com a concordância do
ditador, de apressar, no Rio, as negociações matrimoniais de D. Duarte Nuno.
A missão deve ter corrido bem. Nos primeiros dias de setembro, o deputado
escrevia ao chefe do Governo: “Tiveram o melhor êxito certas diligências que
fiz à margem da actividade oficial da embaixada”, descreve o historiador.
▲ D. Duarte Nuno (1907-1976)
Em
março/abril de 1942, Salazar, contactado por Azevedo Coutinho, volta a
desaconselhar a deslocação de D. Duarte Nuno ao Brasil. Mas o mediador do
processo insiste que o duque não casaria sem viajar, começando “a reunir apoios
de ordem vária, nomeadamente financeiros, por exemplo, de Ricardo Espírito
Santo e do 5.º duque de Palmela.”
Sobre
a comitiva que acompanharia o futuro noivo, pensa-se no 4.º conde de Almada
e em João do Amaral. A estes junta-se uma irmã de D. Duarte Nuno, D.
Filipa (1905-1990), que lhe era muito próxima e que, em carta dirigida a
Azevedo Coutinho, esclarece: “Terei grande prazer em ser útil quanto
como irmã o possa ser, isto é, unicamente em questões não-políticas”.
Face
ao procjeto de o pretendente aguardar em Madrid a viagem para o Brasil, Salazar
pede ao embaixador de Portugal na capital espanhola, Pedro
Teotónio Pereira, que faça
companhia a D. Duarte. Mais: o
chefe do Governo mobiliza Teotónio Pereira para obter, junto do embaixador dos
Estados Unidos em Espanha, os cinco bilhetes necessários para a comitiva
viajar no hidroavião Clipper, que ligava Lisboa a Natal, no estado brasileiro
do Rio Grande do Norte. Tudo foi agilizado “discreta e velozmente”, sendo
frequente os passageiros conhecerem a data exacta da partida apenas na véspera.
“A 20 de maio, D. Duarte Nuno chegou com D. Filipa a Madrid, instalando-se no
Hotel Ritz. Entretanto, revelou-se algo difícil a obtenção dos vistos quer
em Espanha quer no Reino Unido.” Sete dias depois, o pretendente e a irmã
chegam a Lisboa.
▲ Uma imagem do pequeno livro
com postais ilustrados que condensa a escala lusitana de D. Duarte Nuno em rota
para o Brasil, oriundo da Suíça JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
A
história deste périplo foi profusamente documentada por quem seguiu de perto os
passos do futuro noivo. Entre eles, João Amaral, avô e padrinho de João Távora, actual presidente
da Real Associação de Lisboa, morada de considerável espólio sobre estas uniões.
Para a história passa o pequeno livro com postais ilustrados a que o
Observador teve acesso, que registou essa escala lusitana do Senhor D. Duarte, Duque de Bragança, e a senhora
infanta D. Filipa de Bragança, na sua passagem por terras de Portugal a caminho
do Brasil. As memórias
desses dias 27, 28 e 29 de maio de 1942 começam na fronteira de Caia (Elvas), passam por
Coruche e pelo quartel-general da Vilafrancada em Vila Franca de Xira, e já
em Lisboa não esquecem o Castelo de São Jorge, onde também se deixa fotografar,
e o bairro da Sé, rodeado de populares como varinas. No museu do Carmo, D.
Duarte visita a estátua da sua avó, a rainha D. Maria I, rumando ainda aos
Jerónimos e ao palácio de Queluz. Por fim, ao lado da irmã, posa ainda no
Palácio Fronteira, em Benfica. A visita pela capital deve-se a um atraso de 24
horas do Clipper que deveria transportar o grupo eleito até ao outro lado do
Atlântico.
“Com
o entusiasmo e alegria do desterrado que pisa de novo o sagrado solo da Pátria,
atravessou o Príncipe Dom Duarte
a fronteira portuguesa, transpondo o rio Caia de automóvel, no dia 27 de maio
de 1942, acompanhado pelo Dr. João do Amaral, que dias antes de deslocara a
Madride para esse fim”, sublinha o conde
de Almada, que, acompanhando as deslocações do duque de Bragança, colige uma série de Notas sobre a Viagem de
Sua Alteza Real o Senhor Duque de Bragança ao Brasil, um volume ilustrado que permite enquadrar os meses
que antecederam o casamento. Visitar o Brasil é, de resto, projecto
manifestado ainda em 1935 pelo futuro noivo, confissão feita em entrevista à
agência Havas numa das viagens que fez a Paris.
A
29 de maio, “os serviços da Panair anunciaram a partida do Clipper para as 9
horas da noite, do aeroporto de Cabo Ruivo”. O grupo ruma finalmente ao Brasil
no Boeing 314. A viagem dura 54 horas e divide-se em duas escalas, uma delas em
Bolama, na Guiné portuguesa, e a segunda em Fisherman’s Lake, na Libéria.
A 1 de junho, desembarcam em Natal. “Novamente o Clipper, como gigantesca baleia alada,
tragou os seus passageiros, lançando-os depois de cortar o Equador e transpor o
Atlântico, nas praias brasileiras, pelas cinco da manhã do dia seguinte,
semelhantemente ao que sucedera ao profeta Jonas nos recuados tempos bíblicos”,
regista o Conde de Almada.
Do
Recife para a Baía, e então o Rio de Janeiro, onde suas altezas chegam meia
hora antes do timing previsto, o que troca às voltas até aos anfitriões de
serviço – “devido a esta circunstância várias pessoas que desejavam
assistir ao desembarque dos Príncipes Portugueses no aeroporto Santos Dummond
não chegaram a tempo. Isso sucedeu também aos dois príncipes brasileiros , Dom
Pedro e Dom João que, logo que verificaram o facto, seguiram para o Hotel
Glória a fim de apresentar as boas vindas a seus Augustos primos”.
No
dia imediatamente a seguir, oferecem os príncipes um almoço aos Barões de
Saavedra distinguindo-as com a primazia dos convites, atendendo ao facto de o
conselheiro João Azevedo Coutinho ter nomeado o barão de Saavedra seu
representante enquanto durasse a visita de D Duarte ao Brasil. A 5 de junho, o
banquete oferecido pela família Imperial brasileira no palácio do Grão Pará
assinala o “primeiro encontro dos dois príncipes que algum tempo depois se
uniriam para toda a vida pelos sagrados laços matrimoniais”.
Gravura alusiva ao enlace de D. Maria
Francisca Amélia Luísa Vitória Teresa Isabel Miguela Gabriela Rafaela Gonzaga
de Orléans e Bragança com D. Duarte Nuno de Bragança
Sem
mão a medir, entusiasmada com o burburinho, a imprensa brasileira entretém-se
com todas as possíveis teorias e conspirações, confiando que o futuro noivo
faria o anúncio ainda a partir de Madrid; arriscando escrever que a noiva se
tratava antes de D. Teresa Teodora; e difundindo mesmo que o duque de Bragança
era emissário do governo português para afastar o Brasil dos Estados Unidos
da América e levá-lo a aderir a um bloco católico-latino de que fariam parte
Portugal, Espanha, Argentina e Chile. Paulo Drumond Braga recorda como
Martinho Nobre de Melo, embaixador português no Brasil, foi instruído para
que a permanência de D. Duarte Nuno não assumisse qualquer carácter oficial,
limitando-se a uma visita do chefe da casa de Bragança aos seus parentes do
Brasil. “Mais tarde, recebe uma carta em que Salazar lhe recomenda a
“maior prudência” no contacto com o pretendente ao trono português, evitando,
por exemplo, convidá-lo para a embaixada ou estar presente a “actos oficiais”
em sua honra, mas não fugindo de todo ao contacto pessoal.”
Segundo
o registo pessoal do conde de Almada, é já em julho que D. Duarte goza de uma
curta mas memorável estadia em Petrópolis, durante a qual tem a “ocasião de
conhecer a apreciar as aprimoradas qualidades e virtudes que tão
particularmente adornam a pessoa de sua Augusta Prima, a excelsa princesa D.
Maria Francisca, reconhecendo em sua alteza o que o insigne cronista Fernão
Lopes na sua pitoresca linguagem teve ocasião de referir a respeito da virtuosa
rainha Filipa de Lencastre: “Possui todas as bondades que a mulher de alto
lugar pertencem.”
D.
Pedro Gastão assegura, entretanto, ao representante de Portugal no Brasil que
“não havia qualquer objecção” ao casamento, atendendo a que D. Duarte
Nuno tinha uma “educação modelar”, “formação católica” e “raro bom senso”,
escreve o historiador sobre esses relevantes predicados.
▲ D. Duarte Nuno e D. Maria
Francisca
A 4
de julho, o duque de Bragança regressa a Petrópolis acompanhado unicamente da
futura noiva para o pedido de casamento, que acontece no palácio de Grão
Pará. A
declaração oficial só mais tarde é feita, de forma a que a publicação do
noivado aconteça em simultâneo em Portugal e Brasil. Quanto à joia, “um
precioso anel, ostentando esplêndida safira, que sua alteza a senhora Dona Maria Francisca passou a usar, marcou
bem significativamente este notável passo da vida dos dois Augustos Príncipes”.
Há
caminho a percorrer até ao desejado dia. Afinal de contas, D. Duarte mantém o
plano inicial de realizar uma série de visitas ao longo de um mês, determinado
que estava a conhecer os Estados de São Paulo e Minas Gerais. Quanto à noiva, a
agenda não fica em branco. Acompanhará a futura cunhada, infanta Filipa, na
viagem a Nova Iorque que esta já projectara, com o fim de visitar a irmã, D. Maria Antónia, bem como as tias, a
Granduquesa do Luxemburgo e a duquesa de Parma. As duas princesas partem para os EUA a 8 de julho de
1942, prevendo-se que regressem no final do mês, começo de agosto. Mas é com a brevidade possível que o noivo solicita a
volta da noiva face à “natural agitação provocada pelo trágico afundamento dos
cinco barcos brasileiros que tantas vítimas causou e a imediata declaração de
guerra do Brasil às potências do “eixo”.
O turbulento período dificulta deslocações e correspondência, comprometendo
essa urgência, com o regresso ao Brasil sucessivamente adiado.
De
resto, depois desse 22 de agosto em que o Brasil declara guerra às potências
do Eixo, Salazar teme que a presença de D. Duarte traga embaraços. João
do Amaral sugere ao
chefe do Governo que se apresse o regresso do duque e que se adie o casamento,
limitando-se para já ao anúncio da boda.
A
publicação oficial do noivado concretiza-se em 10 de setembro. Quanto ao
casamento em si, estima-se por essa altura que aconteça no começo de outubro. A
notícia é comunicada no Palácio do Itamaratí ao Presidente da República
brasileira e ao governo. E a imprensa portuguesa publica a seguinte nota
fornecida pelo conselheiro João de Azevedo Coutinho: “Tenho a honra de comunicar que foi combinado o
casamento de Dom Duarte Nuno, duque de Bragança, com sua Alteza Dona Maria
Francisca de Orléans e Bragança. Devido às circunstâncias actuais, o casamento
será efectuado brevemente, na intimidade, na catedral de Petrópolis, no Brasil”.
▲ Imagens da
cerimónia religiosa na catedral de Petrópolis, retiradas do livro de notas do
Conde de Almada, de 1942 JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Pelas
quatro e meia da tarde de dia 6 de outubro, a noiva aterra por fim em solo
brasileiro, pondo fim à incerteza. Para a história passou a especulação de que teria
sido apanhada de tal forma de surpresa que decidiu afastar-se do Brasil para
espairecer. Com efeito,
cita Drummond, uma fonte de origem britânica garante que o pretendente mudou
de ideias quanto à noiva, acabando por escolher a mais velha das duas
princesas ainda solteiras – tinha então quase 28 anos – que considerou mais
adequada aos seus “modos tranquilos e estudiosos” do que a noiva mais
provável, D. Teresa Teodora,
com 23 anos recém feitos. Segundo uma outra fonte, D. Duarte Nuno mudou de ideias ao ver aquela subir a uma árvore,
optando então por D. Maria Francisca. De acordo com as palavras do barão de
Saavedra, que se encontram numa carta dirigida a Azevedo Coutinho datada de 22
de agosto, “da parte da princesa houve uma natural indecisão de quem é
surpreendida por um pedido inesperado. Não era ela que estava em vista, mas
uma sua irmã que não foi escolhida.”
D. Filipa vira na viagem um outro objectivo muito concreto. Dar
“tempo a que ela [D. Maria Francisca] se habituasse à ideia da nova situação
que lhe era oferecida que determinava uma radical transformação na sua vida e
proporcionar ao Senhor D. Duarte um tempo de liberdade para distrair os
pensamentos e apagar talvez algum complexo que absorvesse o seu espírito em
relação ao compromisso assumido”.
A
polémica rodeia agora a escolha dos padrinhos, detalha Paulo Drumond Braga. Chegados ao mês de setembro, Azevedo Coutinho recebe
do Rio de Janeiro a sugestão de convidar para padrinho do duque o
cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, que merece
rejeição por parte de Salazar. “O lugar-tenente enviou imediatamente um
telegrama para o Brasil, a ordenar que se convidassem, pelo “alto significado
político”, os condes de Paris e de Barcelona, pretendentes, respetivamente,
aos tronos de França e de Espanha”. Assim, o conde de Barcelona e D.
João de Almeida (Lavradio) – um velho partidário do ramo legitimista
português da casa de Bragança – apadrinham D. Duarte Nuno que, à última
da hora, decide substituir D. Filipa pelo segundo. Por sua vez, D. Maria
Francisca fica com o conde de Paris e — num sinal máximo de pacificação — com D. Amélia, última rainha de
Portugal, viúva do rei D. Carlos, última
sobrevivente da linha constitucional da Casa Real Portuguesa, que havia sido
convidada por D. Pedro Gastão, e que envia à noiva uma pregadeira de ouro com
safiras e diamantes.
▲ Documento
do casamento de D. Duarte Nuno de Bragança e D. Maria Francisca de Orleans e
Bragança, em 1942
A
12 de outubro, são assinadas, no Rio de Janeiro, as convenções antenupciais.
D. Duarte Nuno e D. Maria Francisca casam com “regime de absoluta
separação de bens”. O casamento civil, presidido por Martinho Nobre de
Melo, que oferece um porto de honra, decorre na Embaixada de Portugal a 13 de
outubro, dia consagrado em Portugal a Nossa Senhora do Rosário de Fátima.
Dois
dias depois, a 15, a chuva teima em abençoar a celebração religiosa, realizada
em Petrópolis, pelo bispo de Niterói, D. José Pereira Alves, em
substituição do cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme,
impedido por doença. A jornada começa pelas oito da manhã, com uma missa rezada
no palácio do Grão Pará por intenção dos nubentes. Perto das 11 e meia, toda a
família dirige-se à igreja matriz. O casamento torna-se um acontecimento
público e uma enorme multidão congestiona todo o exterior do templo, cuja
primeira pedra fora colocada em 1876 pelo Imperador D. Pedro II.
D. Maria Francisca é levada ao altar
por D. Pedro Gastão. Seguem-na D. Duarte Nuno, de braço dado com a futura
sogra. “O cortejo nupcial entrou no majestoso
templo entre alas compactas de enorme multidão que aclamou os príncipes com
jubiloso entusiasmo, que a chuva impertinente não conseguiu fazer esmorecer”,
anota o conde de Almada.
Quanto
ao leque de convidados, dois factores ditam ausências de monta, sobretudo entre
as coroas do Velho Continente. Por um lado, o facto de a boda se realizar no
Brasil, por outro o então contexto de guerra na Europa — até os quatro
padrinhos permaneceram no seu lado do Atlântico, à distância dos festejos. O presidente da República brasileira, Getúlio
Vargas, o seu
ministro dos Negócios Estrangeiros, Oswaldo Aranha, e os embaixadores de
Portugal e da Inglaterra fazem-se representar no enlace pelas respectivas
mulheres. Embaixadores ou ministro chegam de paises como Canadá,
Dinamarca, Estados Unidos, França, Peru, ou Polónia, associando a outras
figuras da sociedade brasileira. Do Vaticano chega ainda a bênção apostólica
enviada pelo Papa Papa Pio XII aos nubentes.
Terminada
a cerimónia, teve lugar uma recepção de gala no Palácio do Grão-Pará, a que
seguiu um faustoso jantar e a assinatura da acta da cerimónia.
▲O casamento civil
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Em
Portugal, Azevedo Coutinho manda celebrar missa de Acção de Graças na igreja
de S. Domingos de Lisboa, no mesmo dia da boda, e a iniciativa repete-se um
pouco por todo o país. A maioria da imprensa portuguesa e acumulam-se dádivas
em dinheiro destinadas a um presente a ser entregue pelos portugueses aos
noivos.
Se
D. Filipa decidiu permanecer no Rio durante mais algum tempo, estava previsto
que, a 17 de outubro, os recém-casados e sua comitiva rumassem a Recife,
seguindo depois para Natal, onde apanhariam o Clipper para Lisboa. A 20,
Getúlio Vargas reconhece a validade do enlace dos duques de Bragança em
território brasileiro. E só pelas nove horas da manhã do dia 30, chegam a
Cabo Ruivo, desembarcando em Lisboa.
Por
fechar estava o local de residência dos duques de Bragança. D. Pedro Gastão
aconselha Tânger, cidade onde habitavam então os condes de Paris, Teotónio
Pereira sugere San Sebastian, “o mais afastado da nossa fronteira”; e Salazar
opõe-se ao cenário Brasil, preferindo a Suíça, onde D. Duarte Nuno residia
desde 1939.
Inicialmente
em Lisboa, alojam-se no Solar da Piedade, em Sintra, que então pertence à
marquesa de Cadaval. Dois dias depois rumam a Madrid, onde se encontram com os
condes de Paris, cunhado e irmã de D. Maria Francisca. O périplo segue por
Sevilha, norte de África, e a 17 de novembro Pedro Teotónio Pereira reporta a
Salazar a chegada do casal a Madrid e informa que o embaixador alemão já
recebera de Berlim autorização para dar vistos a fim de o duque e sua mulher
poderem atravessar a Alemanha na viagem rumo à Suíça. “Acabo de receber um telegrama do senhor D. Duarte. Estão
muito bem e vê-se que muito bem-dispostos.”
▲Uma
imagem dos convidados no dia da cerimónia religiosa, onde se destaca a irmã do noivo, D. Filipa de Bragança
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
O primeiro filho de D. Duarte Nuno e
de D. Maria Francisca, o actual duque de Bragança, nasce em Berna, a 15 de maio
de 1945.
A 8
de fevereiro, Pedro Teotónio Pereira transmite a Salazar que soubera, por
telefonema de D. Filipa, da
primeira gravidez da duquesa de Bragança. Em julho de 1950, António Ferro – que
acabara de iniciar funções como ministro de Portugal em Berna – descreve em
carta a Salazar a família e o lar de D. Duarte Nuno, considerando-os “modelares”.
A
21 de abril de 1950, a Assembleia Nacional revoga, por unanimidade, as leis do
banimento de 1834 e de 1910 que impediam a residência em Portugal dos membros
da família de Bragança. A 28 de maio de 1952, ao fim de
uma viagem de carro de cinco dias, chegam
a Portugal D. Maria Francisca, D. Duarte Pio e D. Miguel. Na fronteira de
Vilar Formoso, aguardavam-nos as
infantas D. Filipa e D. Maria Antónia. D. Duarte Nuno e o filho mais novo
chegam a Portugal a 12 de agosto desse ano, tendo feito a viagem de carro.
“Recebi os meus diplomas de
enfermeira antes de sair de lá [Brasil] e quero, mal chegue, pôr-me à
disposição da Cruz Vermelha”, cita Paulo
Drummond Braga, sobre essa entrevista
concedida por Maria Francisca a um jornal português, em setembro de 1942, dias
antes do casamento. Tendo
trocado alianças aos 28 anos, segundo certa fonte, acreditava então que já
não iria casar e achava-se disposta a seguir a vida religiosa. Mal sonhara que a sua união tinha o pendor de
pacificar os descendentes de dois monarcas portugueses, os irmãos D. Pedro IV
(1798-1834) e D. Miguel (1802-1866), encerrando para sempre uma querela que
remontava a 1828-1834.
D.
Maria Francisca, nascida
no Castelo d’Eu, em França, filha de Dom Pedro de Alcântara de Orleans e
Bragança, príncipe do Grão-Pará e príncipe Imperial do Brasil, que renunciou
aos seus direitos dinásticos para se casar com Srta. Elisabeth Dobrzensky de
Dobrzenicz, filha de Jan Vaclav II, Conde de Dobrzensky, morre a 15 de janeiro
de 1968 na cidade de Lisboa. É
sepultada no Convento das Chagas de Cristo, em Vila Viçosa, o panteão dedicado
às duquesas de Bragança. D. Duarte Nuno de Bragança morre em Lisboa a 24 de
dezembro de 1976. É sepultado no Panteão dos Duques de Bragança, situado no
Convento dos Agostinhos em Vila Viçosa.
Deixam três descendentes: Duarte Pio de Bragança (Berna, 15 de maio
de 1945), Miguel Rafael de Bragança (Berna, 3 de dezembro de 1946), Duque de
Viseu; e Henrique Nuno de Bragança (Berna, 6 de novembro de 1949 – 14 de
fevereiro de 2017), Duque de Coimbra.
1995, Lisboa — D. Duarte Pio e Isabel
de Herédia
Mais
de um século depois do último casamento real em solo português, que uniu D.
Carlos e D. Amélia, em 22 de maio de
1886, o país
interrompe a sua marcha para seguir ao minuto a boda de D.
Duarte (n. 1945) e Isabel Curvelo de Herédia (n. 1966).
Ainda à distância do advento das redes sociais, o acontecimento tem transmissão
na RTP1, e honras de capa da extinta revista do social Olá Semanário.
Duzentas fotos ilustram o artigo sobre o “casamento do século”. E se o destaque vai para os momentos e toilettes
mais bem conseguidos (com Maria Barroso, de azul claro, em nota positiva; Maria
Cavaco Silva, de rosa claro, em sinal descendente; e muito boa gente a
desconhecer ainda que “um smoking nunca entra na Igreja”), não faltam
peripécias dignas de nota e da pena afiada dos críticos sociais – incluindo o
famoso repórter Juan Chavez a ser apanhado pela notícia da súbita morte de Lola
Flores, que obriga a mudar o plano de publicações.
Para
a história passa o momento em que o apresentador Eládio Clímaco “chamou anónimo ao príncipe Filipe da Bélgica”, ou em
que a condessa de Paris “andou
perdida pelos vários andares do parque de estacionamento do CCB” no fim da
festa. Para não falar de imprevistos com maior ou menor gravidade. O marquês
de Fronteira “não resistiu
a vir à porta fumar um cigarrinho no meio da missa”, Amália Rodrigues “sentiu-se mal e teve de sair a meio por ter esperado
muito tempo em pé”, e que dizer de uma inesperada “segunda noiva”, como ficou conhecida a filha da
condessa de Peniche e parente
dos marqueses de Angeja, que, furando a regra primordial do dress code nestas
ocasiões, “surgiu com um longo vestido branco e chapéu”. Por fim, “Miguel
Esteves Cardoso fez uma
saída determinada directo a uma multidão silenciosa, abriu os braços de repente
e gritou ‘Viva o
rei!’, galvanizando os ânimos da relva”.
Pelas
15h30 desse 13 de maio de 1995, já os Jerónimos se encontram à pinha com os
cerca de três mil convidados — nas imediações, cresce a curiosidade e a
presença popular. Anos mais tarde, o noivo haveria de confessar que não
esperava tamanha adesão aos convites endereçados, facto é que a afluência
espelha a resposta em peso à cortesia. “Convidei família, amigos, mas
também convidei pessoas que me tinham convidado em tempos ou que tinham sido particularmente
simpáticos comigo e com a minha mulher, do resto do mundo, portanto enviei
muitos convites que estava certo que não vinham, da Ásia, até da Papua Nova
Guiné, o problema é que vieram todos“, recordou em tempos ao programa
“Perdidos e Achados”, da SIC.
▲Os duques de Bragança
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Mais
peculiar ainda é a trajectória de uma boda que começa com uma hesitação. “Tenho de pensar”, responde D. Isabel ao primeiro
pedido de casamento do futuro noivo. O episódio é recordado no programa
Dois às 10 da TVI. “Como ia dar uma volta à minha vida, tive de pensar bem
se queria abdicar de uma certa liberdade”, disse Isabel Herédia, continuando:
“Na altura, hesitei um bocadinho e o Duarte pensou que, se eu não quisesse,
não era preciso. Aí eu fiquei ofendida. Aí era o Duarte a dizer que não”,
explicou a duquesa de Bragança.
A
renovação do pedido acontece agora num destino paradisíaco, a ilha Bela da
Princesa, no Brasil. D. Duarte insiste no tema receando perder a noiva. “Tenho primos e bons amigos no Brasil e pensei ‘se
calhar há ali qualquer coisa, então vou antecipar-me’”. Por fim chega a
desejada confirmação. De resto, em vésperas do enlace, D. Duarte confessaria à SIC que até à data andara desencontrado da pretendente
ideal. Apaixona-se
facilmente?, perguntam-lhe. “Isso sim, mas nem sempre com raparigas casáveis.”
Há
muito que os futuros marido e mulher se conhecem. O primeiro dos encontros
deu-se em Angola, tinha o chefe da Casa Real então 28 anos, curiosamente a
mesma idade de Isabel Herédia à
data do casamento. “Conheço o
meu marido desde os seis anos. Foi ele que me ensinou a nadar. As nossas
famílias sempre foram muito amigas”, descreve a noiva, que viveu em África
desde os dois anos, mudando-se depois para São Paulo. “Ficámos amigos muitos
anos até uma altura em que percebemos que havia coisas mais interessantes a
fazer do que ser só amigos”, acrescenta D. Duarte. Até à decisão final da
noiva, que ponderou tudo o que deixaria para trás, passou um ano.
Gestora
financeira até à sua boda, a noiva tem ainda um peculiar antecedente: é trineta
do visconde de Ribeira Brava, um dos conspiradores do regicídio de 1908 que
vitimou o rei D. Carlos e o seu herdeiro, o príncipe D. Luís Filipe. Muitos outros detalhes, bem mais sumarentos, hão
de nortear imprensa e curiosos até ao grande dia. Conhecida a notícia do
noivado, o telejornal da RTP1 regista o primeiro beijo público do
casal. E não
faltou sequer uma insólita fraude, detectada a tempo por D. Duarte, segundo
contou em 2020, no programa Júlia, da SIC. “Um brincalhão falsificou o convite.
Depois recebi respostas de agradecimento de pessoas que não estavam convidadas”.
O autor da partida haveria de confessar tudo, mas outras manobras ficariam por
despistar. “Houve duas ou três pessoas que compraram o convite a quem não
podia vir.”
Uma
semana antes do casamento, conta a Nova Gente, os noivos são o centro das
atenções num jantar que reúne 600 pessoas no palácio da Bolsa, no Porto. Dois
dias depois, já em São Pedro de Sintra, a Nova Gente dessa semana recorda como
receberam em casa uma embaixada da comunidade cigana, cujo representante
haveria de ser convidado para o evento nos Jerónimos. “No mesmo dia, o algarvio
Fernando Gavaia anunciava os segredos e a segurança do seu bolo de noiva,
com 100 quilos” — e guardado pelo PSP na noite do fabrico, reza a revista.
Ainda
nas vésperas do enlace, o casal assiste a uma corrida de touros à portuguesa,
“uma das festas mais vivas da cultura popular”, e aos convidados oferecem
também uma “esplêndida” festa equestre que senta nas bancadas “inúmeros
príncipes” e “portugueses vindos de longe”, lê-se em Um Casamento na
História de Portugal, com
coordenação de Henrique
Barrilaro Ruas (editora Rei dos Livros).
Queluz é o cenário escolhido pelos
noivos para o banquete que oferecem, um evento precedido de um encontro
simbólico com o povo de Timor. É em Queluz que D. Isabel faz por “acamaradar com
raparigas universitárias” e por aqui desfilam (num ambiente que “reviveu
grandes noites da Casa de Bragança”), os chefes das casas de Áustria-Hungria e
da Itália e os príncipes herdeiros da Bélgica e do Luxemburgo, todos eles
descendentes de D. Miguel I.
A
noite começa com um chá servido no Palace Hotel, seguido de uma exposição
realizada pela Escola Portuguesa de Arte Equestre e depois um grupo de
timorenses interpreta diversas danças típicas, com motivos relacionados ao
casamento e à maternidade. Realiza-se ainda um concerto realizado por vários
grupos musicais de estudantes, no final do qual é servido o jantar, nas Salas
de Óculos e Música do Palácio.
No grande dia, enfim,
Duarte Pio sai do Colégio do Bom Sucesso à hora prevista, 15h38, e chega num descapotável, escoltado por
cavaleiros do Colégio Militar.
“Tinha pedido para não se politizar, mas as pessoas às vezes excedem-se um
pouco”, brinca o noivo à chegada à entrada principal, perante os gritos de
aclamação, escutado pela RTP na sua cobertura especial. Fiel à tradição, D.
Isabel chega ao cair do pano do cortejo de ilustres, e levanta o véu para
saudar a multidão. Pelas quatro da tarde, arranca a cerimónia. “Marca-me a
quantidade de pessoas que estavam lá fora, e da alegria que se gerou no país”,
diria mais tarde a noiva no Perdidos e Achados. “A CNN passou um quarto de
hora do casamento, foi uma promoção muito grande”, acrescentaria D. Duarte.
Da
Europa, África e América, estão presentes elementos dos povos amigos e grande
número de portugueses vindos de todo o mundo. Com o Papa a enviar um especial
bênção apostólica, a Igreja Católica faz-se representar pelo núncio de sua
santidade, do cardeal patriarca e arcebispo primaz e ainda pelos bispos do
Porto e de Bragança. À grande festa portuguesa acorre a descendência de D.
Miguel I, ou pelo menos de D. João VI (Portugal, Brasil, Áustria, Itália,
Luxemburgo, Bélgica e Liechtenstein) e ainda as duas rainhas da Bulgária e o
Rei dos Zulus.
No
exterior do monumento, os protestos são protagonizados pelo Partido Socialista
Revolucionário, que pouco depois estaria entre as forças que originaram o Bloco
de Esquerda, e por um grupo de defesa das gravuras de Foz Côa, então em risco
de desaparecerem com as obras de construção da barragem.
Com
serenidade, a cúpula da República não falta à chamada, num vigoroso gesto
diplomático que vê sentar nas primeiras filas as três figuras cimeiras do
Estado português: o Presidente da República, Mário Soares, o presidente
da Assembleia da República, António Barbosa de Melo, e o primeiro-ministro,
Aníbal Cavaco Silva. “Monarquia?
Isto é a prova de que não está em causa a natureza do nosso regime”, diz o PM à
chegada ao Mosteiro, questionado pela RTP.
▲A multidão à saída do mosteiro
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
“Senhor Presidente, chega quase à hora do
noivo”, diz a repórter a Soares. “Ai, sim? Não sabia. Foi a hora que me
designaram, quatro menos dez, e eu sou pontual.” Um republicano numa festa
monárquica? “Republicano, socialista e laico, com muita honra. Mas eu não venho
a uma festa monárquica, venho ao casamento de uma pessoa simpática, que é o
senhor D. Duarte.” E terá o Presidente ficado incomodado com o “viva ao rei”
que se escuta por aqui? “Nada, eu sou a favor da tolerância, é isso que me
distingue dos ditadores.” Sobre o presente escolhido para os noivos, sacode
responsabilidade na decisão: “Ah, isso não sei, foi a minha mulher que
escolheu.”
A
este elenco juntam-se vários ministros e figuras como José Manuel Durão Barroso ou Alberto João
Jardim. Num templo
cheio, outros vultos testemunham a união. O casamento é celebrado “junto dos
sepulcros do rei Venturoso, de Vasco da Gama e de Camões”. Manuel
Herédia, a arquiduquesa Alexandra de Habsburgo e a princesa Cristina de Bourbon
Duas Sicílias são os padrinhos da noiva. No final
da cerimónia, um gesto de “alto simbolismo”: a nova duquesa de Bragança oferece
o bouquet de rosas brancas e orquídeas à Padroeira e rainha de Portugal (como
em 1646 a proclamou o Rei Restaurador).
À
margem da carga histórica, boa parte das atenções centram-se, como seria de
esperar, em pormenores como o vestido de noiva. Uma criação em zibelina, a mais
nobre das sedas, com mangas e corpete bordado, luvas e na cabeça a tiara que
pertenceu à rainha D. Amélia.
“Lembro-me como se fosse hoje! Já a vestia antes do casamento. Conheço a D.
Isabel muito bem e continuamos amigas. Dei-lhe meia dúzia de opções, todas ao
seu gosto, e ela escolheu a que mais lhe agradou”, contou a costureira
Laurinda Farmhouse, recordando
um pedido especial: “Queria que
os bordados tivessem uma característica do nosso país e os bordados do vestido
dela tinham os motivos de Nisa. Deu-me muito gozo fazer o vestido, na altura era
uma honra, desde 1886 que não havia um casamento real no nosso país”, recordou à revista Caras, vinte anos depois do
evento. Infelizmente,
a peça, com bordados de Nisa, teve um destino trágico. Guardada religiosamente
no Alentejo, para escapar ao efeito nefasto da humidade de Sintra, acabou por
ser alvo de um destruidor incêndio.
Os
presentes para os noivos são muitos e variados — o Diário de Notícias da
Madeira adianta que Hassan II de Marrocos esteve ausente, mas ofereceu um
automóvel ao casal. Maria Teresa Martorrel Salgado, Ana van Uden e Francisca
Curvello contam-se entre as pequenas damas de honor. Nos pajens, destaque para
Francisco Chaves, Francisco Sampaio e Mello, António Bustorff e Nuno Van Uden.
▲Os duques de Bragança em 2013
LEONARDO NEGRÃO / GLOBAL IMAGENS
Quanto
ao ramo de noiva, foi apanhado por Maria
Domingas, solteira,
e “terrivelmente emocionada” com o que lhe calhou em sorte, regista a
reportagem da RTP.
Se,
à saída da igreja, estudantes estendem as capas negras para os noivos passarem,
é nos claustros dos Jerónimos, pós cerimónia, que se realiza uma cocktail com
direito a porto de honra e sessão de fotos. Aos jornalistas do canal público, Francisco
Van Uden comenta a expressiva adesão popular. “Penso que
excedeu as minhas expectativas. Foi um sintoma de que o povo português precisa
de ter símbolos nacionais.” Igualmente
sensibilizado, o padrinho do noivo elogia a “lindíssima” cerimónia. “Não me
lembro de um casamento com tão bom gosto.” O senhor é o próximo?, perguntam a
D. Miguel. “Não, não me parece, às vezes penso que numa próxima encarnação. Os
videntes dizem que me vou casar com uma viúva rica, mas eu não acredito.”
CASAS REAIS CELEBRIDADES VAIDADES LIFESTYLE
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